Xavi escreve carta aberta a Iniesta: «O melhor jogador espanhol que vi» - TVI

Xavi escreve carta aberta a Iniesta: «O melhor jogador espanhol que vi»

Antigo capitão do Barcelona até compara Iniesta com Casillas

Xavi escreveu uma carta aberta para Iniesta, no domingo em que o espanhol faz o último jogo pelo Barcelona: o clube de toda a vida. Entre outras coisas, Xavi recorda a primeira vez que viu Iniesta jogar e diz que foi o melhor jogador espanhol que conheceu. Pelo meio compará-o a Casillas: os dois nasceram com um anjo da guarda.

Mas diz muito mais coisas. O melhor mesmo é ler esta carta aberta, um pedaço de arte de um senhor do futebol para outro senhor do futebol.

Carta aberta na íntegra:

Ainda me lembro da primeira vez que vi Andrés jogar. Eu estava nos juvenis: ele, nos infantis. Alguém no clube me disse: 'Xavi, há um miúdo lá em baixo que vai ser craque. Dizem que é ótimo! Há ele e outro, Troiteiro, que vai ser como Mario Rosas. Já o Andrés parece-se muito contigo'. Mas quando o vi jogar, disse a mim mesmo: 'Este não se parece comigo como dizem, que ideia, ele é diferente'.

Tem mais saída com bola, mais drible, pode cair nas bandas. É muito diferente de mim porque eu jogo a seis, muito mais posicional, como o Pep no seu tempo ou Busquets agora. Ele, por outro lado, pode ser seis, oito, dez, até mesmo extremo, e quando era criança tinha pinta de maestro por causa da maneira como usava o corpo antes de receber a bola e jogava com os dois pés

Agora pode até parecer normal, mas naquela época foi revolucionário, porque ele estava fazia um controle orientado com a perna direita da mesma forma que logo na jogada a seguir fazia tudo com a perna esquerda. O que mais surpreendia era esse estilo tão próprio dele de guiar a bola com o copo, sem precisar sequer de lhe tocar.

Via-se como ele jogava e era um espetáculo. O que pensava fora de campo fazer, ele fazia-o no campo. Parecia que até escutava os nossos pensamentos. Depois fazia as coisas de uma forma tão natural que até parecia que não pensava em como tinha que as fazer. Andrés estava por perto, jogava de cabeça erguida, não perdia bolas. Ou seja, conceitos que nós trabalhámos durante anos com Joan Vilà e que ele tinha dentro do seu corpo de origem. «Porra, é quatro anos mais novo que nós, mas este garoto traz as coisas inatas.»

Andrés é, para mim, o jogador com mais talento da história da Espanha, que eu já vi, hein? Ele tem um talento espetacular. Se falamos sobre a pessoa, é um escândalo. Um gajo admirável em todos os sentidos. Exemplar, altruísta, empático, jogador de equipa, vencedor, líder no campo, quer sempre a bola. Saberão as pessoas o que isso significa? Quando muitos não querem a bola, nem sequer pintada porque é uma armadilha, ele pede sempre por ela. Andrés ama a bola. Quando alguns jogadores pensam «ai, ai, ai» ou «não, não mas dês, por favor, não agora», Andres aparecia e dizia: «Vá, dá-ma a mim, dá-ma agora, por favor».

É uma bênção para os outros. Isso é ter personalidade, isso é ser um verdadeiro líder. Líder silencioso, mas líder autêntico. Eu, que toda a minha vida fui passador, precisava de jogadores como Andres, como Leo, como Busquets. Vocês foram os melhores parceiros que já tive. Eles davam-me sempre a saída certa, por muito mau que estivesse o panorama. Não sei de onde, mas Andrés aparecia sempre no momento certo... «Olha para mim, estou aqui!» Mas ele não mo dizia falando.

Também nunca fomos muito de falar em campo e jogámos juntos mais de 10 anos. Não era necessário. Entendíamo-nos com um olhar. A sua linguagem corporal era a melhor maneira de ele comunicar. Também é verdade que Andrés saiu do espaço puramente académico. Às vezes, durante os jogos, nós só assistíamos. «Mas como raio ele fez aquilo? Como escapou? Se era impossível! Dava a impressão que não havia coisas impossíveis para ele quando pegava na bola. Receção, último passe, aceleração, tabela, desequilíbrio, era feliz a jogar por dentro e era feliz a jogar na ala. Ele é um professor, um verdadeiro professor.

Além disso, as pessoas pensavam que Andrés não era forte. 'Que eras coisa pouca!' Que eras fraco! Fraco?! Bem pelo contrário. Quando ele coloca o corpo, ninguém lhe tira a bola. É forte, mas forte de verdade. Vejam o número de jogos que ele jogou na carreira. Foi exemplar até nisso. No fim de contas, a mentalidade é a chave de tudo.

E ele tem sido muito forte em tudo, especialmente naqueles momentos ruins que muitos não conhecem. Viveu tempos difíceis por viver longe da família e agora se lho perguntarem seguramente dirá que o sacrifício valeu a pena. Mas quem sabia que ia ser assim? Quem lhe poderia garantir isso? Ninguém É tão difícil, tão duro, tão complicado, tão longo? O mais normal é não chegar lá. Mas essa mentalidade tão forte foi  o que lhe permitiu chegar aqui.

No final, Andrés é um tipo que tem um anjo da guarda. Não me perguntem porquê, mas ele tem-no. É como o Iker Casillas. Os outros não o têm; eles sim. Têm um anjo da guarda porque no momento certo eles tiram da cartola o passe vencedor, a defesa vencedora, a bola vencedora, o golo da vitória. Vivemo-lo com Andrés no Barcelona e na Seleção. Em Stamford Bridge, em Joanesburgo, até naquela final de juvenis em Camp Nou, quando fui vê-lo com o Pep, nós dois já estávamos na equipa principal, e ele marcou o golo de ouro naquele jogo. Vejam o que aconteceu no Mundial. Se alguém tiver tempo e vontade que assista ao jogo contra a Holanda. Não, não estou a falar apenas do golo. Se analisarem a final, vão perceber o que realmente ele fez. Mas por que marcou Andrés o golo? Porque ele tinha que marcá-lo. Não poderia ser outro. Quem podia ser? Alguém com um anjo da guarda. Ou seja, Andrés. Uma pessoa honrada, um verdadeiro trabalhador.

E recordar agora que nos disseram que não podíamos jogar juntos? Já se sabe, máquina. Isto é o Barça! Um clube cheio de debates. Eu senti-me mal por ele, porque sempre disse que preciso de pessoas ao meu lado que se associem comigo. Entendo-me melhor com quem tem qualidade técnica, do que com aqueles mais físicos. Claro que esses jogadores fortes são importantes, mas olhem para Andres, Leo e Busquets. Chateavam-me esses debates em que se dizia que o Barça precisava de músculo. Mas o que me estás a dizer! O músculo mais importante para jogar futebol é o cérebro, como dizia Cruijff. É o mais importante e valioso.

É verdade que ambos sofremos em silêncio. Ambos somos muito calados. Por isso tenho muita sintonia com Andrés. Eu sou como ele. Prefiro calar e impor-me onde o devo fazer, no campo: 'Ok, vêm três novos jogadores, perfeito. Dá-me igual. Vou competir com esses três, mesmo que custem 250 milhões de euros. Vou provar que posso ser jogador do Barcelona.' Essa é a mentalidade que Andrés teve na sua época ou que Busquets, por exemplo, teve com Yaya Touré. Quem não pensar assim, vem abaixo. Há duas opções: revoltarmo-nos como fizemos nós ou cair no desânimo, pensando que não sairemos daquela.

Recordo, por exemplo, o que aconteceu pouco antes do Mundial na África do Sul. Estávamos um dia a treinr na Cidade dos Desportosquando, de repente, ouvi Puyol gritar: 'Nãooooooooooo!' Não sabia o que tinha acontecido, mas quando me virei, vi-o saindo do campo despedaçado, a chorar, abatido. Não tinha ainda saído de uma lesão e já estava noutra.

Havia dúvidas de que chegasse mesmo ao Mundial, mas acabou por superá-o graças a essa forte mentalidade. Não me esqueço daquela conversa no balneário do Monaco, depois da final da Supertaça que vencemos com um golo do Pedro. 'Andrés, pá, precisamos de ti. Aqui és muito importante! Muito, muito mesmo! Não podes continuar assim, Andrés. O Barcelona não pode permitir-se que tu não jogues, pá. Precisamos de ti de verdade. É que tu és diferente. Quando tu não estás, máquina, custa-nos o dobro. Acredita, Andrés, por favor acredita, porque acreditamos que é mesmo assim. Nós precisamos de ti!' Vejam que eu não sou muito de me abrir, mas todos vimos que Andrés estava numa espécie de crise existencial, naqueles meses onde todas as coisas más lhe aconteceram.

Mas ele, com a ajuda da sua família, deu a volta a tudo graças a essa incrível mentalidade. Às vezes tenho a sensação de que não se pode explicar com palavras o que Andrés enquanto jogador. Torna tudo tão fácil que pensamos que todos podem fazer aquilo. Mentira! Ninguém pode fazer as coisas como ele. No campo, ele transformar-se. É ali que aparece a sua verdade personalidade. É o seu habitat natural. É um viciado na bola. Se não a toca, não é feliz.

Não me lembro de um grande jogo em que ele não tenha aparecido. Não me lembro porque não existe. Andrés está sempre lá. Além disso, nunca o vi levantar sua voz. Nunca. Quando reclamou, fê-lo com respeito, com argumentos, mas sem gritar. Até nisso é um exemplo. Colocou sempre a equipa à frente da individualidade, algo que não é fácil, porque todos nós temos o nosso ego.

Ainda me lembro também da Liga dos Campeões de 2006 quando eu rompi o ligamento cruzado e ele assumiu toda a responsabilidade. Jogou a médio centro, sim, a médio-centro. Em Lisboa e em Milão. Que grande espetáculo ele deu. Chegámos à final em Paris e Rijkaard não o colocou a titular. Quando descubro, digo a Puyol: «Não joga o Andrés, mano? Não joga, não joga? Mas como é que ele não joga?» Então, Puyol responde-me: «Não sei, eu não sei».

Na verdade, ninguém o sabia, nem o entendia, porque ele tinha feito jogaços em Lisboa e em Milão. Quando ele apareceu na segunda parte, tudo mudou. Ele colocou as coisas em ordem. A sua maneira, é claro. Caladinho, sem dizer nada. Mas, juntamente com Larsson e Samuel Eto'o, mudaram a final. Certamente que por dentro ele estava furioso, mas a primeira coisa que fez foi pensar no grupo e na equipa. Essa raiva ajudou-o a ser ainda melhor.

Outro teria descalçado as chuteiras no balneário ou teria reagido mal. Ele nao. Isso torna-o mais forte. Com o seu estilo, sem dizer nem uma palavra, mas demonstrando no campo que estavam errados em relação a ele. Isto é o Andrés. Agora que estou mais ou menos fora do futebol de elite, percebo o que ele tem sido, o que é e o que representa. Quando ele sair do Barça, vai entender melhor o que eu digo. Ele ganhou tudo, jogou incrível, é respeitado por todos e admirado pelo mundo. Sai como merece, é um exemplo, porque nunca teve uma palavra má, um gesto mau, uma cara má. Veja como gostam dele em todos os lugares. Mais tarde perceberás o realmente fizeste, máquina.

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