Bruno vai voltar a jogar - o Brasil (e não só) está dividido - TVI

Bruno vai voltar a jogar - o Brasil (e não só) está dividido

Bruno Fernandes (Reuters)

Reintegração na sociedade ou branqueamento de um crime nunca assumido? A polémica não acabará tão cedo

A apresentação e o primeiro treino de Bruno Fernandes de Souza, no seu novo clube – o Boa Esporte, da série B – marcou, nesta terça-feira, o mais recente episódio no caso que tem apaixonado e dividido o Brasil durante as últimas semanas. «Mais recente» não quer, de todo, dizer o «último»: a intensidade da polémica não vai esmorecer tão cedo, e o debate em torno da opção do clube da cidade mineira de Varginha, de 130 mil habitantes, também não.

Bruno, agora com 32 anos, foi apresentado perante um coro de protestos de várias associações da defesa dos direitos da Mulher, de um sector de adeptos do Boa Esporte e do afastamento de três patrocinadores e do fornecedor de equipamentos, que nos últimos dias anunciaram o fim da ligação comercial ao clube. Também a prefeitura da cidade anunciou ter enviado o caso ao departamento jurídico, para decidir se mantém o convénio que permite ao Boa – promovido neste ano ao segundo escalão – utilizar as instalações municipais. E, na tarde de domingo, a página oficial do clube foi atacada por «hackers», que substituíram as informações institucionais por uma mensagem com números relativos ao assassinato de mulheres e apelavam ao afastamento dos parceiros comerciais do Boa Esporte.

 

A polémica surge uma semana depois das comemorações do dia Internacional da Mulher, que no Brasil foram particularmente agitadas. O caso Bruno surge num contexto em que os indicadores de feminicídio e violência contra mulheres dispararam para os valores mais altos da última década – mais 24% de assassinatos em 2016 do que em 2006, aponta a Amnistia Internacional. Aquela organização aponta o Brasil como um dos países mais problemáticos para a situação da mulher, por força da alta incidência de gravidez adolescente, fraca escolaridade e cultura de violência doméstica.

Passaram três semanas desde que o ex-guarda-redes do Flamengo – condenado a 22 anos de prisão por envolvimento no sequestro e homicídio da amante, Eliza Samudio - saiu da prisão de Santa Luzia, nos arredores de Belo Horizonte. Bruno beneficiou de um habeas corpus que lhe permite aguardar em liberdade o julgamento de segunda instância, após cumprir seis anos e nove meses de detenção, menos de um terço da pena.

Bruno, nos tempos do Flamengo

 

A saída não é definitiva, portanto, e o processo de reintegração na sociedade não está fechado. Esse é um dos principais focos de acusação dos críticos deste relançamento de carreira do antigo guarda-redes do Flamengo, cujo nome se tornou, ao longo dos últimos sete anos, sinónimo de violência.

«Frio, violento, dissimulado»

«Frio, violento e dissimulado», chamou-lhe a juíza Marixa Rodrigues, do tribunal de Justiça de Minas Gerais, no dia em que sentenciou o guarda-redes do Flamengo a 22 anos de prisão. A sentença foi comunicada também num dia Internacional da Mulher, a 8 de março de 2013, data simbólica pela especificidade e pelos contornos particularmente violentos do crime.

O tribunal deu como provado o papel do futebolista como mandante do sequestro, homicídio e posterior ocultação de cadáver, em junho de 2010. Eliza tinha engravidado e gerado um filho de Bruno, com quatro meses à data do crime. Os pedidos de dinheiro que fazia ao jogador do Flamengo foram o motivo para que, temendo pelo seu casamento, ordenasse o rapto e assassinato da aspirante a modelo, então com 25 anos. Bruno negou sempre as acusações, atribuindo a decisão de matar Eliza ao seu assistente pessoal, Luiz Romão «Macarrão».

Bruno durante o julgamento, em 2013

No entanto, os depoimentos de outros envolvidos indicaram Bruno como conhecedor de todo o processo, incluindo a decisão de fazer desaparecer o corpo de Eliza, desmembrando-a e dando os seus rastos mortais aos cães de uma propriedade rural próxima da localidade de Esmeralda, em Minas Gerais. Durante o julgamento ficaram provados diversos antecedentes de violência, e outras tentativas de sequestro ao longo do ano de 2009, a partir do momento em que Eliza anunciou a gravidez. E poucos meses antes do assassinato, Bruno saiu em defesa pública do futebolista Adriano, envolvido num caso de troca de agressões com a noiva, comentando com toda a naturalidade: «Quem nunca saiu na mão com sua mulher?»

Detido em junho de 2010, Bruno – que nesse mesmo verão viu o Flamengo rescindir contrato - foi condenado a 22 anos e três meses, num julgamento concluído em 2013. Nunca assumiu a culpa e recorreu da sentença de imediato. Em 2014, ainda na prisão, Bruno assinou contrato com o clube Montes Claros, da segunda divisão mineira. Mas o contrato, que seria válido até 2019, nunca chegou a vigorar, porque o clube entrou em insolvência. Assim, quando saiu em liberdade, a 24 de fevereiro, Bruno – que no verão passado voltou a casar - estava livre para procurar clube. Se receberia ofertas, era a pergunta a que o Boa Esporte Clube não demorou a responder.

Reintegrar ou branquear?

Na apresentação do novo guarda-redes, contratado por dois anos – caso não venha a ser novamente condenado nesse prazo - o presidente do Boa Esporte Clube, Rone Moraes, de 49 anos, garantiu aos jornalistas que nada demoverá o clube de manter a decisão: «Sou uma pessoa que gosta de desafios», afirmou. «O Boa não fez nada errado e não é um Tribunal de Justiça. O que o Bruno fez não está certo, mas ele tem o direito de voltar à sociedade. E o que ele sabe fazer é jogar futebol», resumiu, admitindo, no entanto, que teve de dar explicações a muita gente, incluindo as suas duas filhas, de 16 e 19 anos: «Tive, e tenho ainda de explicar muitas coisas, na família e no meu círculo de amizades», reconheceu. Ao mesmo tempo, não se mostrou preocupado com a debandada de patrocinadores: «Cada um faz a sua escolha. Eu acho que a nossa escolha, num futuro próximo, estará ajudando a cidade e o clube.»

Opinião contrária manifestou a Frente Feminista de Varginha, que na noite desta terça-feira organizou uma manifestação em frente ao campo de treinos, para repudiar a chegada de Bruno à cidade: «A contratação tem em vista obter uma maior visibilidade ao Clube, por causa de sua vida e carreira no Flamengo. Nós recusamos a ideia da vida de mulheres serem banalizadas novamente em nome do dinheiro», pode ler-se no comunicado, que teve amplo eco nas redes sociais. «Um feminicida não pode continuar tendo uma vida aclamada pela mídia. Bruno deixou de ser apenas um goleiro, sua imagem e sua fama carregam a prontidão de se aliviar violência de gênero, a facilidade de esquecer a vida de uma mulher», conclui o texto.

Na apresentação, Bruno – que deixou crescer barba e está visivelmente mais magro do que antes da detenção – nunca respondeu a questões que, direta ou indiretamente, aludissem ao caso Eliza. «Considera-se digno de voltar a vestir a camisola de um clube?». Silêncio. «Pode ser visto como um modelo para um pai mostrar a um filho?» Silêncio. Por entre os temas proibidos, Bruno – que em entrevista à revista Veja revelou ter chegado a tentar o suicídio na prisão, antes de ser salvo pela fé religiosa - definiu esta nova oportunidade como uma «porta aberta por Deus».

A mãe de Eliza, que nunca pôde enterrar a filha, tentou, sem êxito, interpor recurso à libertação de Bruno, alegando perigo para o seu neto - o filho que Bruno não quis reconhecer. Rone Moraes, o presidente do Boa, esse acredita que o guarda-redes estará de volta à competição dentro de 40 dias. Até lá a polémica não deverá esmorecer, entre os que defendem o direito às segundas oportunidades e à reintegração dos presos na sociedade e os que consideram esta contratação como o branqueamento de um crime sem expiação, e um sintoma da ligeireza com que o tema da violência de género é ainda visto no Brasil.

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