Horas antes de ser morta - ontem - Marielle Franco participou numa conversa com jovens negras que fez questão de transmitir nas suas páginas de Twitter e de Facebook. Esta mulher, vereadora na câmara do Rio de Janeiro há mais de um ano, ativista e negra, abraçava com alma as causas de género e da não-violência. Anteontem fez uma pergunta direta sobre as mortes que estão a assolar a, agora ironicamente, Cidade Maravilhosa, sem saber que lhe iriam tirar a própria vida, aos 38 anos, em pleno centro da cidade, aos tiros.
Mais um homicídio de um jovem que pode estar entrando para a conta da PM. Matheus Melo estava saindo da igreja. Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?
— Marielle Franco (@mariellefranco) March 13, 2018
A onda de violência no Brasil já ganhou proporções que nem sempre encontram eco na imprensa internacional. Ainda assim, há menos de um mês também chegou a este lado do Atlântico a força de um vídeo ciral feito por moradores de favelas do Rio, com dicas para agir em caso de abordagem imprópria das policias. Um vídeo feito para "sobreviver": "Se você é negro, preste atenção", pedem três jovens (um publicitário, um repórter e um youtuber).
Marielle também era negra. Também lutou contra a violência perante os mais fracos, pela defesa dos moradores das favelas, dos direitos humanos e das mulheres. Uma política de causas. Uma política apoiada: foi a quinta vereadora mais votada em 2016, contando com o apoio de 46 mil eleitores. Basta espreitar as redes sociais onde participava para perceber.
#NãoVãoSilenciarMarielle
O assassinato de Marielle está a deixar o Brasil em estado de choque. Logo se começou a criar um movimento para não deixar que seja apenas mais uma morte. Pede-se justiça, no meio da tristeza. Disso é exemplo a publicação feita pelo músico Caetano Veloso. Figuras públicas pedem a continuidade das lutas desta mulher "guerreira", como é apelidada pelo ator, escritor e humorista Gregorio Dudivier.
Também a eurodeputada Marisa Matias partilhou uma iniciativa de solidariedade com Marielle no Parlamento Europeu.
Assassinos sabiam lugar exato que ocupava dentro do carro
O jornal O Globo escreve, esta quinta-feira, que os polícias da Divisão de Homicídios que estão a investigar o assassinato da vereadora acreditam que os responsáveis pelo crime já sabiam o lugar exato que Marielle ocupava dentro do carro de vidros escurecidos: seguia no banco traseiro à direita. É que os disparos foram feitos de trás para a dianteira do veículo e entraram, precisamente, pela janela lateral traseira.
Também o motorista Anderson Pedro Gomes foi alvejado. A assessora de imprensa de Marielle foi atingida pelos estilhaços do vidro que se partiu com os tiros.
A tese de assalto parece estar afastada. Até porque nenhum bem foi roubado. Assassinato é a principal linha de investigação. A forma que a cantora e atriz Clarice Falcão usou para não deixar passar em branco a morte de Marielle Franco foi, precisamente, fazer referência às possíveis teorias da conspiração que, para si, não colhem.
Lutas de uma vida... até à morte
Marielle Franco estudou Sociologia, com uma bolsa, e fez mestrado em Administração Pública. Foi assessora parlamentar do deputado estadual Marcelo Freixo, que tinha sido seu colega de curso. Foi eleita há dois anos para a câmara do Rio de Janeiro.
Quinta vereadora mais votada, era presidente da Comissão de Defesa da Mulher. Apresentou, nesse âmbito, um projeto para a criação do Dossiê da Mulher Carioca. Queria agregar dados sobre a violência de género no Rio de Janeiro. Outras das suas lutas foram para viabilizar o aborto na cidade, nas condições estabelecidas pelo Supremo Tribunal Federal, e para aumentar o número de Casas de Parto, para os partos normais.
Enquanto vereadora, Marielle apresentou também 116 propostas, incluindo 16 projetos de lei. Dois deles chegaram mesmo a lei: um para permitir o serviço de mototáxi na cidade, o outro para limitar os contratos da câmara, com as organizações sociais, à área de saúde. Estava a preparar ainda um projeto de lei para penalizar o assédio nos autocarros.
Fazia parte da Frente em Defesa da Economia Solidária. As questões de género, ad efesa dos negros, a educação, a economia e o ativismo estavam no seu sangue.
A propósito do Dia da Mulher, que se assinalou na semana passada, passou a sua última semana de vida com uma agenda cheia, que culminou com o encontro com jovens negras desta quarta-feira. Horas antes de encontrar, sem nada o fazer prever, a sua própria morte.