Histórias da Casa Branca: transição turbulenta - TVI

Histórias da Casa Branca: transição turbulenta

  • Germano Almeida
  • 29 dez 2016, 08:57
2016: imagens que não se esquecem

Esqueçam as perspetivas de ‘mudança suave de poder’. As tensões entre Obama e Trump chegaram, nos últimos dias, a níveis muito pouco recomendáveis. Nunca, como por estes dias, a Casa Branca esteve entre dois presidentes nos antípodas em quase tudo

2017 vai começar, na política americana, em contagem decrescente para o adeus de Obama na Casa Branca e a tomada de posse de Trump.

As perspetivas de uma “transição suave”, criadas nos dias seguintes à eleição com o encontro entre Obama e Trump, há muito que saíram goradas.

Nos últimos dias, a tensão entre o ainda Presidente dos EUA e o seu sucessor está a começar a parecer uma relação entre duas potências virtualmente beligerantes.

O principal foco teve a ver com Israel.

Trump está a preparar a administração mais pró-israelita e menos propensa ao diálogo com os palestinianos das últimas décadas.

A sua escolha para embaixador americano em Israel – o advogado David Friedman – denota visão radical, com um traço perigoso de provocação (Friedman defende que a embaixada se deve mudar para Jerusalém, ideia que o próprio Trump não recusará, pondo fim a quase sete décadas de tradição americana de manter a representação diplomática em Telavive).

Numa espécie de aviso final antes da saída, Barack Obama deu instruções, junto da sua embaixadora na ONU, Samantha Power, para que os EUA se abstivessem na condenação à construção de colonatos.

O governo de Netanyahu ficou indignado e não perdoa a Obama e Kerry. O Secretário de Estado americano chegou a dizer que “Israel tem que ter a noção que não pode ser ao mesmo tempo um estado judaico e um estado democrático”.

Kerry acusou o governo israelita de ter já deixado a opção dos dois estados, o primeiro-ministro de Israel conta os dias para que Obama saia da Casa Branca.

Trump tuita: “Mantém-te forte Israel” e já prometeu que em poucos dias o comportamento americano vai mudar.

Há um contrarrelógio de Obama para sinalizar o que deve ser o papel da América nas questões fundamentais – mesmo que esses sinais, nestes dias de adeus, sejam apenas simbólicos.

Obama postulou, em entrevista de despedida ao seu antigo fiel escudeiro David Axelrod, que se fosse ele a disputar a eleição de 8 de novembro a Donald Trump, “poderia ter ganho”.

Trump não perdeu tempo a retaliar: “No way”. Nem pensar nisso.

Nunca ficaremos a saber quem tem razão.

Mas a declaração de Barack Obama, além de indicar uma crítica implícita à estratégia de campanha desenvolvida pela campanha de Hillary Clinton, denota a convicção que o ainda Presidente dos EUA tem de que termina o seu segundo mandato com uma aprovação que lhe daria apoio claramente maioritário, se tivesse sido possível buscar um terceiro mandato.

Ainda que isso já nada vá mudar no curso da História, convém não esquecer que Donald Trump tomará posse obtendo menos 2,9 milhões de votos que Hillary Clinton.

Parte, por isso, sem uma maioria presidencial real. Mas o sistema político americano está construído numa base que não torna a maioria de votos uma questão essencial para um presidente.

A chave para se perceber as condições políticas para se avaliar a capacidade de execução do futuro presidente Trump estará, muito mais, na relação que venha a ter com o Congresso.

As duas câmaras serão, pelo menos nos próximos dois anos, dominadas pelos republicanos.

Na House of Representatives será mais fácil estabelecer bases de consenso entre a Casa Branca e o Congresso: a maioria republicana tem uma dimensão inédita em décadas e boa parte dela é composta por membros ligados ao Tea Party; por outro lado, Paul Ryan, depois de tantas divergências com Trump durante a campanha, tem dado sinais de estar disposto a render-se às evidências de que terá que seguir a rota do Presidente, pelo menos até às intercalares de 2018. Depois disso, a conversa talvez seja diferente.

A relação com o Senado implica outro tipo de lógica. A maioria republicana é curta (52 em 100), bem menos do que era, por exemplo a supermaioria de 60 senadores que os democratas tinham em janeiro de 2009, quando Obama tomou posse.

Além dos democratas poderem exercer, nalguns casos, a minoria de bloqueio de que dispõem na câmara alta por terem 48 senadores (‘filibuster’), não é seguro que Trump possa contar sempre com o votos dos 52 senadores republicanos – sobretudo em temas ligados com a proximidade que a futura administração dá sinais de poder vir a ter com a Rússia e interesses ligados à elite económica que rodeia Putin.

As eleições de 8 de novembro ditaram a derrota do ‘establishment’ e das elites políticas e anunciaram uma espécie de administração empresarial, composta por pessoas que dão primazia aos negócios e ao lucro, em detrimento dos valores e dos interesses coletivos.

Mas a grande prova de fogo para o sistema talvez ainda esteja por chegar.

Ganhar ou perder uma eleição, por muito que o resultado seja inesperado ou preocupante, faz parte do jogo.

Os próximos meses e anos revelará algo bem mais profundo: estarão os congressistas republicanos e democratas à altura do desafio e conseguirão eles provar que mesmo uma Administração Trump tem que estar sempre sob o crivo de um sistema pensado para garantias e verificações?

Terão os democratas peso e capacidade política e social suficiente para ganharem espaço nos media e sociedade americana, de modo a gerarem uma alternativa forte ao poder trumpiano na Casa Branca?

Mostrarão os republicanos diversidade e independência que garantam ‘accountability’ ao que a Administração Trump vier a fazer?

Terão os media norte-americanos pujança e credibilidade suficientes para operarem ‘fact checking’ a tudo o que o futuro presidente Trump disser e fizer?

E o mais importante de tudo: terão os eleitores americanos o mesmo sentido crítico para com o Presidente Trump que tiveram com Obama nos últimos oito anos e com a candidata Hillary Clinton nos últimos meses?

A América, que tantas vezes nos surpreende pela positiva, deu-nos um forte abalo a 8 de novembro.

Que sinais nos dará nos próximos tempos? 

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