A história do homem que passou 46 anos na prisão mas era inocente - TVI

A história do homem que passou 46 anos na prisão mas era inocente

Richard Phillips é inocente, mas esteve preso durante 45 anos

Foi preso com 26 anos e acusado de um crime que não cometeu. Saiu da prisão em outubro de 2019 e quis fazer justiça pelas próprias mãos

Passou 46 anos na prisão e vai ficar na história dos Estados Unidos como a mais longa sentença de prisão ilícita do país. 

Desde sempre com uma vida complicada, Richard Phillips, natural do Estado norte-americano do Michigan, foi condenado a prisão perpétua em 1972 pelo homicídio de Gregory Harris, em Detroit. Tinha 26 anos, uma mulher e dois filhos, e era inocente. Só foi libertado em outubro de 2019.

Já na prisão, foi através do colega de cela que soube da condenação de Fred Mitchell, o verdadeiro autor do crime, em 1979. Phillips queria fazer justiça pelas próprias mãos. Pegou numa faca e chamou um amigo. Ficaram a controlar do lado de fora do refeitório da prisão à espera que Mitchell chegasse ao 'ponto cego', um local que não era vigiado pelos guardas.

De acordo com a história contada pelo próprio à CNN, os dois conheceram-se na rua. Phillips tinha 12 anos quando o padrasto alcoólico o maltratou. Em causa estava o desaparecimento de um relógio. Quanto mais o jovem dizia que não sabia de nada, mais o padrasto lhe batia com um cinto de couro. A mãe, com medo, não conseguiu fazer nada. 

Para que o padrasto parasse de lhe bater, Phillips foi obrigado a dizer que era culpado e contou que tinha dado o relógio a um colega de escola.

Foi nesse momento que prometeu a si mesmo queera a última vez que confessava algo que fosse mentira. Depois dessa noite, mais uma passada no sótão infestado de baratas, fugiu de casa. 

A polícia encontrou-o no dia seguinte e levou-o de volta, mas Phillips voltou a fugir. Nas ruas de Detroit, onde se entretinha a pintar, conheceu Mitchell. 

Pouco se sabe sobre aquele que viria a ser o pior inimigo de Phillips, o seu melhor amigo na altura. Viviam em Detroit, cidade onde se registava um elevado número de crimes violentos. 

Mais tarde, os caminhos separaram-se. Mitchell foi noticia na única edição do Detroit Daily Dispatch por matar um homem depois de uma discussão, enquanto Phillips estava a cumprir liberdade condicional, por um crime leve, e a trabalhar. 

O grupo de adolescentes do qual tinha feito parte ficou para trás. As prioridades eram outras e Teresa, a namorada, estava grávida. Permaneceram juntos, casaram e tiveram mais um filho. Ambos com empregos fixos, viviam num apartamento em Gladstone. Phillips estava a dar à família o que nunca tinha recebido: amor, qualidade de vida e um natal feliz. 

Aos 25 anos, durante uma brincadeira no trabalho, Phillips foi injustamente acusado e despedido. Sem emprego e num fase complicada do casamento, as circunstâncias levaram-no de volta a Mitchell. Foi aí que conheceu Richard Palombo com quem passava as noites a consumir heroína em quartos de motel. 

Na noite de 6 de setembro de 1971, depois de ter levado os filhos a uma feira em Michingan, a vida do homem que se dividia entre o vício das drogas e o papel de pai, mudou.

Nessa mesma noite, dois homens assaltaram uma loja de conveniência. Palombo foi detido e confessou o crime, mas a polícia queria saber quem tinha sido o cúmplice. Mitchell e Phillips foram detidos e apresentados às testemunhas que deram Phillips como culpado. 

Palombo foi julgado em novembro, contou tudo o que tinha acontecido, mas recusou-se a confessar quem tinha estado com ele. 

"O silêncio é por não querer incriminar ninguém?", perguntou o juiz. A resposta foi afirmativa. 

Um silêncio que se prolongou por 39 anos, agravado pela descoberta do corpo de Gregory Harris, desaparecido desde junho quando saiu de casa para ir comprar cigarros. A autópsia confirmou que Harris tinha sido baleado várias vezes na cabeça. 

A descoberta coincidiu com a prisão de Mitchell, por um crime leve. Foi durante este julgamento que confessou ter informações sobre a morte de Harris, incriminando Palombo e Phillips. Sem provas físicas, a polícia acreditou no depoimento e Mitchell tornou-se testemunha do caso. 

Mitchell disse saber qual o plano dois amigos e confessou ter sido ele a ligar para Harris e a convencê-lo a encontrar-se com Phillips e Palombo. A testemunha explicou também que este teria sido um ato de vingança por Harris ter assaltado a mãe.

No entanto, o estado de Michingan apresentou outra versão da história. Apontavam o irmão da vítima mortal como ladrão de um primo de Palombo. Uma teoria que caiu por terra quando o pai de Palombo afirmou que esse primo não existia. 

Depois de ter sido condenado a prisão perpétua, Phillips afirmou não ter nada para dizer. 

“Exceto o facto de eu não ser culpado mesmo que tenha sido considerado como tal. Agora não há muito a fazer para corrigir a injustiça, tudo o que posso fazer é esperar até que algo aconteça a meu favor”, disse.

Os filhos nunca o foram visitar por decisão do próprio que não queria que os dois jovens - na altura do crime Rita, a filha mais velha, tinha quatro anos e Richard Júnior dois - entrassem na prisão e escreveu à mulher a pedir para a família seguir em frente.

Na prisão, a poesia foi a sua grande companheira. 

Não é um crime
Quando não tens um centavo
Para comprares de volta a liberdade que perdeste?

 

Não é pecado

Quando o teu amigo mais próximo

Não te vai ajudar?

 

Não é uma regra

Isso é ensinado na escola

Isso diz: "Seja gentil com seu próximo?"

 

Não é estranho

Que quando rezas a Deus

E as tuas orações não parecem ser ouvidas?

 

Não é triste
Quando nunca tiveste

A liberdade de um pássaro livre?
escreveu Phillips em 1977, quando estava preso há cinco anos. 

Depois da poesia, o desenho

Foi na prisão que Phillips começou a fumar, um hábito que repudiava e pelo qual criticava o padrasto e a mulher. Mas foi a oferta de um maço por parte de um colega de cela no Natal, que o fez começar a viver a época de outra forma, tendo oferecido presentes a outros reclusos até enviado alguns brinquedos aos filhos. 

No ano em que completou 44 anos, Phillips encontrou algo que o preenchia mais do que a poesia: o desenho. Lia livros que estavam biblioteca para buscar inspiração e Van Gogh era o artista que mais admirava. Pintava tudo o que a imaginação e os livros lhe ofereciam e, por vezes, esquecia-se que estava dentro daquela prisão há 20 anos. 

Em 1992, Helen Brown, advogada, leu todos os documentos do processo e incrédula.

"Todas as evidências pareciam ser contra a testemunha", afirmou a advogada que acreditou que os dois condenados não tinham dito direito a um julgamento justo. 

Enquanto isto, cá fora, a família estava diferente. A mulher conseguiu um emprego melhor e encontrou um novo amor, mas para os filhos foi difícil lidar com a prisão do pai. Acreditavam na inocência, mas tudo o que ouviam provava o contrário. 

Dentro da prisão, Phillips continuava a pintar e todas as obras eram enviadas para Doreen Cromartie, uma amiga que vivia em Nova Iorque. 

Helen Brown tentou pedir novos julgamentos para os dois condenados e acusou o tribunal de má conduta durante o julgamento. Alegações que foram negadas. Quanto a Palombo e Phillips, os juízes consideraram, mais uma vez, que não havia provas suficientes. 

Em 2009, Michigan Parole and Commutation Board concederam a Phillips uma audiência pública. Um dos membros do conselho, David Fountain, explicou ao suspeito que ele só tinha de dizer as coisas certas para ser libertado. Com 63 anos, Phillips concordou em dizer a verdade. Ao procurador-geral, Cori Barkman, respondeu que não tinha nada a ver com a morte de Harris. 

Em 2010 foi a vez de Palombo ser ouvido e o medo que negou sentir em 1972 parecia, agora sim, já não existir. Mitchell estava morto. 

Frente ao juiz, Palombo contou que ele e Mitchell se conheceram na prisão, dois anos antes do homicídio. Foi aí que começaram a planear um assalto para vingar o roubo à mãe de Mitchell. O plano parecia ideal, mas faltava um pormenor importante para a fuga: o carro. Os dois combinaram então encontrar-se na paragem do autocarro. Palombo chegou primeiro e, ao fundo, ouviu Mitchell a chamar de dentro de um carro.

Juntos apanharam boleia de Harris. Palombo ficou no banco de trás e foi quando Harris parou para comprar cigarros que Mitchell pôs a arma à cintura e disse ao amigo que o ia matar. Não passou muito tempo até acontecer. Mitchell pediu a Harris para parar num beco onde iriam preparar o assalto, mas quando o condutor encostou, Mitchell deu-lhe um tiro na cabeça. 

Mas, em toda a confissão faltava um elemento: Phillips. 

"Eu não conhecia o Phillips no dia 4 de julho de 1971", confessou Palombo. "Conheci-o num churrasco na casa do Mitchell, cerca de oito dias depois do assassinato. Ele é inocente".

Em 2014, foi o próprio que pediu para Phillips ser notificado pela Clínica de Inocência da Faculdade de Direito da Universidade do Michigan e ser novamente julgado, mas não correu como seria de esperar. Em julgamento, pediram para Philips se declarar culpado e sair da prisão. 

"Prefiro morrer na prisão do que admitir algo que não fiz", afirmou.

Foi preciso esperar até 2017 para renascer a esperança. O juiz do condado de Wayne, Kevin Cox, ouviu o julgamento e teve conhecimento do bom comportamento de Phillips. Propôs então que saísse em liberdade condicional e que voltasse apenas para um novo julgamento. 

Julie Baumer, que vivia com o pai, ofereceu-se para o acolher e o ajudar a reconstruir a vida. A 14 de dezembro de 2017, estava sentada no sofá à espera de Phillips. Tinha 71 anos e este era o primeiro Natal dos últimos 50 anos em que tinha um pijama fresco e uma casa de banho privada. As primeiras refeições trouxeram-lhe de volta a alegria. 

Em março de 2018, com 73 anos, conheceu a liberdade total. O Ministério Público de Wayne admitiu a injustiça. A história que Mitchell tinha contado não era verdade. Em 2019, o gabinete da procuradoria-geral estadual informou que iria receber 1,3 milhões de euros de indemnização. 

A vida estava a correr bem e encaminhar-se, mas nem tudo era perfeito. Phillips deixou cá fora dois filhos, que cresceram sem um pai presente. O mais novo tem já 50 anos. Viram-se pela última vez quando tinha dois anos. Quanto à filha, vive em França e disse não querer ver o pai. 

"Eu podia estar morto", conta. "Não posso reclamar. Tenho 73 anos e 95% de todos as pessoas que eu conheci na prisão estão mortas"

Quanto a Mitchell e ao reencontro de ambos na prisão em 1979, Phillips diz ter ouvido uma voz que o impediu de continuar. Mesmo com um erro da justiça, da polícia, da acusação do advogado de defesa, do júri e do juiz, soube que se tornava num assassino quando o que queria era liberdade e justiça. 

Quanto àquele que lhe destruiu a vida, suicidou-se na prisão aos 49 anos. Palombo morreu já este ano vítima de infeção por Covid-19

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