Histórias da Casa Branca: quanto nos custará esta vírgula? - TVI

Histórias da Casa Branca: quanto nos custará esta vírgula?

  • Germano Almeida
  • 24 jan 2017, 18:25
Primeiro baile oficial de Donald Trump

Os primeiros dias da presidência de Donald Trump têm confirmado o pior. A mensagem final de Obama apontou para que este seja apenas um intervalo. O problema é não sabermos onde estará mesmo o fundo

“Isto não é o ponto final, é apenas uma vírgula", Barack Obama, minutos depois da tomada de posse de Donald Trump.

 

Não há memória de algo assim: um ex-Presidente minutos depois de ter deixado o cargo a sentir necessidade de falar, logo a seguir ao discurso de posse do seu sucessor.

Houve quem tenha notado no gesto uma certa descortesia institucional de Barack Obama para com Donald Trump.

A questão é que o que Trump acabara de dizer no seu inacreditável discurso de posse (“os políticos em Washington têm enriquecido à custa do povo, que está cada vez mais pobre”) terá levado a Obama a sentir que era forçoso deixar uma mensagem suplementar: “Isto não é o ponto final, é apenas uma vírgula”.

Foi mais que um sinal de alerta: foi mesmo um aviso quase explícito aos americanos. O que aí vem com Trump não será bonito, mas convém não desesperar. Os EUA têm uma história e uma resiliência suficientes para sobreviver e regressar em força, depois deste desastre.

Falta saber a que custo.

O discurso de posse de Donald Trump foi de uma pobreza conceptual deprimente. Apelou aos piores sentimentos, limitou horizontes a um fechamento anacrónico, reforçou o caráter protecionista, populista e demagógico da plataforma política com que foi eleito.

Em vez de alargar (era o momento para isso), reduziu-se a um núcleo de 40% de americanos que ainda tem esperanças na sua presidência – menos de metade da base de apoio com que partiu Obama há oito anos.

Os primeiros dias da presidência Trump confirmaram o pior. O novo Presidente tem assumido estilo agressivo, às vezes até vingativo para com os seus adversários e críticos.

Tem os ‘media’ como bodes expiatórios, inimigos imaginários que convém alimentar para dar gás à sua base zangada, ávida de escolher alvos para derramar a sua raiva contra o ‘sistema de poder’.

A Casa Branca de Trump não dá prioridade aos valores políticos: olha, sobretudo, para os proveitos individuais, numa perspetiva de transações empresariais e comerciais.

Faz sentido na gestão de uma empresa, não tem dimensão suficiente para liderar o país mais poderoso do mundo.

Se as impressionantes manifestações de sábado tiverem sido uma espécie de "Tea Party" da esquerda, uma frente de resistência permanente durante os anos Trump, e isso tiver efeitos já nas intercalares de 2018 e no evitar da reeleição de Trump em novembro de 2020, então valerá a pena.

Mas é demasiado cedo para saber.

Pode ter sido apenas um efeito idêntico ao movimento "Ocuppy Wall Street". Ora, o que acabou por acontecer foi que... Wall Street veio a ocupar a Casa Branca, com a vitória de Donald Trump.

Que país tão contraditório, aquele.

A frase mais dita durante a campanha pelo a partir de ontem ex-Presidente Barack Obama, nos comícios da candidatura Hillary, quando se referia a Donald Trump e a multidão começava a assobiar, era: "Don't boo... vote!"Pelo que se viu nos primeiros dias da Administração Trump, apupos e contestação ao agora Presidente dos EUA nunca vão faltar.

O problema é que a parte do "Vote" não foi tão evidente a 8 de novembro -- e o que faltou era aquilo que travaria mesmo a "ameaça Trump".

O mal está feito: e os próximos quatro anos não vão ser bonitos de ver e viver. Para analisar até vai ser animado, mas mais naquela perspetiva da velha maldição chinesa: "Viverás em tempos interessantes".

Sem medir as palavras

A forma como Donald Trump falou na visita à CIA, dizendo que "adora e respeita" a comunidade de serviços de informação e que "os media são o grupo de pessoas mais desonesto que já viu" reforça a ideia de que o 45.º Presidente dos EUA tem um tipo de discurso típico de um adolescente: tudo é ou "fantástico" ou "miserável"; as pessoas ou são "adoráveis" ou "execráveis".

Vai "erradicar" o ISIS. A presidência Obama foi "um desastre". O que vem aí é "maravilhoso".

Não há meio termo, o mundo é visto a preto ou branco. Ora, a realidade é bem mais relativa e complexa do que isso. Trump fala de forma maniqueísta, divisiva e demagógica.

Um Presidente dos EUA deve dar valor às palavras. O que diz deve ter peso, equilíbrio, mesura. Em pouco tempo, o modo primário e desmesurado como Trump fala contribuirá para uma desvalorização do que o Presidente dos EUA afirma em público. E isso é grave. Muito mau, mesmo.

 

“América primeiro”? A sério, Donald?

Neto de um alemão e filho de uma escocesa, esteve casado com uma checa e tem uma mulher eslovena. Enriqueceu fazendo negócios com 18 países diferentes. Ora, alguém com todo este enquadramento diverso, que apontaria para a força e importância da diversidade da América, escolheu para ideias fortes da tomada de posse "comprem americano, contratem americano, América primeiro, América primeiro", prometendo reforçar fronteiras e reprimir a imigração.

Ah! Só uma coisa: o chapéu que usava na campanha a dizer "Make America Great Again" era... 'made in China'.

‘Gimme a break, Donald!’

 

“Factos alternativos”

Na segunda-feira à noite, ao quarto dia da Presidência Trump, em reunião com líderes do Congresso dos dois partidos, Donald dedicou o primeiro quarto de hora a mentir com todos os dentes, voltando à fantasia de que afinal, ganhou o voto popular "porque entre 3 a 5 milhões de ilegais votaram em Hillary".

A reação dos congressistas, democratas e republicanos, foi algures entre o choque e o espanto por ouvir o Presidente dos EUA a mentir com tamanho descaramento sobre tema tão bizarro: não existe qualquer evidência, apenas o interesse de Trump em alimentar a tese, para afastar a ideia de que tem pouca base popular de apoio.

Foi mais um episódio que reforça a ideia de que a Casa Branca de Trump vai usar a "realidade alternativa" para defender os seus interesses, um dia depois de Sean Spicer, porta-voz da Casa Branca, ter feito figura parecida com a do ministro da Propaganda do Iraque, quando em 2003 garantia que as tropas americanas estavam derrotadas... na véspera das mesmas terem entrado em Bagdade.

Os "factos alternativos" (expressão de Kellyanne Conway, conselheira do novo Presidente americano) apresentados por Spicer eram os de que "a tomada de posse de Trump foi o evento com mais público de sempre, ponto", apesar das fotos mostrarem, claramente, que o mesmo espaço, apanhado do mesmo ângulo, tinha metade, ou menos de metade, de pessoas, comparando com janeiro de 2009, primeira inauguração de Obama.

O ridículo em que caiu Spicer foi tão grande que o próprio, ontem, no dia seguinte ao episódio cómico, veio fazer uma espécie de mea culpa, prometendo "não mentir aos jornalistas e ao povo americano".

Bem-vindos à Casa Branca do que não-devia-estar-a-acontecer."

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