Os curdos do Iraque votaram a favor da criação de um estado independente no referendo não vinculativo de segunda-feira. Mais de 92% dos votos são a favor de uma independência, anunciou esta quarta-feira a comissão eleitoral local. O resultado enfureceu o governo de Bagdade e as potências regionais como a Turquia e o Irão, que não reconhecem o referendo, ameaçam com manobras militares e discursos hostis.
O primeiro-ministro iraquiano, Haider al-Abadi, afirmou que o Iraque irá tomar "as medidas necessárias" para preservar a unidade do país.
Tomar uma decisão unilateral que afeta a unidade do Iraque e a sua segurança, bem como a segurança da região, com um referendo de separação é contra a Constituição e a paz civil", disse o chefe do governo iraquiano durante um discurso transmitido pela televisão estatal.
Tomaremos as medidas necessárias para preservar a unidade do país", acrescentou Haider al-Abadi, sem dar mais detalhes.
Também o Conselho de Segurança Nacional da Turquia, após uma reunião presidida pelo presidente do país, Recep Tayyip Erdogan, classificou o referendo curdo como uma "ameaça à segurança nacional" e alertou para eventuais consequências. Recep Erdogan acusou, na terça-feira, o chefe do governo daquela região autónoma do Iraque de “traição” e ameaçou cortar o abastecimento de bens alimentares.
Erdogan qualificou ncomo uma "deslealdade" e uma "ameaça à segurança nacional" o referendo que foi levado a cabo no país vizinho, advertindo que, caso as aspirações persistam, os curdos irão "passar fome".
Erdogan diz que esperou "até ao último momento" que o presidente do Governo regional do Curdistão Massoud Barzani adiasse a votação. "Se Barzani e o Governo Regional Curdo não recuarem neste erro o mais depressa possível, depressa irão ficar na história com a vergonha de terem arrastado a região para uma guerra étnica e sectária", advertiu.
Os oleodutos de petróleo vindo do Curdistão passam pela Turquia e Erdogan ameaçou cortar essa principal fonte de receita, assim como o transporte de bens alimentares para a região: “Acabará tudo quando nós fecharmos os oleodutos, todas as receitas vão desaparecer e eles não serão capazes de arranjar comida quando os nossos camiões deixarem de ir para o norte do Iraque.”
Abandonem esta aventura que apenas vos pode conduzir para um fim negro”, insistiu.
Presidente curdo quer "amizade", Síria admite entendimento
Face à animosidade dos vizinhos turcos e iraquianos, o presidente do governo regional do Curdistão já veio apelar ao diálogo. Massoud Barzani pediu ao primeiro-ministro iraquiano, Haider al-Abadi, que, "no lugar das ameaças, sejamos amigos".
O referendo não busca impor uma realidade, nem delimitar as fronteiras do Curdistão. Queremos é que o povo curdo decida o seu futuro", explicou o governante.
"Estamos dispostos a encontrar uma solução para os nossos problemas porque a paz é a nossa opção", acrescentou.
Os governos iraquiano, turco e iraniano temem que a decisão do Curdistão influencie os curdos na Síria, na Turquia e no Irão.
Apesar da pressão iraniana, iraquiana e turca, o governo sírio está aberto a negociar independência curda dentro das fronteiras sírias. Walid al-Moualem, ministro sírio dos Negócios Estrangeiros, disse que "este tópico poderá ser negociado depois de eliminar o Estado Islâmico".
Depois de eliminarmos os Daesh podemos sentar-nos com os nossos filhos curdos e chegar a um entendimento", afirmou.
"Um passo em falso pode ser muito perigoso"
Marta Trigo da Roza está em Erbil, no Iraque, a fazer uma tese de mestrado sobre nacionalismo e feminismo no Curdistão do Iraque para o Instituto de Estudos Políticos de Paris. À TVI24 explicou que a situação que se vive atualmente, na sequência do referendo, é "frágil" e que "um passo em falso" pode ser muito perigoso.
A situação hoje, nesta fase pós-referendo, é frágil. A Turquia esta a fazer demonstrações de força na fronteira, o Irão já parou os voos para o Curdistão do Iraque e Bagdade promete fechar o aeroporto de Erbil a partir de sexta-feira. Em princípio, isto são demonstrações de força que deveriam ficar resolvidas na próxima semana, mas nunca se sabe. Se algum deles dá um passo em falso, é uma situação muito perigosa para a região", frisou.
Ainda assim, frisou, "o mais provável é que depois destes primeiros dias turbulentos o equilíbrio seja restabelecido". "Os curdos não têm intenção de proclamar a independência com base nestes resultados", acrescentou.
Marta Trigo da Roza explicou que este referendo não deverá ter nenhuma repercussão prática e as coisas deverão "continuar como sempre nos próximos dez anos". A importância desta consulta, frisou, está relacionada com o facto de legitimar o poder de Barzani e dar algum poder de negociação aos curdos.
O mais provável é que depois destes primeiros dias turbulentos pós-referendo, o equilíbrio seja restabelecido. Os curdos não têm intenções de proclamar a independência com base nestes resultados. Para Barzani, este referendo é uma espécie de legitimação do seu poder e abertura para futuras negociações quando a situação regional estiver um pouco mais controlada. Estamos a falar de um processo que demoraria uma década quase", afirmou.
O território geocultural do Curdistão estende-se pelo Iraque, Turquia, Síria e Irão, onde vivem fragmentados cerca de 37 milhões de curdos. Uma vitória do "sim" no referendo do Curdistão iraquiano pode desencadear um "efeito dominó" noutros países.
Os curdos são o quarto maior grupo étnico no Médio Oriente, mas têm permanecido sem Estado desde o colapso do Império Otomano.
No Iraque, os curdos são cerca de cinco milhões e conseguiram consolidar o seu território no rescaldo da primeira Guerra do Golfo. A região autónoma conta com um Governo Regional, formalmente reconhecido pela Constituição iraquiana em 2005.
Marta Trigo da Roza explicou que, nos últimos tempos, a luta contra o Estado Islâmico deu-lhes a visibilidade para se apresentarem, no plano internacional, como um povo distinto.
A participação dos curdos e dos seus peshmergas foi essencial na luta contra o Estado Islâmico e contribuiu muito a legitimar no plano internacional o povo curdo como um povo distinto ao povo árabe. Os medias mostraram como os curdos se debatiam contra o Estado Islâmico e o mundo ficou a conhecer quem eles eram. Mas, essencialmente, o mais importante é que o Estado Islâmico enfraqueceu o estado central de Bagdad e, por isso, mais do que mostrar as vontades independentistas dos curdos (que sempre existiram) este referendo é prova do caos nacional e regional", concluiu.