Mundial de clubes: o lado exótico, antes das batalhas de gigantes - TVI

Mundial de clubes: o lado exótico, antes das batalhas de gigantes

O troféu do Mundial de clubes

Um clube amador que fez 13 mil quilómetros para chegar ao Qatar no arranque da versão alternativa da competição que tem Flamengo e Liverpool como favoritos. E que vai mudar. Mas essa é uma questão política entre «gente grande»

O Hienghéne Sport já fez há dez dias a viagem de 13 mil quilómetros desde a Nova Caledónia até ao Qatar e nesta quarta-feira, quando defrontar o Al-Sadd de Xavi, o Liverpool ainda estará na ressaca da decisão do seu futuro na Liga dos Campeões e o Flamengo de Jorge Jesus a digerir as festas que se sucedem a premiar uma época de sonho. Na teoria, eles vão jogar a mesma competição, o Mundial de clubes. Mas na prática são duas diferentes, sendo a primeira a versão alternativa que arranca nesta quarta-feira.  A penúltima edição de uma competição que não criou raízes e vai voltar a mudar a partir de 2021, para passar a juntar 24 equipas. O que ainda vai fazer correr muita tinta, mas entre os grandes.

Este ano há três estreantes e um deles é o Flamengo, que nunca jogou o Mundial de clubes, ainda que tenha ganho a Taça Intercontinental em 1981, na única vez em que foi campeão sul-americano. Ironia, venceu-a frente ao Liverpool. É aliás o único dos sete participantes que já ganhou a competição antecessora daquele que a FIFA quis instituir como o confronto pelo título de melhor clube do mundo, sendo que garantidamente 2019 terá um campeão inédito. Será também a primeira vez do Al-Hilal, o clube saudita que foi campeão asiático depois de Jorge Jesus ter saído. E, claro, será a estreia absoluta do Hienghéne Sport, o clube da Nova Caledónia, arquipélago no Pacífico que é um território ultramarino de França.

É o convidado-surpresa desta edição, um clube essencialmente amador a viver uma enorme aventura. Fundado apenas em 1997, o Hienghéne é periférico até dentro da Nova Caledónia, com sede numa pequena localidade de 2.500 habitantes a cinco horas de distância da capital, Noumea. Separado dos gigantes Liverpool ou Flamengo por um mundo de distância.

A ligação gaulesa já levou aliás bem recentemente o Hienghéne a fazer outra viagem ainda maior do que aquela que o levou ao Qatar: em novembro percorreu 15 mil quilómetros até Estrasburgo para disputar uma eliminatória da Taça de França, competição gigante que nas fases preliminares engloba clubes de «outre-mer, ou seja, dos territórios ainda sob alçada gaulesa.

Mas a odisseia começou com a campanha na Liga dos Campeões da Oceânia. Apenas na segunda edição em que participou, foi até ao fim e venceu na final de maio deste ano, curiosamente, outro clube da Nova Caledónia, o AS Magenta, «potência» tradicional no território. Uma enorme proeza para o arquipélago de apenas 278 mil habitantes que só se filiou na FIFA em 2004 e tinha até aqui como maior referência futebolística o facto de ser o local de origem de um campeão do mundo pela França, Christian Karembeu.

Bertrand Kai é a estrela e capitão do Hienghéne e a sua história de vida diz bem da dimensão do feito do clube. Kai é funcionário numa escola e vive ainda ligado a uma das muitas tribos do território. «Cresci na tribo. Fazemos agricultura e saímos para pescar ou caçar», contou, em entrevista à FIFA.

Para jogar o Mundial de clubes o Hienghéne  reforçou-se e foi buscar em agosto dois jogadores ao Brasil, um dos quais, Pedro Vilela, tem nacionalidade portuguesa. Mas poucos acreditam que a sua aventura no Qatar dure até 21 de dezembro, o dia da final do Mundial. Desde 2005, quando passou a realizar-se anualmente, depois de uma primeira experiência no Brasil em 2000, o Mundial de clubes deu fama efémera a vários clubes que passam uma vida longe dos holofotes mediáticos. Mas em 15 anos apenas por quatro vezes um clube conseguiu furar a hegemonia Europa-América do Sul na final: o Mazembe em 2010, o Raja Casablanca em 2013, o Kashima Antlers em 2017 e o Al Ain, que disputou a final com o Real Madrid em 2019.

Flamengo e Liverpool, final da Intercontinental repetida?

Nenhum deles ganhou uma prova cujo palmarés tem sido largamente dominado pelo representante da Europa, vencedor em 11 ocasiões. A América do Sul venceu quatro, a última das quais em 2012, quando o Corinthians foi campeão.  

O Flamengo de Jorge Jesus vai tentar quebrar essa tendência, começando para isso por defrontar na meia-final o vencedor do duelo entre o Al Hilal e o Esperance Tunis. Na outra meia-final, no dia seguinte, o Liverpool defronta a equipa que sair do confronto entre os mexicanos do Monterrey e o vencedor do Al Sadd-Hienghène.

Se os campeões sul-americano e europeu levarem a melhor, vão reeditar a final da Intercontinental de 1981, que se jogou em Tóquio e que o Flamengo de Zico venceu por 3-0. O Fla não voltou a disputá-la, o Liverpool teve uma relação irregular com a extinta Intercontinental: recusou jogá-la em 1977 e 1978, perdeu a tal decisão de 1981 e voltou a perder em 1984, frente aos argentinos do Independiente. Em 2005 voltou a ser campeão europeu e jogou o Mundial de clubes, perdendo na final para o São Paulo.

Teste ao Qatar e uma batalha de gigantes pela frente

O Mundial de clubes vai ser também um primeiro teste ao Qatar e à organização do Mundial 2022. Para já, com um percalço. O estádio onde o Liverpool devia jogar a meia-final, o Education City Stadium, não ficou pronto a tempo, o que obrigou à mudança de três jogos para o Khalifa International Stadium, que será também o palco da final.

Doha vai voltar a receber o Mundial de clubes em 2020, na última edição no atual formato. Depois disso vai mudar, mas não será no Qatar. A FIFA escolheu a China para receber em 2021 a nova competição, que ocupará o espaço da Taça das Confederações e pretende receber a cada quatro anos 24 equipas para discutir o título mundial. A decisão está longe de ser pacífica. O novo formato do Mundial de clubes começou por receber a contestação da ECA, a principal organização de clubes da Europa, enquanto a escolha do primeiro anfitrião foi criticada também por organizações internacionais, em nome dos direitos humanos.

A forma como por exemplo a Liga inglesa menosprezou o Mundial de clubes, marcando um jogo de Taça da Liga ao Liverpool na véspera da meia-final em Doha - os «reds» vão apresentar duas equipas diferentes para contornar o problema do calendário - dá uma ideia do braço de ferro que se joga ao mais alto nível. E a criação, há pouco menos de um mês, de outra organização de clubes, liderada pelo Real Madrid e que se propõe precisamente trabalhar com a FIFA para debater temas como o Mundial de clubes, reforça essa ideia de que se trata de uma questão com forte peso político e com o equilíbrio de forças entre os grandes poderes do futebol em causa. Muito em jogo, muito para lá do exotismo destes primeiros dias do Mundial de clubes.

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