Donald Trump é um extremista sonso.
Faz das posições radicais e intolerantes o eixo da sua ação política e o principal alimento para a sua base eleitoral extremada e insensata, mas de forma periódica e mais consistente do que se possa pensar, recua nas opiniões mais intoleráveis, nunca fechando por completo as pontes com “o sistema”.
Ameaça e insulta, mas depois não assume.
Atira a pedra, esconde a mão, mas quando “os outros” não estão a ver volta a pegar na fisga, para que os seus apaniguados saibam de que lado, verdadeiramente, ele está.
Veste a pele do presidente que mais próximo esteve da NRA e do "lobby" das armas e depois diz que vai propor uma restrição ao acesso a armas modificadas; declara que os EUA saem do Acordo de Paris mas nunca assume, preto no branco, que não acredita nos malefícios das alterações climáticas e até chega a admitir que “os Estados Unidos podem voltar ao acordo, desde que ele seja renegociado e nos prejudique menos”; jura que não é racista nem xenófobo, mas perante um acontecimento como o de Charlottesville coloca o problema como havendo “dois lados com legítimos argumentos cada”; mantém as bandeiras do “muro” e da “travel ban” e depois vai ao Estado da União garantir que “os melhores resultados de emprego e crescimento para os latinos e os negros” foram na sua presidência (o que está longe de ser verdade).
Eleito numa plataforma de “destruir o sistema político de Washington”, tem, na verdade, sabido domá-lo e anestesiá-lo: no Partido Republicano, só há quatro ou cinco vezes persistentes e com dimensão nacional contra o Presidente (McCain, Kasich, Rand Paul, por vezes Paul Ryan e Mitt Romney).
Mas até nisso Donald tem levado a sua avante: pondera apoiar a candidatura de Romney ao Senado pelo Utah (o que não é, propriamente, um gesto de um Presidente que quer "romper com o establishment", como ele garantia na campanha contra Hillary).
Trump sabe que, na hora da verdade, grande parte da bancada republicana se acobarda, embarcando numa espécie de “normalização do inaceitável” – mesmo com a Russia Collusion cada vez mas próxima do Presidente.
Na forma de gerir a política interna, Trump é cada vez menos um “radical estilo Steve Bannon” (a via que escolheu para a fase decisiva da campanha presidencial) e cada vez mais um “republicano entre o conservadorismo tradicional e a linha dura”.
Rendeu-se por completo ao “mantra” de “cortar os impostos, sobretudo aos mais ricos” (ele que, no início das primárias, era dos poucos candidatos republicanos a achar razoável a ideia de progressividade fiscal… vejam lá como isto muda e como, em política, a memória é uma virtude pouco valorizada).
A chave da política de Trump, nesta fase, resulta duma conjugação de “nacionalismo protecionista” (em que se enquadram a hostilidade à China, a aversão aos tratados internacionais e a organizações como a ONU e a NATO) com uma obsessão pelo reforço de fronteiras (talvez a principal e mais consistente marca da sua presidência).
O recente discurso no CPAC, principal evento anual do “caucus” republicano, exibiu essa realidade à evidência: Trump percebeu há muito que o tema que mobiliza e congrega os republicanos é a dureza para com a imigração.
Donald não se coibiu em retomar a alegoria da “Cobra” para falar dos imigrantes ilegais como a grande ameaça à segurança dos americanos, seja pela competição nos empregos seja pela questão da criminalidade.
São duas ideias falsas, demagógicas e irresponsáveis, de quem não é bem um Presidente dos Estados Unidos.
Mas para um extremista sonso como Donald Trump, vale mesmo tudo.
Donald o pior, Obama em 8.º
Tenho dito e escrito que muitos dos comportamentos inaceitáveis de Donald Trump têm ajudado à aceleração de uma certa justiça histórica que é necessário fazer aos oito anos de presidência de Barack Obama.
Não é só o tal sentimento, esse sim mais subjetivo, de... "saudades de Obama".
É algo mais profundo: tem a ver com o manifesto desrespeito que o atual Presidente dos EUA tem pela dimensão do seu cargo.
Ora, com apenas um ano e um mês do adeus de Obama e Trump em funções na Casa Branca, essa avaliação já se reflete no ranking dos melhores presidentes da história americana.
O estudo, realizado pela University of Houston e pela American Political Science Association, auscultou (entre 22 de dezembro de 2017 e 16 de janeiro de 2018) 320 cientistas políticos e historiadores americanos. E coloca Donald Trump em... último lugar, o 44.º (sim, é o 45.º Presidente, mas Grover Cleveland foi presidente em dois momentos diferentes, pelo que, na verdade, Trump é a 44.ª pessoa a ocupar o cargo).
Donald teve uma nota final de 12,34. Abraham Lincoln, o presidente que preservou a União dos EUA durante a Guerra Civil e acabou com a escravatura, aparece em primeiro lugar, com uma nota de 95.03.
George Washington, Pai Fundador e primeiro presidente, em segundo, com 92.59. Dado curioso, e que vai ao encontro da tal "aceleração da justiça histórica" com que abro este texto: Barack Obama, que muitos consideravam um presidente que "desiludiu" e "falhou", é quem mais sobe neste ranking, que não se atualizava desde 2014. Passou de 18.º para 8.º lugar, sendo o melhor colocado entre os presidentes do último meio século. Reagan é nono, Bill Clinton aparece em 13.º (era oitavo em 2014), Kennedy em 16.º, Bush pai em 17.º, Bush filho em 30.º.
O Top 10 é composto por Lincoln, Washington, os dois Roosevelt, Truman, Eisenhower, Obama, Reagan e Johnson.
Quanto a Trump, consegue ficar atrás de James Buchanan, o presidente que não evitou uma guerra civil nos EUA, e William Harrison, o presidente com o mandato mais breve de sempre (ficou apenas um mês na presidência, morrendo de pneumonia).
O tempo é mesmo um excelente conselheiro para repor um certo discernimento histórico. E a sua passagem mostrará, cada vez mais, que desde 20 de janeiro de 2017 que isto não é bem um Presidente dos Estados Unidos.
E que quem estava antes, já agora, foi bem melhor do que muitos se apressaram em sentenciar.
“And so the story goes.”
Esperar que uma raposa dê segurança a um galinheiro
Donald Trump recebeu, para a campanha presidencial de 2016, 11,4 milhões de dólares da National Rifle Association.
Na mesma campanha, a NRA gastou ainda mais do que deu a Trump (12 milhões de dólares) em anúncios a atacar Hillary Clinton, candidata presidencial democrata que tinha no seu programa eleitoral propostas de lei para restrição no acesso às armas nos EUA.
Sobre a relação que mantém com a poderosa NRA, o atual Presidente dos EUA disse o seguinte, a 28 de abril passado, na véspera de completar 100 dias na Casa Branca: “Atravessaram-se por mim e vou sempre atravessar-me por vocês”.
Nesse mesmo dia, Trump elaborou assim a sua jura de amor eterno com a National Rifle Association: “Os oito anos de assalto aos direitos da Segunda Emenda, durante a presidência Obama, chegaram ao fim”.
Era o sublinhar inequívoco que este presidente olha para o direito ao porte de arma, previsto em lugar tão nobre da Constituição americana e concretizado no Gun Control Act de 1968, como algo sagrado e intocável.
Donald Trump foi o primeiro presidente americano em quatro décadas a falar em eventos da NRA (nem George W. Bush fez isso). É, claramente, o Presidente dos EUA mais comprometido com o lobby das armas desde Ronald Reagan (que era membro da NRA). Depois do massacre de Las Vegas (um atirador num prédio desatou a disparar para uma zona onde estava uma multidão a ver um espetáculo, matando 58 pessoas),
Trump reforçou apoio à NRA, dizendo que “se mais pessoas tivessem armas naquela situação, o atirador seria abatido antes de fazer um número elevado de vítimas. Perante todo este historial, a posição do Presidente Trump, exposta nos últimos dias, de limitar o acesso a armas transformadas (que têm um potencial assassino ainda maior) não é, obviamente, para levar a sério.
Esperar que Donald Trump minimize a ameaça do acesso às armas na América seria o mesmo que pedir a uma raposa que desse segurança a um galinheiro.
No pós-massacre de Parkland, Donald Trump propôs que "20 por cento dos professores tenham armas nas escolas", para proteger os alunos de "mass shootings" (coisa, que nos EUA, é 520 vezes mais frequente que um ataque terrorista).
Ou seja: o líder do país mais influente do mundo considera que os professores sejam também uma espécie de seguranças privados com especialização em matar assassinos tresloucados.
O Presidente dos Estados Unidos defendeu esta ideia falando a sério. Não foi uma imagem, não foi uma piada de mau gosto. Foi mesmo uma proposta que lançou quando falava com um grupo de estudantes que sobreviveram ao massacre de Parkland.
E não se pense que foi apenas mais uma excentricidade de alguém que não é bem um Presidente dos EUA. Esta tese de Trump -- simplesmente idiota aos olhos de quem mantenha um mínimo de lucidez -- faz parte da narrativa insana e autista de quem, nos Estados Unidos, toma a questão das armas como um facto consumado.
Para uma parte da sociedade americana, para se enfrentar o problema das vítimas das armas de fogo não se deve restringir o acesso, muito menos proibir a venda.
A solução para esta gente assustadora é dar armas a um maior número possível de pessoas para que um agressor seja morto rapidamente.
É uma conversa propalada nos inflamados programas de rádio dos ultraconservadores, por alguns dos congressistas republicanos mais extremados e agora também por um dos setores que ocupou a Casa Branca há 13 meses.
Daí até se chegar a esta lamentável ideia difundida pelo próprio Presidente foi um passo que mostra como a América é hoje, em muitos aspetos, uma sociedade doente nos valores e nos procedimentos.
São casos como este que me fazem achar que nunca é demais lembrar: não é normal que na Casa Branca esteja alguém como Donald Trump. Era suposto que o Presidente fosse alguém chamasse à razão, não que desse gás às teses mais irresponsáveis.
É uma espécie de mundo ao contrário, quando quem está no topo da pirâmide assume as atitudes menos recomendáveis e proclama os piores exemplos.
É triste e reforça a ideia de que isto não é bem um Presidente dos Estados Unidos.
Como voltar a fechar esta “caixa de Pandora”?
Ainda tem 73% do mandato para cumprir -- mas bastaram 27% para se perceber que os estragos no que tínhamos como certo do que seria um Presidente dos Estados Unidos são reais e ameaçam ser duradouros.
Depois da caixa de Pandora se abrir fica muito mais difícil voltar a pôr lá para dentro os demónios que estavam contidos.
O relógio está a contar e uma das urgências é começar a encontrar alternativas fortes do lado democrata para 2020.
Os próximos meses serão cruciais.
E já não é tão cedo como parece para se analisarem os dados sobre o que decidirá na reeleição, ou não, do mais improvável presidente da história recente americana.
Valha-nos o Supremo
Mas nem tudo está perdido.
O Supremo Tribunal dos EUA sentenciou esta tarde que o DACA (Deferred Action for Childhood Arrivals) não será suspenso até que haja uma nova lei saída do Congresso, relativa à situação de cerca de 700 mil imigrantes indocumentados que chegaram aos Estados Unidos enquanto crianças.
Donald Trump tinha estabelecido como “deadline” o mês de março (ou seja, daqui a poucos dias) para que o Congresso aprove uma lei diferente.
O Presidente nunca assumiu a oposição total à continuidade desses indocumentados – chegou, na verdade, a estar perto de fechar acordo com os democratas sobre o tema – mas nunca se chegou a consenso bipartidário.
Nos últimos meses, o impasse em Washington juntou as divergências orçamentais com as diferenças entre democratas e republicanos neste difícil tema da imigração.
Com esta tomada de posição, o Supremo volta a ter uma função de alívio para o sistema: o poder judicial não se substitui às negociações políticas, mas declara, através do seu órgão máximo e insubstituível, que independentemente da lei que sair do Congresso, os beneficiários do DACA não serão obrigados a sair dos EUA por culpa do impasse político.
É em momentos como estes que percebemos que os tais “checks and balances” do complexo sistema americano funcionam mesmo.
E isso, mesmo em tempos perturbadores como estes da era Trump, é animador.