Histórias da Casa Branca: desta vez a coisa é séria - TVI

Histórias da Casa Branca: desta vez a coisa é séria

  • Germano Almeida
  • 17 fev 2017, 21:07
Ivanka Trump

A lista de pontos fracos do primeiro mês da Presidência Trump parece interminável. Pontos fortes? Não há. A perturbação total passou a ser o novo normal

Com Donald Trump na Casa Branca, o caos passou a ser o novo normal.

Para lá de reações como "choque", "indignação", "escândalo", "perplexidade" ou "apreensão", perante tanto erro, tanta falsidade, tantas trapalhadas e tanto disparate feito em tão pouco tempo por elementos que ocupam funções com tanto poder, este primeiro mês da Presidência Trump provoca, essencialmente, desconforto e pena a quem gosta tanto dos EUA e admira tanto aquele grande país.

Como foi possível que alguém tão impreparado, tão irresponsável e tão inconsistente tenha conseguido chegar à presidência dos Estados Unidos?

Pontos fracos do primeiro mês de Trump na Casa Branca: o Presidente; os tuits do Presidente; a comunicação do Presidente; a pressa do Presidente em somar ordens executivas unilaterais, sem qualquer respeito pelos restantes poderes, sobretudo o Congresso; a dificuldade de membros de topo da Administração diretamente escolhidos pelo Presidente passarem no crivo do Congresso... de maioria republicana; as contradições entre setores chave da Administração (sobretudo Defesa e Departamento de Estado) e a Casa Branca; a queda precoce do Conselheiro de Segurança Nacional; a inconstitucionalidade da "Immigration Ban"; as mentiras descaradas da conselheira sénior do Presidente para a Comunicação (Kellyanne Conway) e do porta-voz da Casa Branca (Sean Spicer); a foto de Ivanka Trump, filha do Presidente e sem qualquer função oficial na Casa Branca, sentada em plena Sala Oval na cadeira do Presidente, com Trump e o primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, sorridentes a ladearem a filha do Presidente.

Pontos fortes: não há.

A queda precoce do general Flynn do cargo de Conselheiro de Segurança Nacional terá sido o momento em que ficaram mais evidentes as tensões e as contradições internas na Administração Trump.

Mesmo os membros do núcleo mais próximo de Donald dão mostras de não confiar no Presidente. E está para durar a guerra aberta entre Casa Branca e “media” e Casa Branca e partes fundamentais do poder judicial e da comunidade de inteligência.

O Wall Street Journal avançou há dias que os serviços de inteligência norte-americanos "têm evitado partilhar com o Presidente dos EUA informações de matéria sensível" porque, simplesmente, "não confiam" na forma de Donald Trump tratar com informações secretas e que mexam com assuntos fundamentais para a segurança dos EUA.

O grau de desconfiança entre Casa Branca e principais agências de informações e Serviços Secretos é enorme -- e mútuo. Trump acusa a "intel conmunity" de ter provocado a queda do general Flynn, as agências terão dados comprometedores em relação à interferência russa na ascensão de Trump à Casa Branca.

Os contactos entre assessores de Trump e oficiais russos eram "constantes" durante a campanha presidencial. O general Flynn já foi, entretanto, interrogado pelo FBI e será alvo de investigação especial do Senado, promovida pelo próprio líder da maioria republicana, Mitch McConnell.

As ondas de choque da "interferência russa" na vitória de Trump sobre Hillary podem estar apenas na fase de "ponta" do icebergue.

Robert Howard, NAVY SEAL na reserva (foi 'marine' durante 38 anos), antigo número dois de James Mattis (atual Secretário da Defesa) no US Central Command, era a escolha de Donald Trump para suceder ao general Flynn no Conselho de Segurança Nacional. Um perfil completamente diferente de Flynn, maior coesão entre o Pentágono e o Conselho de Segurança Nacional e reforço da ideia de que o Presidente está a aproveitar a "crise dos russos" para acabar de vez com a "excessiva proximidade" com Putin e fazer valer a via de James Mattis de "estratégia adversarial" com Moscovo. Faria mais sentido assim. Mas Howard recusou, em mais um sinal das tensões internas que se vivem na esfera Trump.

Noutro momento conturbado, Andrew Puzder, apontado por Donald Trump para Secretário do Trabalho, desistiu do processo de confirmação no Senado, depois de vários senadores republicanos terem avisado a Casa Branca que não haveria votos suficientes para a aprovação.

O que tem acontecido neste primeiro mês de presidência Trump ultrapassa, em muito, os argumentos ficcionados das séries sobre os corredores do poder em Washington. A realidade pode mesmo ser muito mais criativa -- e assustadora -- do que a ficção.

Suprema ironia

A desregulamentação financeira, fiscal, na área ambiental e na proteção do consumidor que a Presidência Trump promoveu no primeiro mês de poder na Casa Branca confirma os receios de que os EUA se preparam, nos próximos anos, para baixar drasticamente os impostos para os mais ricos e para as grandes empresas e, por consequência, para reduzir ou mesmo acabar com programas sociais fundamentais para a correção de injustiças e proteção dos mais desfavorecidos.

Suprema ironia: quem pôs Trump na Casa Brancs foram os eleitores do Midwest, que perderam empregos e poder de compra na última década e estão furiosos com "o sistema" e "os políticos".

Ora, quem mais vai sofrer com as políticas de Trump e os seus amigos da grande banca e dos grandes negócios são, precisamente, esses eleitores de estados que perderam com a globalização e que -- por ignorância, medo e alguma irresponsabilidade -- votaram em Donald Trump e que mais precisavam, agora, do apoio federal.

Até teria a sua justiça poética, se não fosse tão grave para os EUA e para o mundo.

Depois da inqualificável conferência de Imprensa desta tarde, fica relativamente claro que a presidência de Trump deixará de ser, a curto/médio prazo, um caso de bizarria política capaz de gerar trapalhadas e cenas ridículas todos os dias e vai tornar-se num problema bem complicado de resolver para aquele sistema tão blindado a ameaças e tantas vezes resiliente às crises mais complexas.

Desta vez, a coisa é séria.

Mas a América resistirá. Certamente, resistirá.

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