Momento de disrupção - TVI

Momento de disrupção

  • Germano Almeida
  • 16 mai 2018, 21:51
Donald Trump

A denúncia americana do Acordo Nuclear do Irão e a “Bloody Monday” na Faixa de Gaza em dia de inauguração da Embaixada dos EUA em Jerusalém são os novos capítulos de um contexto de mudança radical (e potencialmente violenta) no Médio Oriente. Com um agente provador em comum: Donald Trump

"Donald Trump cometeu um erro. Colocou os EUA fora de uma posição de mediador, tornando-se parte do problema e não da solução"

RECEP ERDOGAN, Presidente da Turquia, reagindo à inauguração da Embaixada dos EUA em Jerusalém

"Se houver uma guerra por parte de Israel, a situação no mundo vai mudar"

Trump está a jogar tudo numa coligação anti-Irão que junte inimigos comuns de Teerão: Israel e vários estados árabes da região, de predominância sunita, sobretudo a Arábia Saudita, mas também o Bahrein ou os Emiratos Árabes Unidos e eventualmente também o Egito e a Jordânia.

Netanyahu ficou muito contente com a saída americana do Acordo do Irão – mas o príncipe Mohamed bin Salman, novo homem forte em Riade, também.

A tríade EUA/Israel/Arábia Saudita tem em comum a diabolização do Irão. Mas como ficará Riade perante os seus parceiros no mundo árabe, perante o comprometimento da solução de “dois estados” para a questão israelo-árabe?

Se, para Israel, Jerusalém é a sua capital “una e indivisível”, que espaço há para que Jerusalém Oriental seja capital de um futuro estado palestiniano?

Vários setores em Israel defendem que os “dois estados” são a única via para a sobrevivência de um estado judaico: um só estado poderá, a longo prazo, ditar uma maioria demográfica de palestinianos.

Mas será possível, neste cenário de hostilização e radicalização, que prevaleça o caminho mais racional para todas as partes?

HEIKO MAAS, Ministro dos Negócios Estrangeiros da Alemanha 

Nos últimos anos, a política internacional tem-nos mostrado muitos motivos de surpresa e até indignação.

Mas dificilmente se terá lançado uma ideia tão inusitada (e errada) como a que, nas semanas mais recentes, chegou a circular, após o acordo das Coreias e a marcação da cimeira histórica Trump/Kim, de que o atual Presidente americano “mereceria o Prémio Nobel da Paz”, caso se confirme a desnuclearização da península da Coreia.

Basta olhar com atenção para a última semana: Trump rasgou mesmo a posição americana no Acordo Nuclear do Irão – principal fator de estabilização no Médio Oriente desde 2015 – e promoveu a inauguração da Embaixada dos EUA em Jerusalém, enviando a filha Ivanka (que por lei nem sequer pode ter um cargo oficial na Casa Branca) e o genro, Jared Kushner, seu principal conselheiro para as questões israelo-árabes. 

Donald Trump é um agente provocador: não se coíbe de ignorar por completo os apelos de aliados tradicionais dos EUA, em nome de uma suposta “coerência” com as promessas feitas durante a campanha para a sua base.

Insistir no reconhecimento de Jerusalém como capital de Israel não é “coerência” e “capacidade de cumprir promessas”: é, antes, uma desafortunada insistência numa via que hostiliza um dos lados do conflito.

Dando cobertura a essa reivindicação israelita, Trump coloca-se, enquanto Presidente dos Estados Unidos, não apenas como “pró Israel”, mas como “só Israel”. Abdica do papel de mediador e veste, em definitivo, a pele do conflito. 

A reação palestiniana levou a 60 mortos e mais de 2000 feridos, em protestos na Faixa de Gaza violentamente travados pelo exército israelita.

A escalada de violência confirma a tese de que a decisão de Trump sobre Jerusalém foi um novo rastilho num barril de pólvora. Depois de deitar gasolina para uma fogueira, o Presidente americano limitou-se a deixar mensagem vídeo, optando por não aparecer no dia em que a fogueira, previsivelmente, iria recrudescer.

A ausência dos principais países europeus na cerimónia em Jerusalém agravou a ideia de que as relações transatlânticas estão no ponto mais baixo das últimas décadas: os EUA de Trump divorciaram-se da Europa em temas chave como o Clima, os refugiados, o comércio internacional, os grandes acordos multilaterais e agora também o Irão, Israel e o Médio Oriente.

O momento é de disrupção. 

Dizer que o “processo de paz” está morto será um pleonasmo: antes mesmo dos serviços diplomáticos dos EUA em Israel se terem mudado de Telavive para Jerusalém, já não havia “processo de paz” nenhum em cima da mesa. 

Abbas, depois de ter ouvido um ‘não’ rotundo por parte de Nikki Haley -- a Embaixadora americana na ONU -- quanto a uma possível reversão da posição da Administração Trump, pouco mais poderia fazer do que selar o corte de relações com o atual governo americano.

Enquanto isso, Macron, Merkel e May tentam salvar o que resta do Acordo Nuclear do Irão – mas os sinais que surgem de Teerão apontam para cada vez maior dificuldade de Rohani, Presidente da fação moderada, suster as pressões dos radicais no sentido de romper de vez com o acordo assinado em 2015 com Obama e Kerry.

Perante as sanções económicas e diplomáticas anunciadas pela Administração Trump, as vantagens que o Irão veria no prolongamento do Acordo podem ter ficado definitivamente comprometidas. 

Por muito que tentem herdar o posicionamento político da Administração Obama, assumindo uma espécie de “luto americano” enquanto na Casa Branca prosseguir alguém que não é bem um Presidente dos Estados Unidos, as chancelarias de Paris, Berlim e Londres não têm a força e a influência internacionais de quem lidera em Washington.

Fator de Estabilização em Risco

O Acordo do Irão foi talvez o único caso, na política internacional, de grande entendimento entre potências eventualmente rivais: envolveu a Rússia, aliada do Irão, numa fase em que Moscovo estava sob pressão internacional pela ação feita na Crimeia e pela guerra na Ucrânia, que rebentara um ano antes. 

O panorama, em maio de 2018, é completamente diferente: os EUA de Trump parecem decididos a acabar com as “alianças permanentes” e abdicaram de liderar o universo multilateralista.

No caso de Jerusalém, a situação é ainda mais completa e inesperada. Não se trata de mero dueto EUA/Israel contra os interesses dos palestinianos. 

Trump está a jogar tudo numa coligação anti-Irão que junte inimigos comuns de Teerão: Israel e vários estados árabes da região, de predominância sunita, sobretudo a Arábia Saudita, mas também o Bahrein ou os Emiratos Árabes Unidos e eventualmente também o Egito e a Jordânia.

Netanyahu ficou muito contente com a saída americana do Acordo do Irão – mas o príncipe Mohamed bin Salman, novo homem forte em Riade, também.

A tríade EUA/Israel/Arábia Saudita tem em comum a diabolização do Irão. Mas como ficará Riade perante os seus parceiros no mundo árabe, perante o comprometimento da solução de “dois estados” para a questão israelo-árabe?

Se, para Israel, Jerusalém é a sua capital “una e indivisível”, que espaço há para que Jerusalém Oriental seja capital de um futuro estado palestiniano?

Vários setores em Israel defendem que os “dois estados” são a única via para a sobrevivência de um estado judaico: um só estado poderá, a longo prazo, ditar uma maioria demográfica de palestinianos. 

Mas será possível, neste cenário de hostilização e radicalização, que prevaleça o caminho mais racional para todas as partes?

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