Covid-19: os prós e contras do passaporte de vacinação - TVI

Covid-19: os prós e contras do passaporte de vacinação

Vários Estados-membros da União Europeia defendem a ideia e até pressionam a comunidade a acelerar o processo

O processo de vacinação arrancou na União Europeia ainda em 2020, e o cenário traçado como hipótese é de uma imunidade de grupo no fim do verão. Com esse objetivo no horizonte, e talvez antes mesmo de ele se concretizar, importa perceber de que forma vamos dar passos em direção a uma vida normal, da qual já fazia parte um frenesim de deslocações nacionais e transnacionais.

Esta sexta-feira, os 27 Estados-membros estiveram reunidos para discutir o tema, que na União Europeia passa pela criação, não de um passaporte, mas de um certificado de vacinação, terminologia que levanta diferentes questões burocráticas, como veremos mais à frente.

No fim da reunião, e numa altura em que Portugal preside ao Conselho da União Europeia, o primeiro-ministro, António Costa, afirmou que o objetivo da União Europeia é criar um "certificado verde" até ao verão, pedindo que haja colaboração de todos os países.

De Espanha e Grécia chegam pressões para que o processo avance. Mais a norte, Dinamarca, Suécia e Estónia já trabalham na emissão dos certificados, enquanto a Polónia já tem disponível um QR Code que pode ser apresentado às autoridades, e que atesta que o cidadão recebeu as duas doses da vacina, estando portanto imunizado.

Um dos grandes objetivos dos defensores do passaporte de vacinação passa por voltar a retomar a atividade turística entre os Estados-membros, mas também com o mundo. É nesse sentido que a Suécia entende que a ideia deve ser concertada na comunidade internacional.

Argumentos a favor

Além de podermos viajar sem restrições, bastando para isso apresentar um papel em como fomos vacinados, há mais argumentos do lado de quem defende a ideia.

Para começar, poderá ser um incentivo à vacinação. Tal como em Portugal, a vacinação contra a covid-19 é voluntária nos restantes países da União Europeia e, portanto, o precisar do certificado para viajar pode convencer alguns.

Além do estímulo económico ao setor do turismo, esta ideia poderá também dar aso a novas oportunidades de trabalho. Poderíamos voltar a deslocar-nos sem grandes restrições, o que facilitaria a troca de bens e a realização de negócios.

Deste ponto beneficiam países como Portugal, ou como a própria Grécia, que faz pressão precisamente perante a chegada do verão, sendo um país altamente dependente do turismo.

Por outro lado, é verdade que há muito tempo que é obrigatório levar vacinas para viajar para certos destinos. Ainda assim, a grande questão centra-se no facto de nem toda a gente poder ser vacinada quando quer, uma vez que as doses disponíveis não chegam para todos.

Em todo o caso, a operacionalização da ideia seria mais fácil, bastando implementar aquilo que já vem sendo feito noutros casos, como em alguns países africanos, que exigem a vacinação prévia contra a febre amarela.

Argumentos contra 

Se as vacinas já em administração (na União Europeia são as da AstraZeneca, Moderna e Pfizer) mostraram ser eficazes na redução da mortalidade e no número de hospitalizações, os dados são ainda escassos no que diz respeito à verdadeira redução na transmissão da doença.

Os especialistas temem que as pessoas que já foram vacinadas possam transmitir o vírus na mesma, o que traria uma complicação para a reabertura do turismo, uma vez que essa pessoa seria um fator de propagação da doença, mesmo que não a desenvolvesse.

Se a transmissão preocupa, esse fator é ainda mais temido quando se fala nas múltiplas variantes detetadas, das quais se sabe ainda muito pouco, mas que se comprovaram mais transmissíveis, e potencialmente mais resistentes às vacinas existentes no mercado.

Neste ponto, aparece em particular a variante detetada na África do Sul, contra a qual algumas vacinas tiveram resultados menos positivos do que contra o vírus original.

Então, e se eu não for chamado para levar a vacina? Um cidadão saudável, com menos de 50 anos, não faz parte dos grupos prioritários de vacinação contra a covid-19. Então, na prática, aqueles que já foram vacinados poderiam viajar, mas esse cidadão não.

Além disso, acresce que pode haver uma espécie de estigmatização para aqueles que recusem ser vacinados, quase como se ficassem numa lista negra, quando, repita-se, a vacinação é voluntária.

Outro dos pontos preocupantes está relacionado com eventuais falsificações desses certificados, podendo colocar em risco a saúde pública.

Há ainda que ter em conta as questões relacionadas com a proteção de dados. Os dados dos boletins de vacina são armazenados nos diferentes sistemas de saúde dos países, mas esta emissão de um certificado poderia significar que muitos dos nossos dados passariam a estar disponíveis para outras pessoas de outros países.

A opinião de Paulo Portas

Para Paulo Portas, existe uma diferença entre um certificado e um passaporte de vacinação. O comentador da TVI24 entende que a terminologia em causa "é menos problemática, e é certificado de vacinação".

Em causa está, desde logo, uma questão de burocracia e de facilidade. Paulo Portas lembra que, para se viajar para certos países, como no continente africano, é preciso um certificado de vacinação válido contra várias doenças, como a malária. Essa é também a realidade para uma simples inscrição escolar, na qual é necessário apresentar o boletim de vacinas atualizado.

Se for um certificado de vacinação para efeitos de viagem naquilo que é um espaço único de circulação, que é a União Europeia, acho que pode facilitar mais do que criar dificuldades", referiu.

Ainda assim, Paulo Portas entende que este pode ser, para já, um passo maior do que a perna europeia, até porque a comunidade só vacinou cerca de 7% da população.

O ponto da discriminação também foi apontado por Paulo Portas, que refere que o certificado de vacinação não pode ser transformado numa "condição de acesso", seja a espaços culturais seja até ao trabalho.

O que deve ser feito e as questões éticas

Para o presidente da Associação Portuguesa de Bioética (APB), o objetivo traçado pelo primeiro-ministro, de ter um "certificado verde" até ao verão, é atingível, mas há várias questões que devem ser analisadas e ponderadas pelas mais diferentes áreas.

O quadro é complexo mas é simples de expor", refere Rui Nunes.

Desta forma, a APB entende que há uma grande questão relacionada com a eventual discriminação dos cidadãos que não sejam vacinados, lembrando que muitos deles não têm poder para escolher isso mesmo, seja por escassez de vacinas, seja por não pertencerem aos grupos de risco.

Para combater esta "desigualdade", Rui Nunes pede que se massifique a vacinação na União Europeia, o que faria com que esse certificado pudesse chegar mais cedo a toda a população. Enquanto esse cenário não está em cima da mesa, o presidente da APB entende que só há uma solução: fazer mais testes.

Desejamos todos abrir a economia, o turismo é central. Fomentar o tráfego aéreo é imperativo, mas não pode ser à custa de discriminar cidadãos. Se vamos permitir o trânsito de quem foi vacinado, vamos estar a discriminar", afirmou.

Ainda assim, Rui Nunes lembra que o passaporte e a testagem podem não garantir, por si só, o fim a que se destinam, lembrando a incerteza em volta da transmissão por parte dos vacinados e o desconhecimento da eficácia das vacinas sobre as novas variantes.

Como solução, as normas mais básicas de saúde públicas devem ser mantidas, acima das quais está a máscara, que deve continuar a ser utensílio generalizado nos aeroportos e infraestruturas de transporte.

Sobre a meta traçada por António Costa, Rui Nunes diz que é possível, mas que deve haver uma concertação entre os 27 Estados-membros: "Não pode haver uma Europa a três velocidades, deve haver uma concertação entre os países".

A APB espera ser convidada a dar a sua opinião sobre esta questão, tal como tem vindo a acontecer até aqui em relação a outros assuntos que levantam questões éticas relacionadas com a saúde.

As normas que não podem faltar

Para a Universidade de Oxford, que até é parceira de uma das farmacêuticas que desenvolveu uma vacina (a da AstraZeneca) a questão deve ser ainda mais aprofundada. Este tema pode e deve ser tido em conta, mas os especialistas da instituição apontam "12 desafios".

  • estabelecer valores referência da imunidade contra a covid-19;
  • acomodar as diferentes eficácias das diferentes vacinas, e eventuais mudanças relacionadas com o surgimento das novas variantes;
  • corresponder a padrões definidos internacionalmente;
  • ter credenciais verificáveis;
  • ter aplicações definidas;
  • ser baseado numa plataforma de tecnologias interoperáveis;
  • ser seguro para os dados pessoais;
  • ser facilmente transportável;
  • ser acessível a pessoas individuais e a governos;
  • responder às exigências legais;
  • responder às exigências éticas;
  • ter condições de uso que sejam claras e aceites pelos portadores do passaporte.

Um dos pontos mais frisados pelo relatório da Universidade, que foi elaborado pelos professores Melinda Mills e Chris Dye, assenta na necessidade de haver pontos claros sobre as diferentes eficácias sobre as vacinas.

É certo que os diferentes produtos apresentaram resultados clínicos distintos, mas nem é só isso que está em causa. E se a vacina da AstraZeneca proteger contra a variante britânica, mas a da Pfizer não? E se a da Moderna garantir que não há transmissão por parte dos vacinados mas a da AstraZeneca não conseguir dar essa mesma garantia? São questões importantes que também devem ser tidas em conta.

Perceber qual será o objetivo do uso do passaporte de vacinação é uma questão fundamental. É um passaporte para permitir as viagens internacionais ou para uso doméstico?", questiona Melinda Mills, que também pede uma total exploração das bases legais e éticas, pedindo que não exista discriminação de cidadãos".

O plano em prática

Se a dúvida está em como é que este certificado funcionaria na prática, há já forma de o verificar. Em Israel, o documento que atesta a vacinação está já a ser usado como meio de acesso desde a semana passada.

Aqueles que já receberam as duas doses da vacina podem assim entrar em hotéis ou ginásios, mediante a apresentação de um certificado.

O mesmo acontece na Arábia Saudita, que tem uma aplicação móvel onde podem ser consultados os dados de vacinação. Mais por perto, a Islândia já trabalha com um certificado que permite aos seus cidadãos saírem do país.

Um passaporte de vacinação está também a ser testado por algumas companhias aéreas da Oceânia, na Austrália e Nova Zelândia. No caso da Air New Zealand o documento será digital, e vai entrar em prática em abril, nos voos que liguem Auckland a Sydney.

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