Covid-19: os cortes que já começaram e levantam muitas questões - TVI

Covid-19: os cortes que já começaram e levantam muitas questões

Novas tecnologias na baliza: o futebol está a mudar

Alguns dos maiores clubes europeus foram os primeiros a avançar para medidas que passam por reduções salariais. O que está em causa do ponto de vista legal, a regulamentação, os riscos de abusos

O mundo está focado no combate à pandemia do novo coronavírus, mas já há quem tenha dado passos para tentar acautelar um futuro incerto. No futebol foram alguns dos maiores clubes europeus os primeiros a tomar medidas para tentar limitar as perdas previstas de receitas e a primeira delas passa por cortes nos salários de jogadores e funcionários. Isso está a ser feito de várias formas e entre aqueles que já formalizaram a intenção tem havido acordo com os jogadores. Mas também já há casos de decisões unilaterais de clubes, enquanto não existe a real medida do impacto da crise e as autoridades que supervisionam o futebol trabalham em vários cenários para tentar uma abordagem conjunta aos problemas. O Maisfutebol olha para algumas das questões que se levantam, com a ajuda de um especialista em direito do desporto.

Em Portugal não há ainda decisões, com os vários responsáveis a falar em tentar evitar situações de rutura e, pelo lado dos jogadores, o Sindicato a defender o diálogo e a ideia de que há muito «a debater antes de afetar salários», advogando também soluções coletivas e «razoáveis», em função das quebras de receitas nos clubes. Mas lá por fora vários clubes adiantaram-se.

Na Alemanha, o Bayern Munique e o Borussia Dortmund assumiram acordos com os jogadores para a redução de salários, tal como o Borussia MGladbach, o Schalke ou o Werder Bremen, enquanto o Union Berlim anunciou uma outra via, com os jogadores e equipa técnica a abdicarem do salário de um mês.

Em Itália também foi a campeã Juventus a pôr-se na linha da frente, anunciando um acordo com os jogadores que prevê a «redução da compensação num valor igual aos salários de março, abril, maio e junho de 2020» e permitirá ao clube «um impacto positivo» de 90 milhões de euros. De Inglaterra, outra das grandes Ligas europeias, chegam também notícias de cortes. Nalguns casos anunciados como voluntários, como aconteceu com o Leeds, noutros ainda não extensivos a jogadores e treinadores: o Tottenham avançou para um processo de redução em 20 por cento dos salários de funcionários, o que não inclui os jogadores nem a equipa técnica de José Mourinho, recorrendo para alguns casos também a um mecanismo legal semelhantes ao lay-off.

Do ERTE ao lay-off, entre mecanismos legais e acordos

Em Espanha vários clubes avançaram, recorrendo também a um mecanismo legal que permite a uma empresa, por motivos de força maior, assumir uma redução temporária de salários ou de tempo de trabalho, o ERTE (Expediente de Regulação Temporária de Emprego). Esse mecanismo implica que o Estado assegure parte do salário, tal como aconteceu com a solução adotada em Inglaterra por clubes como o Tottenham, o que levanta a questão adicional de implicar dinheiro dos contribuintes. Tanto em Espanha como em Inglaterra estão previstos tetos máximos de contribuição, inferiores a 2000 euros mensais, tal como aliás no regime de lay-off simplificado estabelecido em Portugal para ajudar as empresas a fazer face à crise. Ainda não são claros os processos em cada clube, mas já vimos que tem havido soluções diferentes, nuns casos circunscritas ao orçamento dos clubes e noutros recorrendo a mecanismos da lei laboral, sem ser evidente se e em que medida se pretende estendê-lo a jogadores.

A decisão mais mediática em Espanha foi do Barcelona, onde Messi anunciou que os jogadores aceitaram uma redução de 70 por cento dos salários durante o estado de emergência e irão contribuir para que os outros funcionários do clube recebam o salário na íntegra. Para o «pessoal não desportivo», o clube anunciou ter solicitado um ERTE. Também o At. Madrid pretende avançar para uma redução, que pretende passar igualmente por um ERTE. O Espanhol foi dos primeiros a fazê-lo, anunciando um ERTE que se estende a jogadores e funcionários.

Entre os receios e o «aproveitamento»

Gonçalo Almeida, advogado que trabalhou durante cinco anos em Zurique, junto da FIFA, começa por considerar que, pelo facto de ser prematuro avaliar todas as consequências da crise, também o devia ser estar desde já a falar em cortes salariais. «Trata-se de uma situação inédita, cujas consequências são muito difíceis, se não impossíveis de antecipar. Depende do tempo que esta pandemia se irá alastrar, e depois da possibilidade de retomar ou não as competições», afirma ao Maisfutebol.

«Compreende-se os receios de alguns clubes relativamente a este futuro incerto. Daí a necessidade de, com a devida solidariedade e pressupondo alguma flexibilidade da parte dos jogadores, se alcançarem plataformas de acordo relativamente à redução de salários», acrescenta, mas deixando a salvaguarda de que essa não será uma necessidade imediata dos clubes: «Não me estou a referir ao panorama nacional, mas o panorama nacional não é com certeza exceção. A principal receita ou fonte de rendimento dos clubes são os direitos de transmissão televisiva. Normalmente neste momento da época esses direitos já foram, se não na íntegra, quase na totalidade liquidados. Todas as outras receitas, exceto talvez os patrocínios, são uma percentagem reduzida dos orçamentos dos clubes. Aproveitar uma situação como esta para reduzir salários ou rescindir contratos quando nem sequer fez um mês após as situações de lock down, parece-me que há um aproveitamento.»

O advogado acrescenta ainda que já estão a acontecer casos de rescisões unilaterais dos clubes, o que configura, diz, um abuso. «Tenho assistido nos últimos dias, enquanto advogado, a situações, quer por exemplo na Índia ou na Roménia, em que os clubes unilateralmente já procederam à redução dos salários ou mesmo à suspensão dos contratos de trabalho. E isso parece-me de um enorme oportunismo, agindo de má fé.»

«Depende sempre da livre vontade do jogador»

Gonçalo Almeida alerta para uma questão de princípio na eventual alteração do regime salarial dos jogadores, a necessidade de aceitação por parte destes, algo que já motivou também uma posição do Sindicato de jogadores: «Atendendo a que estamos perante contratos de trabalho de natureza desportiva, este tipo de situações, ou seja, a redução salarial, só é permitida na lei na eventualidade de estar contratualmente disposto que em caso de descida de divisão o salário é reduzido. Doutra forma terá sempre de depender da anuência do atleta, da livre vontade do jogador aceitar ou não. Isso deriva muito claro da legislação atual.»

«A FIFA tem perfeitamente estabelecidos nos Regulamentos do Estatuto e Transferência de Jogadores as regras básicas, universalmente transversais relativamente à estabilidade contratual e às rescisões e consequências. E nada prevê a este respeito, até porque esta como todos sabemos é uma situação inédita», acrescenta: «Mas o regulamento da FIFA é muito claro ao dizer que os contratos não podem ser alterados unilateralmente. Daí a necessidade de os jogadores darem o seu consentimento. E estou certo, pelo menos dos nossos clientes, existe essa disponibilidade. Não pode ser é de imediato, e não pode ser logo três semanas após a interrupção dos campeonatos.»

Lay-off para o desporto, tantas questões

Não havendo uma lógica de abordagem conjunta, as decisões estão nesta fase nas mãos dos clubes e também da respetiva legislação laboral nacional. Caso exemplar o do ERTE, em Espanha, enquanto em Portugal já começa a falar-se no lay-off simplificado, com o presidente do Sindicato a defender que não estão reunidos os pressupostos legais para que este se aplique. E o lay-off, defende Gonçalo Almeida, pode chocar com a lógica laboral desportiva.

«O lay-off é um dos mecanismos legais de redução salarial que constam da lei geral. Mas não estamos aqui a falar numa relação laboral normal. Estamos a falar de uma relação de praticante desportivo, que tem as suas especificidades. No exemplo clássico, o trabalhador comum pode rescindir o contrato sem ter de indemnizar a entidade patronal, de modo geral. No âmbito da relação laboral desportiva o jogador não o pode fazer. É um ativo que pode ou não vir a proporcionar mais-valias do ponto de vista financeiro, se for transferido.»

«Há determinadas figuras previstas na lei que no âmbito da legislação laboral comum fazem todo o sentido. No âmbito da legislação laboral desportiva já necessitam de ser devidamente contextualizadas e não estão atualmente. A relação laboral tem que atender à especificidade do desporto», prossegue: «Pode-se ponderar questões como o lay-off. Mas se alguém decidisse que era aplicável à relação laboral desportiva, então teríamos que aplicar outras questões. Por exemplo, se perante o lay-off o trabalhador se encontra suspenso da sua atividade, quer dizer o quê, que não tem de treinar?» O especialista dá vários exemplos das questões que se levantam: «E o período de treino? E o descanso? E os estágios? E todas as demais obrigações que o jogador tem? Por exemplo, com a suspensão do contrato, será que o jogador pode praticar desportos radicais? Será que o jogador pode fazer o que bem entender da sua vida, sem dar justificação e sem estar sob alçada do poder disciplinar do clube?»

A importância da decisão coletiva e da regulamentação

No caso português, o presidente do Sindicato dos jogadores tem defendido que qualquer solução passe por uma negociação coletiva, para proteger todos os jogadores. Gonçalo Almeida concorda que uma posição conjunta, que não deixe os jogadores dependentes da vontade de cada clube, terá mais força. «A negociação coletiva, na minha opinião, é bastante positiva, porque permite um poder de negociação acrescido aos jogadores», afirma, considerando no entanto que para isso o Sindicato precisaria de «um consentimento expresso e mandato para o efeito de cada um dos jogadores».

No meio disto, aguardam-se diretrizes das entidades que supervisionam o futebol. A FIFA, cujo Regulamento do Estatuto e Transferências do Jogador define os parâmetros gerais para todas as relações contratuais, criou um grupo de trabalho para lidar com as consequências desta crise e, de acordo com informações já divulgadas, tem a intenção de recomendar a clubes e jogadores que cheguem a entendimentos «razoáveis» para redução de salários enquanto durar a paragem, e admite também suspensão de contratos, caso haja uma solução de rendimento alternativo para jogadores ou treinadores. Também estará disposta, segundo disse um porta-voz do organismo à Reuters, a recorrer aos seus fundos para ajudar financeiramente. Mas essas intenções ainda não estão formalizadas.

Abusos «serão recorrentes a curto/médio prazo»

Gonçalo Almeida defende que será importante «regulamentar». «Podem e devem, porque existe uma omissão nos regulamentos relativamente a esta situação», afirma: «No entanto, também importa analisar com o devido cuidado esta nova realidade e aguardar um pouco. Sermos um pouco também mais cautelosos relativamente ao curto prazo, ver até que ponto é que esta pandemia se irá manter e em que grau. E depois agir, o mais brevemente possível, tentando regulamentar estas situações.»

Porque, sem regulamentação orientadora, será mais difícil lidar com os abusos que já são uma realidade. E terão tendência a agravar-se, diz Gonçalo Almeida, com base na sua experiência: «Nós temos quatro jogadores espanhóis que estiveram num clube na Índia, recentemente campeão, que aproveitando esta situação procedeu à rescisão dos contratos de forma unilateral, com base na impossibilidade de as competições prosseguirem. Mas o trabalho estende-se no tempo, não se resume a dois meses de pandemia. Isto é um claro abuso. Este tipo de situações serão recorrentes a curto/médio prazo. Muitos jogadores serão seriamente afetados por esta situação. Não só fruto dos legítimos receios dos clubes, mas por outro lado também daqueles que, agindo de má fé e de forma oportunista, tentam tirar proveito desta calamidade. Deve haver uma intervenção mais rigorosa, mais inflexível.»

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