Brasil investiga morte de 200 pessoas em ensaio clínico com medicamento defendido por Bolsonaro - TVI

Brasil investiga morte de 200 pessoas em ensaio clínico com medicamento defendido por Bolsonaro

  • PF
  • 13 out 2021, 13:37
Jair Bolsonaro nas Nações Unidas

Relatório da Comissão Nacional de Ética e Pesquisa do Brasil aponta falhas graves no modo como foi conduzido o estudo. Familiares de participantes que morreram denunciam falta de informação e consentimento

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Um ensaio clínico sobre a utilização da proxalutamida em doentes com covid-19, durante o qual 200 pessoas terão morrido, está sob investigação no Brasil.

A proxalutamida é uma substância desenvolvida na China e tem sido testada com vista à cura do cancro da mama e da próstata, funcionando pela inibição das hormonas masculinas. 

Um relatório da Comissão Nacional de Ética e Pesquisa do Brasil (CONEP), enviado à Procuradoria-Geral da República do país, em setembro, aponta várias falhas aos métodos utilizados pela clínica responsável pela investigação.

O organismo denuncia inconsistência nos números fornecidos pelo ensaio clínico, liderado pelo médico Flávio Cadegiani e pelo grupo privado de saúde Samel. Numa primeira instância, a CONEP foi informada de que 294 pessoas participaram no estudo, número que viria a subir para 588 e, depois, para 645 participantes, em informações disponibilizadas de forma posterior.

O número de óbitos reportados também sofreu alterações a cada correspondência com a Comissão de Ética, passando de 170 num primeiro momento para 200 na conclusão. A CONEP aponta, de igual modo, que os responsáveis clínicos apenas receberam autorização para testar o medicamento em Brasília e não no estado do Amazonas, onde o ensaio decorreu.

Citado pelo jornal digital GZH, Jorge Alves de Almeida Venâncio, coordenador da CONEP, considera a taxa de mortalidade de 31% no ensaio clínico “espantosa”, e diz que os coordenadores do estudo não informaram sobre quantas mortes ocorreram no grupo que tomou placebo nem quantas foram registadas entre os doentes que tomaram o medicamento.

Os familiares de pacientes envolvidos no estudo deram o seu testemunho à comunicação social: em entrevista ao G1, Alessandra Saar, sobrinha de uma participante que acabou por morrer vítima de covid-19, denuncia a falta de informações recebidas durante todo o processo e mesmo a falta de assinatura de um consentimento informado.

Os próprios acompanhantes tinham que lhe dar o medicamento. O resultado ninguém sabia, porque o corpo técnico que ia lá não perguntava nada, não acompanhava a evolução do paciente. Nunca ninguém passou lá para recolher informações sobre o estudo. Só chegavam lá e perguntavam se já tinha dado o medicamento. Não acompanharam nem o fim do tratamento. Só deixamos de dar o medicamento depois de ela ser transferida para Manaus” conta Alessandra Saar.

O presidente da Samel, Luis Alberto Nicolau, defende-se e afirma estar a ser vítima de perseguição política.

Foi tudo filmado, não fizemos nada às escondidas. O que está a ser feito agora é uma ‘politicagem’, não estamos mais a falar de ciência, estamos a falar de política. A proxalutamida é um remédio que provou 70% da queda do índice de mortalidade e reduziu mais de 90% a intubação e ninguém fala dele” aponta.

Luis Alberto Nicolau reforça, de igual modo, que à grande maioria dos pacientes que morreram durante o estudo foi dado placebo.

No interior nós tínhamos 50% de mortalidade naquela altura, dependendo do hospital. Esses óbitos são do grupo placebo. O grupo que recebeu a proxalutamida tinha uma taxa de 8%”, defende.

No dia 9 de outubro, a Rede Latino-americana e Caribenha de Bioética da UNESCO emitiu um comunicado, em que afirma que este pode ser um dos “episódios mais graves e sérios de infração à ética de pesquisas e de violação de direitos humanos dos participantes na América Latina, que envolve a morte de 200 participantes”.

A a assessoria de imprensa de Flávio Cadegiani, o endocrinologista responsável pelo estudo, considera que a UNESCO foi guiada por “informações falsas e distorcidas pela CONEP”.

A pesquisa atendeu aos mais rígidos princípios éticos, além de atender a todas as formalidades necessárias. Os pesquisadores nunca se recusaram a prestar qualquer esclarecimento”, pode ler-se em comunicado.

Em julho deste ano, o presidente brasileiro Jair Bolsonaro promoveu o uso desta substância, ainda sem eficácia comprovada, no tratamento da covid-19.

Há uma coisa que eu acompanho há algum tempo e nós temos de estudar aqui no Brasil. Chama-se proxalutamida. Já tem uns meses, não está no mercado, é um medicamento ainda em estudo. Existe no Brasil de forma não comprovada cientificamente", afirmou Bolsonaro.

A proxalutamida não é o primeiro medicamento sem eficácia comprovada que o presidente brasileiro defende publicamente. Ainda em 2020, Bolsonaro promoveu o uso de hidroxicloroquina como "tratamento precoce" para a covid-19. Já neste ano de 2021, foram várias as vezes que o presidente brasileiro manifestou apoio público ao uso de ivermectina, desparasitante muito usado em animais, no tratamento do vírus causador da pandemia.

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