O ano do embaraço americano - TVI

O ano do embaraço americano

  • Germano Almeida
  • 28 dez 2017, 13:49
Donald Trump e Melania Trump responderam a perguntas de crianças

2017 marcou a entrada na Casa Branca de alguém que não é bem um Presidente dos Estados Unidos. A passagem do tempo comporta um risco: a repetição está a levar à “normalização do inaceitável”. Já quase não se fala em “impeachment”

«Eu não estou aqui para representar o mundo: estou aqui para representar a América.»

(discurso de posse, 20 de janeiro; repetida no discurso ao Congresso, 28 fevereiro)

 

Donald Trump tem tido uma presidência errática e marcada por várias incoerências e inconsistências.

Mas há um traço definidor da sua ação: o atual Presidente dos EUA vê a proteção dos interesses americanos, incluindo os interesses económicos e laborais, como um problema de segurança nacional.

Daí o seu discurso hostil à China e aos mexicanos durante a campanha.

Daí a associação (absolutamente abusiva) que na Travel Ban quis fazer entre conceitos tão diferentes como ameaça do terrorismo/entrada nos EUA de cidadãos de países de maioria muçulmana/interesses dos trabalhadores americanos.

No recente discurso sobre Segurança Nacional, Donald Trump elencou um conjunto de prioridades (e excluiu outras) que denunciam essa visão deturpada que tem da realidade: para o atual inquilino da Casa Branca, as alterações climáticas não são um risco à segurança nacional (em contraste com o seu antecessor, Barack Obama, que em 2015 tinha assinado documento estratégico que apontava a “Climate Change” como “ameaça urgente, crescente e iminente”).

Trump pretende mesmo manter como “mantra” a ideia de “America First” e elege como ameaças a combater de forma prioritária as ascensões da China e da Rússia como “potências revisionistas”, capazes de desafiar o poder, a segurança e a prosperidade dos Estados Unidos.

Para Trump, a chave está na proteção do “modo de vida americano”. É uma visão que mistura demagogia e delírio de grandeza preso ao passado.

Não nos podemos esquecer que este foi o Presidente que chegou à Casa Branca prometendo nos estados do Midwest que iria regressar a economia do carvão e das minas – como se isso fosse possível.

O que é preocupante é que, passado mais de um ano dessa campanha bizarra, muitos dos eleitores Trump nesses estados – perante a objetividade de nada ter sido feito para um suposto regresso a esse “passado glorioso” – ilibam para já o Presidente e continuam a acreditar que ele é “um tipo durão que nos vai proteger”.

Os EUA, depois de 8 de novembro de 2016, caíram numa espécie de paradoxo temporal: acreditam que a “América grande” (dos pressupostos de há três ou quatro décadas” vai mesmo voltar com Trump – e enquanto esse filme revivalista vai rodando nas cabeças de milhões de americanos, o mundo gira e vai virando a sua agulha para a China e para outros potências emergentes.

A afronta de Jerusalém

Com Bush pai, Bill Clinton, Bush filho e Barack Obama, os EUA assumiram, em relação ao conflito israelo-árabe, o papel de mediador e, ao mesmo tempo, "pró-Israel" (mais vincado com os republicanos, menos com os democratas, mas sempre mais próximos dos interesses de Israel que dos palestinianos).

Com Donald Trump, os EUA passaram de "pró-Israel" para... "só Israel". Abdicaram do papel de mediação e vestiram a pele do confronto. Trump, convém não esquecer, é o Presidente da "Travel Ban" com o critério das nacionalidades de maioria muçulmana.

O atual inquilino da Casa Branca, mais do que "pró-Israel", é anti-muçulmano. Isto não é bem um Presidente dos Estados Unidos. 

A obsessão anti-multilateralista

Donald Trump ameaçou cortar o financiamento aos países que votassem na ONU contra a declaração americana de reconhecer Jerusalém como capital de Israel.

Ora, como isso aconteceu com 128 países, veremos se cumpre a promessa. Como isto não é bem um Presidente dos Estados Unidos, nunca se sabe.

O que é mais desconcertante é ver cada vez mais os EUA, nesta bizarra era trumpiana, como uma espécie de "novo pária" da ordem internacional: querem sair do Acordo de Paris, rasgaram o TPP e o projeto de TTIP, ameaçam rasgar o Acordo Nuclear do Irão, ameaçam cortar o financiamento aos programas da UNESCO, renunciaram à Declaração de Nova Iorque (que estabelece consenso alargado sobre a gestão dos fluxos de migração) e agora ameaçam castigar quem vota contra os seus interesses na ONU.

Pois bem: apenas 9 países apoiaram a posição de Trump. 128 votaram contra e 33 abstiveram-se (entre os quais Canadá e México, a mostrar que a proximidade geográfica leva a cuidados redobrados na crítica ao estilo trumpiano).

As exceções que estiveram ao lado da América de Trump foram, obviamente, Israel e países pequenos e irrelevantes, como Honduras, Guatemala, Micronésia, Palau e as Ilhas Marshall. Ver os EUA a fazer esta figura nas Nações Unidas até seria cómico -- se não fosse trágico.

Robin dos Bosques ao contrário

Ainda sobre a “enorme baixa de impostos” que Trump e os republicanos fizeram aprovar ontem no Congresso, importa sublinhar a reação de Nancy Pelosi, líder da minoria democrata na Câmara dos Representantes: “Os republicanos festejaram o facto de terem aprovado um aumento de 86 milhões de dólares para as famílias americanas de classe média, roubando o futuro às crianças dos Estados Unidos”.

O que a Administração Trump fez gala em promover, naquela que está a ser apresentada como “uma enorme vitória para este Presidente”, foi o contrário do que um governo federal deveria fazer: tirou a quem menos tem para dar a quem já muito tinha.

Isso mesmo, uma espécie de “Robin dos Bosques ao contrário”, versão 2017. A ideia, socialmente injusta e ideologicamente radical, surge como uma “reprise” do que foi muito discutido na eleição presidencial de 2012.

Barack Obama, o Presidente democrata a lutar na altura pela legitimação nas urnas de um segundo mandato, chamava a Mitt Romney, seu opositor republicano nas presidenciais, “Romney Hood”: aquele que pretendia tirar rendimentos à classe média e apoios sociais aos mais pobres para aumentar a receita dos mais ricos.

O tema agravou-se nos últimos anos, sobretudo com a pressão dos grupos ligados ao “Tea Party”, que colocavam como condição para financiar candidatos republicanos ao Congresso e a eleições nacionais se estes não impusesses nas respetivas agendas de campanha promessas de aumento de impostos às grandes fortunas.

E, depois, chegámos a Trump.

Ironia das ironias: Donald, no início das primárias republicanas de 2016, era dos poucos candidatos à nomeação do GOP a defender uma certa “progressividade fiscal”. Mas a sua chegada ao poder implicou uma rendição total ao “mantra” dominante da direita americana de reduzir a carga fiscal das grandes empresas e das grandes fortunas, sob a capa de “poder incentivar o investimento e a criação de emprego”.

O resultado será desastroso: estudos de “think tank” politicamente independentes apontam para agravamento do défice americano e consequente redução da possibilidade de apostar em programas de apoio social. De acordo com o ‘think tank’ Tax Policy Center, o Plano Trump agravaria o défice em 2,4 biliões de dólares num prazo de dez anos.

E tamanha redução fiscal não bate certo com outra ideia fundamental da plataforma que levou Trump à Casa Branca: como conciliar esses cortes fiscais e a redução de despesa federal a eles associada com o tal “megaplano de infraestruturas para renovar a América” que Donald tinha prometido? E tudo isso para que, ainda de acordo com a Tax Policy Center, cerca de 50% dos cortes fiscais projetados irem beneficiar apenas os 1% mais ricos. Está de regresso a “trickle down economics”...em versão ainda pior. As fortunas combinadas de Bill Gates, Warren Buffett e Jeff Bezos são equivalentes à riqueza somada dos 50% de americanos com rendimentos mais baixos.

Ora, sendo a desigualdade de rendimentos e o aumento da pobreza dois dos maiores problemas da América na última década (os EUA serão já o país do mundo desenvolvido com maiores desigualdades nos rendimentos), este caminho fiscal desenhado por Trump e os republicanos é politicamente errado e socialmente gravoso. Esperemos que isto tenha consequências eleitorais sérias, já em novembro de 2018. Olhando para as primeiras reações do eleitorado americano, vai mesmo ter.

Vergonha americana

Em tempos normais, quando os EUA eram o farol e a referência, mesmo quem não era seu aliado fazia tudo para estar perto das lideranças americanas. Mas esta era trumpiana, definitivamente, não é normal.

Mike Pence, vice-presidente dos Estados Unidos, teve que inventar um pretexto (votação no Senado sobre a Reforma Fiscal) para adiar visita que tinha agendada ao Médio Oriente. Verdadeira razão: o líder palestiniano, Mahmoud Abbas, recusou-se a recebê-lo. Outros líderes árabes da região (sobretudo o rei jordano) estão ainda muito incomodados com a decisão disparatada e irresponsável do Presidente Trump sobre Jerusalém. Isto não é bem uma administração americana.

O sinal do Alabama

O Alabama é um dos estados mais conservadores dos EUA.

Donald Trump bateu Hillary Clinton naquele estado sulista, na eleição presidencial do ano passado, por 29 pontos percentuais. Desde 1990, todos os senadores eleitos pelo Alabama foram republicanos... até à eleição do início de dezembro.

Na vaga que se disputava para o Senado, o candidato republicano, o juiz Roy Moore, um ultraconservador anti-aborto e pró-armas, que fez comícios de pistola na mão, foi alvo de acusações gravíssimas de assédio sexual a menores. Vários senadores republicanos apelaram a Moore para que se retirasse da corrida. Mesmo assim, teve sempre o apoio de Donald Trump, que em mais um ato de desafio ao "establishment" político e mediático, foi reforçando o suporte político a Roy Moore.

A eleição de dezembro no Alabama tornou-se, assim, no primeiro grande teste à era Trump -- um teste moral, mais até do que meramente um barómetro político. Ora, Doug Jones, o candidato democrata, fez história e venceu com 49.9%, contra 48.4% de Moore.

Ao fim de três décadas, finalmente o Alabama viu um triunfo de um democrata. Enorme derrota para Trump e também para o que foi o seu estratega de campanha e até agosto passado o seu conselheiro-chefe, Steve Bannon.

A derrota de Moore põe em risco a maioria republicana no Senado: já era frágil (52-48, com frequentes situações nos últimos meses de alguns, não muitos, republicanos a não votaram ao lado do Presidente Trump), passa agora a ser de 51-49. Mas o perfil e o historial de Roy Moore era tão complicado que os líderes republicanos no Senado estarão a suspirar de alívio: a entrada do juiz-pistoleiro-acusado-de-assediar-menores seria um sarilho dos grandes para a maioria conservadora em Washington lidar.

Grande conclusão política a tirar: Donald Trump já é um ativo tóxico da política americana.

E isso terá consequências nesta presidência, durante o ano prestes a começar. 

O dilema democrata

No ano político nos EUA, o mês de novembro será crucial para se perceber se ainda valerá a pena lançar o tema "impeachment" neste mandato presidencial de Trump.

Independentemente dos avanços que possam vir a  ocorrer na investigação da Comissão Mueller (e tudo indica que haverá mesmo, talvez já nos primeiros meses do ano), há um "boost" político fundamental que só as intercalares para o Congresso poderão dar.

Sejamos claros: ou os democratas recuperam o controlo das duas câmaras do Congresso ou teremos mesmo que "levar" com Trump, pelo menos até janeiro de 2021.

Ainda falta muito para se antecipar se esse é um cenário provável, mas é de admitir que pelo menos o Senado (que desde a derrota do inaceitável Roy Moore no Alabama está num quase empate, 51-49) possa mudar dos republicanos para os democratas.

Só um terço dos senadores vão a votos no próximo ano, sendo que há mais democratas com o lugar em risco que os republicanos.

No entanto, o caso do Alabama mostrou que pode mesmo haver um efeito penalizador "anti-Trump" que coloca novas perspetivas eleitorais à bancada democrata.

Já no que se refere à Câmara dos Representantes (que vai toda a jogo daqui a 11 meses), por muito que os democratas consigam surfar a onda anti-Trump, a vantagem dos republicanos decorrente das eleições de 2012 é tão grande (239-193) que se torna menos previsível a mudança de dono (ainda que não impossível).

Mas o grande dilema dos democratas em 2018 não é eleitoral -- é político: pôr todas as fichas num "impeachment" de Trump (e ficar, assim, dependentes da velocidade e da qualidade da Comissão Mueller) ou focar-se numa oposição a mais longo prazo, com o grande objetivo de travar a reeleição presidencial de Donald em 2020?

A segunda opção pode exigir mais paciência, mas talvez seja a mais realista e prudente.

Continue a ler esta notícia