Ano e meio de choque e indignação - TVI

Ano e meio de choque e indignação

  • Germano Almeida
  • 20 jul 2018, 11:07
Marcelo Rebelo de Sousa e Donald Trump

Donald Trump é presidente dos EUA há 18 meses. Mas o sentimento de perplexidade ainda não passou. O que se passou em Helsínquia com Putin gerou um novo “low” que reforça os piores receios

“O que se passou em Helsínquia é uma aberração”

Newt Gingrich, ex-líder republicano da Câmara dos Representantes, na FOX News

 

“O comportamento de Trump ao lado de Putin foi nada menos do que traição”

John Brennan, ex-diretor da CIA

 

Donald Trump é Presidente dos EUA há precisamente ano e meio (a tomada de posse foi a 20 de janeiro de 2017) e já perdemos a conta dos momentos negativos e geradores de indignação.

Passaram 18 meses (37,5% do total do mandato apenas), mas o sentimento de perplexidade continua. Na verdade, em vez do tempo ajudar a uma certa “normalização do inaceitável”, a perplexidade tem vindo a ser agravada com o avolumar de atitudes e comportamentos absolutamente indignos de alguém que ocupa o cargo político mais influente do mundo.

Uma estranha proximidade

A estratégia norte-americana durante a presidência Trump tem-se baseado na relação com a Rússia, de modo a contrabalançar a ascensão da China.

Sim, até poderia ser verdade o que Trump clama: é melhor que o Presidente dos EUA se dê bem com o líder russo do que uma eventual rivalidade e inimizade entre os dois.

O problema é o resto. Tudo o resto.

A escolha da Rússia como aliado estratégico dos EUA para travar a China torna os europeus quase dispensáveis. E isso explicará o comportamento insultuoso de Donald Trump para com os seus aliados permanentes da NATO.

O périplo de Trump na última semana e meia – NATO, Reino Unido e Rússia em Helsínquia – tem que ser analisado como um todo. Há um traço orientador do comportamento do Presidente americano: submissão a Moscovo, divórcio com Bruxelas, zanga com Londres pela suposta macieza de May para com a via escolhida para o Brexit (Trump teve o desplante de, em terras britânicas, dizer que teria preferido ver Boris Johnson no 10 de Downing Street).

A Cimeira da NATO terminou com as ilusões: acabou a ideia de “amigo americano”, pelo menos enquanto na Casa Branca continuar a estar alguém que não é bem um Presidente dos EUA.

Em Helsínquia, o panorama agravou-se: Trump prestou vassalagem a Putin e nem a ridícula “correção gramatical” posterior é suficiente para diminuir os receios fundamentais.

O convite de Donald a Vladimir para uma visita de Putin à Casa Branca agravou o quadro de afronta: o Presidente dos EUA não se limitou a pôr-se de lado do líder russo, contra o seu próprio aparelho político, de inteligência e judicial. Quer mesmo que a raposa visite o galinheiro. Dan Coates, líder da National Intelligence, soube da novidade quando estava numa conferência. Perante as informações que a moderadora lhe acabara a dar, teve esta reação: “Como? Pode repetir? Isso é mesmo assim?”

É nisto que estamos. Os EUA têm um presidente que age sozinho e não respeita, nem sequer acompanha, o trabalho fundamental do complexo político, diplomático e de investigação norte-americanos.

É triste. Preocupante. E muito assustador.

Recuo depois do insulto

Nunca devemos subestimar o instinto de sobrevivência de Donald Trump.

No dia seguinte a ter feito o desempenho mais miserável da sua presidência, e perante o avolumar de críticas de democratas mas também de republicanos, aquele que não é bem um presidente dos EUA voltou a mostrar que nos momentos em que parece que vai perder totalmente o controlo da situação é capaz de recuar.

Não por tolerância ou por capacidade de reconhecer os erros, mas por mero egoísmo e interesse pessoal. Ao lado de Putin, parecia um cachorrinho -- ele que nos dias anteriores fez de durão e de autoritário implacável com os líderes europeus.

Mas em Helsínquia foi tão longe na condescendência com o líder russo ("I don't see any reason why it would be Russia", respondeu sobre a questão da interferência nas eleições americanas), que se viu obrigado, 24 horas depois, a jurar que foi um erro de linguagem: "O que queria dizer que é que não vejo razão para não ser a Rússia. Era uma dupla negativa que queria expressar, foi uma falha de interpretação apenas".

Donald Trump mostrou, na última semana, que é -- e faz gosto em ser -- um "bully" para com aliados permanentes dos EUA (tornando-os em "novos inimigos permanentes").

É um líder com tentações autoritárias que despreza os "checks and balances" do próprio sistema a que preside. E que é alguém que se revê muito mais em "strongmen" de regimes pouco amigos das liberdades do que nas grandes referências democráticas.

Para lá disso tudo, em Helsínquia, Trump acusou, ao lado de Putin, uma enorme dependência em relação ao ascendente que o homólogo russo terá sobre ele, agravando receios em relação às verdadeiras razões dessa perigosa dependência.

Isso foi tão evidente que Trump -- o mestre da gestão da perceção e da ideia de "dominação" e "triunfo" --, percebeu que, para sobreviver, teria que abrir uma estranha exceção de reconhecimento público de uma falha.

Já tinha acontecido isso no verão passado com a questão dos racistas de Charlottesville, voltou a ocorrer agora no deprimente episódio de um presidente americano a pôr-se do lado do líder de uma potência rival em vez de acompanhar a posição oficial da própria administração americana e do complexo judicial e de serviços de inteligência dos EUA.

Donald Trump é um "bully" -- mas não é parvo. Tem um instinto de sobrevivência que não pode ser subestimado e que explica boa parte do seu improvável e, por vezes, quase insultuoso sucesso político.

"Erro de expressão"? Gimme a break, Donald.

Momento deprimente

O que Donald Trump fez na conferência de Imprensa em Helsínquia, ao lado de Vladimir Putin, foi um dos momentos mais deprimentes da história americana.

Trump mostrou em Helsínquia que não tem dimensão para ser Presidente dos EUA. Se o que se passou na cimeira com Putin, sobretudo na conferência de Imprensa, não gerar indignação clara nos dois partidos dominantes e no resto da sociedade, então a América está mesmo doente.

Pôr-se ao lado do líder russo e criticar violentamente os anteriores presidentes dos EUA é simultaneamente perigoso e ofensivo.

As suspeitas de que Putin tem Trump "no bolso", vá lá saber-se exatamente porquê, avolumam-se perante o espetáculo triste que acaba de ocorrer em Helsínquia.

Tempos sombrios, estes, em que o eleitorado do país mais influente do mundo permitiu que alguém que não é bem um Presidente dos EUA tenha conseguido entrar na Casa Branca e representar assim, de forma indigna, aquele grande país.

Uma das grandes histórias do nosso tempo é a forma como a Rússia consegue gerar uma perceção de ameaça muito maior do que o seu poder real implica. Putin é o mestre desse jogo e dá mostras de ter ascendente perigoso sobre Trump.

Bob Corker, senador republicano e primeira escolha de Trump para Secretário de Estado em janeiro de 2017, reagiu assim: "Hoje não foi um bom dia para o nosso país. Não consigo entender como o Presidente Trump continua a negar as evidências da interferência russa".

John Cornyn, número 2 da liderança republicana no Senado, foi pelo mesmo registo: "Acredito no trabalho dos nossos serviços de inteligência e lembro que há dias houve mais 12 acusações a russos. Não consigo perceber que estratégia está a tentar ter o Presidente Trump para lidar com Putin".

Como é que ainda há quem dê o desconto a Trump? Quem ainda compare os falhanços políticos de Obama ao comportamento indigno para com a história da América que o atual inquilino da Casa Branca tem tido nos últimos dias? Haverá uma tendência para se desculpabilizar os "bullies"?

Afronta sem par na tradição presidencial americana

George Bush pai perdeu a reeleição para Bill Clinton mas fez questão de passar o testemunho ao jovem governador democrata do Arkansas numa transição de poder exemplar.

Bill Clinton amnistiou Richard Nixon nos anos 90 -- mesmo tendo Nixon tido que se demitir da Presidência por estar implicado em crime tão grave como o da espionagem do partido rival.

Barack Obama não fez a vontade à sua base democrata e nunca enveredou pelo caminho da criminalização de George W. Bush e Dick Cheney, apesar das mentiras que levaram à guerra do Iraque.

O mesmo George W. Bush teve uma conduta irrepreensível na transição de poder para Obama e durante os oito anos de presidência de Barack. Obama chamou Clinton e os dois Bush para missões especiais, em representação do Presidente em funções.

A regra não escrita entre Presidentes dos EUA (sejam republicanos ou democratas) é a de preservar a dignidade dos seus antecessores.

Há um prestígio em torno da função e do cargo que leva a que acima de tudo esteja o nome da Casa Branca e dos EUA. O comportamento de Donald Trump na conferência de Imprensa conjunta com Vladimir Putin coloca-o como uma espécie de "pária" nesta tradição longa.

Ao arrasar os seus antecessores, culpabilizando anteriores administrações americanas e pondo-se do lado de Vladimir Putin, não respeitou a dimensão do cargo que ocupa. Em Helsínquia aconteceu uma espécie de "ponto de não retorno" na forma de lidar com a Presidência Trump.

Nada poderá ser como antes.

John McCain, senador republicano, candidato presidencial em 2008 e um dos maiores adversários de Trump no próprio partido, foi particularmente duro: "Vimos em Helsínquia uma das performances mais miseráveis alguma vez feitas por um Presidente americano".

Era difícil, depois de tantas indignidades já ocorridas neste ano e meio, mas foi mesmo o momento mais grave da Presidência Trump. Um episódio negro para a democracia de referência do mundo ocidental.

Uma espécie de "rendição" em direto do presidente americano perante o líder russo.

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