Teremos sempre Paris - TVI

Teremos sempre Paris

  • Germano Almeida
  • 1 mai 2018, 12:11
Emmanuel Macron e Donald Trump, na Casa Branca

Macron e Trump têm em comum virem de fora da constelação partidária. E mostraram ter identificação pessoal genuína. Em tudo o resto são diferentes: o que o Presidente francês quis mostrar nos EUA é que pretende liderar nos valores e princípios que o seu homólogo americano optou por abdicar

"Sobre o Irão, o nosso objetivo é claro: não deve ter, em caso algum, quaisquer armas nucleares. Nem agora, nem daqui a cinco, dez anos, nem nunca. Mas essa política não deve levar à guerra no Médio Oriente. Nós devemos garantir a soberania dos Estados, incluindo do Irão, que é uma grande civilização. Não reproduzamos os erros cometidos no passado na região".

 

Emmanuel Macron, Presidente da França, discurso ao Congresso dos EUA


É este o "statement" mais relevante da visita de Emmanuel Macron aos Estados Unidos. 

Foi produzido no passado dia 26 de abril, no Congresso dos EUA, e deixou bem claro que, apesar dos sinais de aproximação a Trump, carregados de simbolismo, na receção na Casa Branca, o presidente francês tem princípios, visão e posicionamento muito diferentes do seu bizarro homólogo americano. 

Marcon e Merkel pediram, nos últimos dias, a Trump para que não consume a intenção de retirar os EUA do acordo nuclear do Irão, mas todos os sinais apontam para que, até 12 de maio, Donald decida mesmo revogar a presença americana desse acordo 5+1. 

Mike Pompeo, recém-confirmado como novo chefe da diplomacia dos EUA, já admitiu publicamente que “é muito provável que o Presidente tome essa decisão”.  

Trump insiste na ideia de que "os parceiros europeus têm tratado mal os americanos" e vai na onda da guerra comercial à China. 

Macron foi direto: "Uma guerra comercial entre aliados não é coerente. Só conseguirá destruir emprego e aumentar os preços”, avisou Macron, em clara crítica ao amigo Trump. “Vivemos num tempo de raiva e medo devido às atuais ameaças globais. E há dois caminhos. Podemos escolher o isolacionismo, a retirada e o nacionalismo. Pode ser tentador (...) um remédio temporário para os nossos medos (...) Mas fechar a porta ao mundo não vai parar a evolução do mundo”.

Mas Trump também: “A União Europeia foi criada para se aproveita dos EUA”.

Digamos que isto não será, propriamente, a definição de uma aliança perfeita.

Macron arrancou aplausos sonoros da bancada democrata (ávida de quem mobilize oposição a Trump, mesmo que surja de fora) mas também, pasme-se, dos republicanos (o que talvez nos recorde que uma parte da agenda de Trump, sobretudo ligada à guerra comercial e à recusa do multilateralismo, não se inscreve no ADN típico da direita  americana).

No notável discurso ao Congresso, Macron reforçou o seu compromisso com o multilateralismo, o apoio às instituições internacionais e ao projeto europeu, nunca pondo em causa a velha e forte aliança com os EUA (renovada há dias na intervenção cirúrgica na Síria). 

Ao contrário de Trump -- que simplesmente quer sair da Síria e lançou o represália a Assad sem uma estratégia global --, Macron deixou claro porque se juntou à intervenção (há princípios de que a França não abdica), mas tem uma visão mais vasta. 

Passa pela promoção de uma estratégia que impeça a aliança Turquia/Rússia na região e que ao mesmo tempo trave a ascensão do Irão sem o hostilizar (não deixará cair o acordo nuclear, apesar de não ter fechado completamente a porta a uma revisão, se tal garantir que os EUA de Trump não o rasguem). E passa ainda por um plano de acolhimento dos refugiados da guerra na Síria.

Mesmo nesta era da imagem e das perceções, as coisas essenciais não mudaram: Macron, um "centrista cerebral" -- como Thomas Friedman recentemente o rotulou -- mostrou na pomposa visita aos EUA que é a figura mais bem posicionada para assumir a liderança do mundo ocidental, perante o vazio deixado pela falta de dimensão do atual Presidente dos Estados Unidos e pela desorientação britânica em relação ao que fazer com o Brexit.

Os grandes temas da política internacional estão, por estes dias, entregues a jogos de sombras plenos de paradoxos. 

Vimos, nos últimos dias, Trump e Macron a exibirem cumplicidade inusitada do ponto de vista físico, mas com divergências cada vez mais vincadas nos plano político. 

E vimos Moon e Kim, líderes das duas Coreias, a assinar declaração histórica que, aparentemente, põe fim a guerra com quase sete décadas – mas lendo o texto na totalidade, nunca por lá vemos um comprometimento claro de Pyongyang de que destrua mesmo os seus mísseis e pare por completo o seu programa nuclear. 

O presidente francês proferiu no Congresso americano um dos mais relevantes discursos políticos dos últimos tempos: nele, assumiu vontade de ocupar o vazio deixado pela liderança atípica de Donald Trump (“vocês, americanos, criaram o multilateralismo nos moldes em que o conhecemos e têm agora a obrigação de o reforçar e reinventar”). 

Mas Macron é um pragmático: sabe que a personalidade de Trump não se coaduna à persuasão pelo bom senso. 

Dos EUA trumpianos poderemos continuar a esperar propensão para guerras comerciais, mesmo com aliados históricos, e tudo indica que também devamos esperar a revogação do acordo nuclear do Irão, obtido com mérito, visão e esforço por Barack Obama e John Kerry. 

A França de Macron nunca terá a dimensão e a influência internacionais dos Estados Unidos. 

Depois da ambígua cimeira Trump/Macron (cúmplices nos momentos para a fotografia, rivais nas propostas e no posicionamento nos temas essenciais), e numa fase em que os democratas tardam em acentuar oposição política ao Presidente, ficámos a saber que, perante o desvario político que se vive em Washington, teremos sempre Paris.

É mesmo a sério, Kim?

Sobre as Coreias, o “rocket man”, afinal, não quer acabar com o mundo e está a apostar na via diplomática. 

Kim Jong-Un já dava fortes sinais de pretender fazer de 2018 um ano de acordos históricos, depois de ter feito de 2017 o ano da mais assustadora escalada nuclear dos últimos tempos. 

A “cimeira das Coreias” deu numa declaração de “fim da guerra” que oficialmente durava há 68 anos e intenção mútua de “paz sólida” e “desnuclearização total”.

É bom, claro que é, mas que os mais distraídos não se iludam: a Coreia do Norte tem um histórico preocupante de não respeitar acordos e promessas e de recuar em intenções de pacificação. 

Em 2000 e em 2007 tinha havido, por parte do pai de Kim Jong-Un, Kim Jong Il, avanços semelhantes, com aproximações ao do Sul e até com uma receção, em outubro de 2000, à então secretária de Estado americana, Madeleine Albright. 

Desta vez, os passos em frente parecem ser mais duráveis, sobretudo pelo cortejo de reuniões e cimeiras que Kim Jong-Un quis marcar: foi recebido por Xi Jinping em março, selou com Moon a paz com a Coreia do Sul neste final de abril e reunirá com Trump no final de maio.

Ironia das ironias neste tempo de contrastes e contradições: Trump, que há apenas sete meses ameaçava em plena Assembleia Geral da ONU, “destruir completamente” a Coreia do Norte, pode estar a semanas de entrar para a história como o presidente americano a ficar com os louros da anulação da ameaça nuclear norte-coreana. 

Que não se façam equívocos: o mérito da “paz histórica” entre as Coreias não é de Trump. 

Basta refazer a fita do tempo sobre o que se passou nos últimos meses para concluirmos rapidamente que quem nunca contribuiu para este desfecho foi o atual Presidente dos EUA. 

Em setembro arrasava Kim e ameaçava resposta apocalíptica contra Pyongyang; também em setembro gozava com o seu então Secretário de Estado, Rex Tillerson, por pretender apoiar a Coreia do Sul na via do apaziguamento com Pyongyang (meses depois, viria a ser esse o caminho a ter um bom desfecho, mas pelo meio Tillerson acabou mesmo por sair do Departamento de Estado); em janeiro, Trump avisava Kim que o seu “botão nuclear” era maior que o do homólogo norte-coreano; em março afastou Tillerson da chefia da diplomacia e o general HR McMaster (outro forte apoiante do apaziguamento) do posto de Conselheiro de Segurança Nacional e nomeou Mike Pompeo e John Bolton, dois “falcões” de linha dura, para os substituir. 

A intervenção da China, essa sim, foi decisiva: Xi antecipou-se a Donald e recebeu Kim em Pequim, pelo início de março. 

A súbita distensão da ameaça nuclear na península da Coreia explica-se, essencialmente, por uma estratégia de “póquer”, com muito bluff e algum conteúdo, que Kim acabou por saber desenvolver: levou ao pico da tensão a escalada com envio de mísseis balísticos intercontinentais até dezembro, mostrando aos inimigos e rivais que o seu programa nuclear está mesmo cada vez mais avançado e eficaz, e a partir de janeiro foi acelerando a estratégia de aproximação à China, à Coreia do Sul e aos EUA, já com o trunfo do reconhecimento bélico. 

Aparentemente, está a resultar. 

Mas como muito bem avisaram, nos últimos dias, líderes e diplomatas de Londres, Sydney e Tóquio, é preciso encarar as promessas de Kim Jong-Un com desconfiança e reserva. 

Já Donald Trump, ávido por obter de bandeja um momento histórico daqui a umas semanas, dá muito mais créditos à boa vontade de Kim, dizendo que “está a ter um comportamento honrado”. 

O líder americano disse a Macron que vai exigir a Kim Jong-Un que abandone por completo o programa nuclear e abdique de todos os mísseis – caso contrário não haverá qualquer acordo EUA/Coreia do Norte no provável encontro do final de maio. 

Tudo aponta para que esse encontro se realize na última semana de maio – sendo que por estes dias estão a discutir-se os pormenores sobre onde poderá vir a ser concretizado (Kim, que costuma viajar de comboio, dificilmente aceitará que seja na China, mas o cenário de que possa decorrer na Coreia do Norte também parece estar afastado).

O que quer mesmo Kim Jong-Un com este súbito apaziguamento? 

Estará mesmo a sério no comprometimento de avançar para uma “desnuclearização total”? 

Estamos perante um raro acontecimento de “diplomacia acelerada”. 

Geralmente, estas coisas demoram mais tempo e quando os líderes aparecem juntos em público já está tudo tratado.

Desta vez, há dados que alteraram esse quadro habitual: a mudança de comportamento de Kim; a falta de consistência estratégica da atual Administração americana (em constante entropia entre a personalidade egocêntrica e autoritária do Presidente e o registo mais tradicional do complexo diplomático); a ambiguidade chinesa (aliado da Coreia do Norte e ainda a tatear o que verdadeiramente quer Trump com a China, a Coreia do Norte e a Ásia em geral).

Mesmo assim, há sinais consistentes que dão razões para ter otimismo: a Coreia do Norte soma gestos de boa vontade, os líderes das duas Coreias vão trocar visitas nos próximos meses, a cimeira histórico Trump/Kim do final de maio deverá servir para confirmar o agendamento de uma assinatura de tratado de paz entre as duas Coreias, lá mais para o fim do ano, com mediação norte-americana e chinesa (e provavelmente com dois ausentes de peso, o Japão e a Rússia).

A cimeira das Coreias ofereceu-nos boas notícias: mas nunca fiando. 
 

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