Entre o “Grande Fiasco” de Hanói e a farsa em Washington - TVI

Entre o “Grande Fiasco” de Hanói e a farsa em Washington

  • Germano Almeida
  • 4 mar 2019, 16:54
Kim contou os dias para o reencontro com Trump

Donald Trump teve tudo para ter tido uma semana horrível: o seu advogado durante uma década arrasou-o, sob juramento, em pleno Congresso; abandonou de forma abrupta a Cimeira de Hanói com Kim Jong-Un, depois de ter ignorado os avisos dos seus próprios serviços de inteligência, que o tinham alertado para o risco de fracasso de um segundo encontro claramente precipitado. Mas Trump é Trump – e está a inverter de tal modo os factos que a sua base continua a acreditar nele

“Os democratas criaram um novo fundo para bater ao insistirem na audição de um mentiroso fraudulento no mesmo dia em que uma cimeira muito importante decorria com a Coreia do Norte e pode ter contribuído para o meu abandono dessa cimeira. Isso nunca tinha acontecido enquanto um presidente estava no estrangeiro. Vergonha!”

(Tweet de Donald Trump)

 

CONGRESSISTA REPUBLICANO DO ARIZONA PAUL GOSAR – Você é um mentiroso patológico. Não conhece a diferença entre verdade e falsidade.

MICHAEL COHEN – Desculpe, senhor congressista. Está a referir-se a mim ou ao Presidente?

"Senhor Presidente, faça um favor ao país: não se candidate"

NANCY PELOSI, speaker da Câmara dos Representantes, congressista democrata da Califórnia

"Há provas de ligação direta entre os russos, através de seus intermediários, a campanha presidencial de Donald Trump, de modo a prejudicar a campanha de Hillary Clinton"

ADAM SCHIFF, líder do Comité de Inteligência da Câmara dos Representantes, congressista democrata da Califórnia

Depois de ouvir e ver a audição de Michael Cohen ao Congresso, Eliot Cohen, professor de Estudos Estratégicos na Universidade Johns Hopkins, elaborou, em artigo na “The Atlantic”: Mais cedo ou mais tarde, os tiranos são sempre abandonados pelos seus seguidores. Trump até pode aguentar-se até à eleição de 2020. É até possível, embora consideravelmente menos provável, que seja reeleito e caminhe para uma reforma dourada nas propriedades Trump na Florida e em Nova Jérsia. Mas começa a ser consideravelmente mais provável e expectável que tudo isto acabe em desgraça”.

O problema é que estamos a falar de Donald Trump – o “presidente teflon”, que não só parece resistir a toda e qualquer sujidade como, de algum modo, baseou a sua ascensão política neste tipo de expedientes.

Os primeiros indicadores pós-audição de Cohen e pós-fracasso da Cimeira de Hanói mostram que Trump se aguenta com cerca de 40% de aprovação e um apoio muito sólido na sua base eleitoral.

O dia da audição de Cohen no Comité de Supervisão da Câmara dos Representantes foi um dos mais significativos desta sombria era Trump.

Sob juramento, o advogado do atual Presidente dos EUA durante uma década, chamou mentiroso, racista, vigarista e batoteiro ao seu antigo cliente e atual inquilino da Casa Branca.

Acusou o seu filho, Donald Trump Jr, de ter assinado pagamento ilegal a Stormy Daniels, para que a antiga amante do pai se calasse.

Acusou o Presidente dos EUA de ter ordenado o envio de cartas a ameaçar antigos colegas de faculdade, para que estes nunca revelassem as notas que Donald teve, num episódio que demonstra o egocentrismo perigoso de quem neste momento ocupa o cargo político mais influente do mundo.

Trump, que se propala “génio estável”, é, afinal, um mentiroso compulsivo que faz tudo para tentar parecer o que não é – e tem medo que se descubra que Barack Obama, o seu antecessor, era muito melhor aluno do que ele.

A Universidade de Fordham confirmou a acusação, agravando os contornos de uma história que até podia ser cómica -- mas como se trata do atual Presidente dos EUA, infelizmente é apenas trágica.

Cohen acusou também Trump de ser “ainda mais racista em privado” do que já se mostrou em público. Revelou que, numa altura em que Barack Obama era Presidente dos EUA, não conseguia encontrar “um único país liderado por um negro que não fosse um lugar de merda” (“shithole country”). Sentenciou: “Trump é alguém que usa o cargo para aumentar a sua marca, não para fazer bem ao país”.

Acusou ainda o seu antigo cliete de promover, junto do seu conselheiro de comunicação, Roger Stone, a violação de privacidade obtida pelo Wikileaks dos mails do DNC para prejudicar Hillary. E apontou para algo que reforça tese elaborada nos dias a seguir à eleição de 2016: “Ele não tinha reais intenções de liderar a nação, apenas quis fazer marketing pessoal com a campanha, construindo ainda mais riqueza para si e não para os outros. Dizia que a campanha era o maior “infomercial” da história”.

É claro que poderá haver quem continue a acreditar em Trump, achando que todos os outros estão errados e fazem parte duma “conspiração contra o povo americano que tinha o direito de eleger alguém como ele para a Casa Branca”. Mas isso só é possível se preferirem acreditar em Trump e achar que Jim Mattis, Rex Tillerson, John Kelly, Gary Cohn, HR McMaster, Reince Priebus, Michael Cohen e tantos outros estão todos errados e a mentir.

O vento está a mudar

Elijah Cummings, congressista democrata do Maryland, uíder do Oversight Committee da Câmara dos Representantes desde 3 de janeiro passado, tinha lançado o aviso: "Senhoras e senhores, os dias em que este comité protegia e encobria o Presidente a todo o custo acabaram. Simplesmente, acabaram!"

Tudo indica que um dos próximos “clientes” desta comissão será o genro do presidente, Jared Kushner. E a versão final do Relatório Mueller estará aí a rebentar.

A audição de Michael Cohen no Congresso deu à MSNBC (cadeia televisiva norte-americana mais ligada à esquerda) o seu melhor dia de sempre -- com exceção para as datas de eleições presidenciais nos EUA (2008, 2012, 2016). Em dias que não sejam de eleição presidencial, nunca a MSNBC tinha atingido o pico de audiência que alcançou na passada quarta-feira: 2,652 milhões -- mais 400 mil que a FOX News e mais 600 mil que a CNN. O "Rachel Maddow Show", de análise política da MSNBC, foi o programa do cabo mais visto esta semana nos EUA. Se nos anos Obama a FOX News crescia perigosamente, o êxito da MSNBC nesta estranha era trumpiana não deixa de ser muito significativo. O vento parece, finalmente, estar a mudar.

A precipitação de Hanói

A Cimeira de Hanói não foi só uma demonstração clara de que Trump é um presidente de fachada, que ignora os avisos da sua própria administração e dos serviços de inteligência norte-americanos (que o tinham alertado para a precipitação de aceitar novo encontro com Kim quando os norte-coreanos pouco ou nada avançaram nos últimos meses em matéria de desnuclearização) e dá única e total prioridade às aparências e às perceções.

O que o lamentável número realizado no Vietname por Donald e Kim revelou foi que, para o atual Presidente dos EUA, é suficiente a palavra de um ditador cruel e pouco confiável para que um acontecimento com a gravidade da morte de Otto Warmbier (estudante norte-americano preso e provavelmente torturado de tal forma pelo regime de Pyongyan que viria a morrer pouco depois de ter regressado aos EUA) passe impune.

“Kim disse-me que não sabia desse caso e eu acredito nele”, comentou Donald. Das duas, uma: ou Trump voltou a querer fazer de nós parvos (alguém acredita que Kin Jong-Un não quisesse controlar por completo o que iria acontecer a um cidadão americano preso na Coreia do Norte?) ou é tão incompetente que nem faz ideia do que este caso envolveu – e minimizou, de forma irresponsável, o destino de um cidadão do país que lidera. Quando afirmo que “isto não é bem um Presidente dos EUA”, é precisamente disto que estou a falar.

A “emergência” em emergência

Os próximos dias ditarão a sorte de outro tema crítico em Washington DC.

O senador Rand Paul, do Kentucky, é o quarto republicano que já anunciou publicamente que vai votar contra a aprovação da emergência nacional decretada pelo Presidente Trump para obter acesso a financiamento para a construção do muro na fronteira sul com o México, juntando-se, assim, aos senadores republicanos Susan Collins (Maine), Lisa Murkowski (Alasca) e Thom Tillis (Carolina do Norte).

Se estes quatro senadores mantiverem até ao momento do voto o que já assumiram em público (e se todos os 47 senadores democratas também votarem contra), Donald Trump não terá votos suficientes para travar na câmara alta, o Senado, apesar de maioria de 53 senadores republicanos, a resolução já aprovada pelos democratas (e também por 18 republicanos) na Câmara dos Representantes, que impede a aplicação da emergência nacional.

Será que Trump terá mesmo coragem de usar o poder de veto para benefício próprio? Não será isso um claro sinal de abuso do poder presidencial?

As próximas semanas vão ser animadas.

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