Uma Liga criada do zero, entre longas viagens e corridas de cavalos - TVI

Uma Liga criada do zero, entre longas viagens e corridas de cavalos

Canada Premier League (Fotos Reuters)

Canadá, o segundo maior país do mundo, era dos poucos que não tinham uma Liga e decidiu pôr mãos à obra. A pensar nos jogadores canadianos e no Mundial 2026. Visita guiada em português pelo líder da Canadian Premier League

O Canadá criou um campeonato profissional a partir do zero. O segundo maior país do mundo era dos poucos que não tinham uma Liga e decidiu pôr mãos à obra. A pensar nos jogadores canadianos e no Mundial 2026, que vai organizar em conjunto com os EUA e o México. Aí está ela, com muitos desafios pela frente, a começar pela distância: há clubes separados por mais de quatro mil quilómetros. Que o diga Mauro Eustáquio, que joga no líder da Canadian Premier League.

Mauro nasceu na Nazaré mas emigrou cedo para o Canadá, onde já veio ao mundo o seu irmão Stephen, que esta época trocou o Desp. Chaves pelo Cruz Azul, no México. É Mauro, que joga agora no Cavalry FC, quem guia o Maisfutebol nesta viagem à mais jovem Liga profissional do mundo.

«Havia equipas profissionais, mas inscritas em campeonatos dos EUA. O Canadá está a produzir cada vez melhores jogadores e para dar oportunidade aos seus jogadores nada melhor do que ter o seu próprio campeonato. Demorou a acontecer, mas ainda bem que aconteceu», começa por dizer Mauro.

A ideia já tem alguns anos e viu agora a luz, com seis das sete equipas participantes criadas a partir do zero. «É um bocado estranho. Mas a MLS também nasceu assim, nos anos 90», sorri Mauro Eustáquio, a falar sobre o processo de criação da Liga e das novas equipas, assente em investidores que já estavam ligados ao desporto. Quase todas, explica, têm origem em clubes de futebol americano.

«Aqui o futebol americano tem muita força. Nos EUA existe a NFL, aqui é a CFL. São equipas que mexem com muito dinheiro, que têm muita estabilidade financeira. Os presidentes da Concacaf e da Liga canadiana falaram com os presidentes desses clubes para criarem clubes de futebol, porque já tinham tudo, a base financeira e as infra-estruturas - ginásio, campos de treinos, estádio. O que tinham de fazer era uma equipa. Foram convidadas doze, seis disseram que sim, outras quiseram esperar um ano para ver como funciona.»

Um estádio no meio de corridas de cavalos: «O negócio mais importante não somos nós…»

«Várias equipas têm os mesmos donos de equipas do futebol americano», continua Mauro. Mas não o Cavalry, o clube onde joga o médio de origem portuguesa. «Os donos do Cavalry são donos de Spruce Meadows, que é assim uma espécie de Estádio Bernabéu das corridas de cavalos, de eventos desse tipo, com um poder económico muito grande. Duas das maiores etapas de corridas de cavalos são aqui, com prémios de mais de um milhão de dólares.»

Foi no meio de Spruce Meadows que nasceu o estádio do Cavalry. «É lá que jogámos, o nosso estádio foi montado dentro do complexo. Já havia o terreno, porque é tudo relvado, só tiveram que montar as bancadas. Temos bom piso, boas bancadas, é um bom estádio. Tem capacidade para oito mil pessoas», conta Mauro, a sorrir quando acrescenta que às vezes os calendários do futebol e das corridas de cavalos vão sobrepor-se: «Lá para o verão vai coincidir, e como as corridas de cavalos são muito rentáveis, falaram com a nossa Liga e a data do nosso jogo foi alterada para domingo. O negócio mais importante não somos nós, são as corridas de cavalos…»

Então aí estão eles. Além do Cavalry FC, que está sedeado em Calgary, jogam a Canadian Premier League (CPL) o Forge FC, o HFX Wanderers FC, o Pacific FC, Valour FC e o York 9 FC. Mais o FC Edmonton, o único clube que não foi criado de raíz: jogou na North American Soccer League e extinguiu a equipa com o fim dessa competição, mas revitalizou-a agora e mudou-se para «casa».

O processo de criação dos clubes foi cuidadosamente preparado, diz Mauro. «A Liga e o clube fizeram as coisas muito bem feitas. O nome do clube, o símbolo, é tudo inspirado na história de Calgary. As pessoas, nomeadamente os mais idosos, identificam-se», explica.

Essa lógica de identificação com a cidade foi seguida por todas as equipas. E depois há o potencial de interesse dos muitos emigrantes que vivem no Canadá «É um país de emigrantes. Este povo nasceu com futebol à volta, não é difícil cativá-los», diz Mauro.

Para o Cavalry as coisas estão a correr particularmente bem, fora de campo e lá dentro. O clube venceu os cinco primeiros jogos da CPL, e já ganhou mais outros dois para o Canadian Championship, competição que já existia e funciona em sistema de eliminatórias. Portanto, tem sete vitórias em sete jogos. «Com o nosso arranque e as nossas vitórias é ainda mais fácil ganhar apoio. Está a correr muito bem», diz Mauro.

Milhares de quilómetros de viagens, «uma coisa absurda»

A Liga do Canadá tem duas temporadas, a Spring Season e a Fall Season. O campeão, explica Mauro, «é apurado numa final, em casa de quem vencer a Spring Season». O título dá acesso à pré-qualificação da Liga dos Campeões da Concacaf. E as equipas jogam ainda o Canadian Championship, que se pode considerar agora o equivalente à Taça e garante um lugar na fase de grupos da prova maior da Concacaf.

No Canadian Championship estão os sete clubes da Liga canadiana, mais as três equipas canadianas  que jogam a MLS - Toronto FC, Vancouver Whitecaps e Montreal Impact – o Ottawa Fury, que está no segundo campeonato norte-americano, e ainda duas equipas que vieram dos campeonatos regionais do Canadá. Tudo somado, são distâncias impensáveis, sobretudo vistas da Europa. Há mais de 4.400km a separar as sedes do HFX Wanderers FC, a leste na Nova Escócia, e do Pacific FC, a oeste em Vancouver Island. Segundo contas da própria CPL, esta é a terceira maior distância do mundo para um jogo de um campeonato nacional.

Em meados de maio, o Cavalry foi jogar a Hamilton, a casa do Forge FC, que fica a três mil quilómetros de distância. E quatro dias depois teve que ir ao outro extremo do país, jogar para o Canadian Championship no terreno do Pacific FC, em Vancouver Island.

«Saímos na terça-feira, apanhámos um voo de cinco horas até Toronto, depois mais outro de quatro horas e meia. É muito cansativo, não tem comparação com o que acontece na Europa», conta Mauro. «Depois há fusos horários diferentes, mexe com o próprio organismo, é preciso muita capacidade de adaptação. O Canadá é enorme. Só com as sete equipas da Canadian Premier League já estamos a viajar 4/5 horas de voo, com o resto do país vai haver viagens de 8/9 horas. É uma coisa absurda.»

Num país onde não é o desporto principal, há vários outros obstáculos à afirmação do futebol. No masculino, porque no feminino já há muito que a seleção é uma potência mundial. É um desporto muito praticado por crianças e jovens, mas faltava a continuidade.

«É o desporto mais praticado no Canadá. Embora não o mais visto, esse é o hóquei», explica Mauro, acrescentando que há várias limitações naturais a complicar, uma delas o tempo: «O verão aqui é curto, são quatro meses. Existe o Indoor Soccer mas há muitas crianças que para jogar indoor preferem o hóquei. É uma barreira que com o tempo vai ser ultrapassada.»

Uma Liga «de canadianos, para canadianos»

Com um Mundial onde o Canadá tem presença garantida no horizonte, a solução foi mesmo forçar a criação de uma competição: «As cabeças pensantes do futebol canadiano concluíram que era preciso competição para potenciar a qualidade, para que não acontecesse como até aqui, que os miúdos aos 15, 16 anos não tinham perspetivas de futuro.»

David Clanachan, o comissário da Liga, explicou assim a ideia, em declarações reproduzidas pela BBC: «O interesse pelo jogo cresceu exponencialmente. O crescimento é muito igual do ponto de vista do género e é o desporto que mais cresce entre emigrantes. As três equipas do Canadá na MLS fizeram um trabalho fenomenal para elevar o nível do jogo e ensinar aos canadianos como o jogo pode ser, mas ainda não são vistas como representantes do futebol canadiano.»

Mauro Eustáquio reforça a ideia: «A prioridade era criar uma Liga para canadianos. O lema é 'By canadians for canadians'. Dar oportunidades a jogadores canadianos, a treinadores canadianos», continua Mauro.

Há regras rígidas quanto a isso. Os clubes só podem contratar sete estrangeiros, e na ficha de jogo pelo menos seis têm de ser canadianos. E é assim que funciona, com algumas exceções. O Cavalry, por exemplo, tem um treinador de origem inglesa, Tommy Wheeldon. «O nosso treinador é de Liverpool, mas já vive no Canadá há 15 anos. O Pacific tem um treinado suíço. Para trazer mais conhecimento tiveram que ir buscar alguns fora, mas a maioria são canadianos», conta Mauro.

Ligações portuguesas que vão até… Alex Bunbury

Também há algumas ligações portuguesas, num país com muita emigração lusa. «Há bastantes jogadores com ligações portuguesas. Diria que sou o mais português, ainda vivi em Portugal, nasci lá, tenho origens bem vincadas. Mas há muitos que têm avós ou tios portugueses e que todos os anos vão a Portugal. Diria que há uns 20 jogadores com origens portuguesas. Quando estive nas seleções jovens, nos sub-20 e sub-21, conheci alguns.»

E pode haver mais rostos familiares para Portugal. No Canadá tem sido noticiado o envolvimento de Alex Bunbury, antigo avançado que jogou várias temporadas no Marítimo nos anos 90, na criação de uma equipa para se juntar à Liga canadiana. «O Alex Bunbury está ligado a uma equipa no Quebec. Pelo que tenho ouvido vai ser inserido na CPL para o ano, junto com o Ottawa Fury», conta Mauro Eustáquio.

Pelo que já viu, Mauro acredita no futuro da Liga e do futebol no Canadá. «Vai ser uma Liga competitiva. Os canadianos têm uma mentalidade muito evoluída e o que fazem têm tendência a fazer bem, com pés e cabeça. Já tem direitos TV negociados, tem muita coisa para uma Liga de primeiro ano. Pode ser uma Liga bastante competitiva e daqui a dois, três anos vai ser aliciante para qualquer jogador», afirma, reforçando: «O futebol no Canadá vai ter um boom até 2026. Está longe, mas já existe um «buzz» sobre isso. Está tudo a acontecer muito rápido. Existe um movimento que está a deixar as pessoas curiosas, já há claques organizadas. Há um salto muito grande neste momento.».

Mauro, que é internacional sub-23 pelo Canadá, sente-se parte deste mundo. «O meu mercado é este. Já jogo como profissional na América do Norte há seis anos.» E, embora sem viver focado nisso, tem no horizonte uma chamada à seleção do Canadá. O seu irmão Stephen, que foi internacional sub-21 por Portugal, já assumiu a escolha pelo Canadá. Para Mauro ela é natural: «Tive um ano difícil com a lesão. Não sou obcecado por isso, mas se aparecer a oportunidade melhor.» Quanto a um regresso a Portugal, deixa-o em aberto: «Se existisse uma oportunidade boa para mim gostava de experimentar, mas estou aqui bem.»

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