Mundial Feminino: elas deram o próximo passo - TVI

Mundial Feminino: elas deram o próximo passo

Final do Mundial feminino, EUA-Holanda (Reuters)

Campeonato do Mundo 2019 deu visibilidade como nunca ao futebol jogado por elas e deixou muitos sinais de mudança e afirmação. Teve estrelas a dar que falar no relvado e fora dele, teve recordes de audiência, promessas para o futuro. Um olhar pelo que ficou de França.

O Campeonato do Mundo feminino 2019 acabou com a vitória dos Estados Unidos e se daqui não parece vir nada de novo é melhor olharmos outra vez. O Mundial de França deu visibilidade como nunca ao futebol jogado por elas e deixou muitos sinais de mudança e afirmação. Teve estrelas a dar que falar no relvado e fora dele, teve recordes de audiência, promessas para o futuro. E mais bases para o caminho que ainda há pela frente. Um olhar pelo que ficou de França.

O futebol jogado por elas tem vindo a crescer e muito mudou desde o último Mundial, há quatro anos. Os sinais para 2019 estavam lá desde o início. Nunca um Campeonato do Mundo feminino teve tanta atenção mediática, nem tanta gente a ver. Houve 62 países a transmitir os jogos, contra 37 em 2015. Bateram-se máximos de audiência em muitos dos países das principais seleções: em Inglaterra, a campanha das «Lionesses» foi em crescendo até atingir um pico de 11.7 milhões de espectadores na meia-final perdida para os Estados Unidos, o número mais alto para uma transmissão televisiva britânica este ano. Em França, os jogos da seleção anfitriã atraíram sempre audiência na casa dos 10 milhões, com um máximo de 11.9 milhões no jogo dos oitavos de final com o Brasil. A meia-final entre a Holanda e a Suécia teve «shares» de audiência acima dos 78 por cento em ambos os países.

Há mais interesse também das marcas: muitas lançaram campanhas publicitárias especiais para o Mundial. E há interesse do público. Outro dado: a marca que fornece o equipamento à seleção norte-americana revelou por estes dias que a camisola da seleção feminina foi a mais vendida de sempre online numa só época.

Há mais gente a jogar, também. A FIFA lançou por estes dias um relatório que faz o diagnóstico do futebol feminino pelo mundo e conclui, por exemplo, que nesta altura 73 por cento dos países têm seleção feminina, contra 55 por cento em 2015. Há ao todo, de acordo com esses dados, 13.3 milhões de raparigas a jogar futebol organizado pelo mundo, ainda que o número seja largamente dominado pelos Estados Unidos, com 9.5 milhões.

O Mundial a puxar pelas Ligas, com novidades em Inglaterra

Claro que ainda é um crescimento a várias velocidades. Há apenas oito países com mais de 100 mil jogadoras registadas. Seis deles são europeus, os outros são Estados Unidos e Canadá. E sete deles estiveram nos quartos de final do Mundial: Estados Unidos, Suécia, Holanda, Alemanha, Noruega, Inglaterra e França. A «intrusa» nos quartos foi a Itália, que tem 69 mil praticantes. Nesses países o futebol feminino tem uma dimensão muito acima da média: basta ver a finalista Holanda, com 161.902 mulheres a jogar futebol organizado numa população de 16 milhões, enquanto Portugal, em 10.3 milhões, tem 13.951.

Mas está a crescer, também nos clubes. A maior parte dos países europeus, Portugal incluído, já têm Ligas femininas. Em Espanha, este ano, um jogo do At. Madrid feminino teve mais de 60 mil espectadores. O Real Madrid acaba de anunciar que irá criar também uma equipa.

O Mundial 2019 atraiu mais gente para o futebol feminino, o desafio agora é aproveitar esse interesse. Como assumem, por exemplo, os responsáveis do futebol inglês, onde há uma Liga feminina profissional, com os principais clubes envolvidos mas com assistências baixas nos estádios. A Federação inglesa (FA) anunciou agora que vai experimentar na próxima temporada fazer jornadas simultâneas de jogos masculinos e femininos dos grandes clubes. «O nosso trabalho é garantir que capitalizamos o entusiasmo do Mundial e aumentamos audiências e assistências», disse Kelly Simmons, diretora da FA para o futebol, à BBC.

Muitas vozes, entre todas a de Megan Rapinoe

Com o Mundial 2019, o futebol jogado por elas ganhou mais visibilidade. E voz. Muitas vozes, mas sobre todas a de Megan Rapinoe. Estrela entre estrelas, a norte-americana terminou como melhor jogadora e melhor marcadora do Mundial e foi protagonista muito para lá do jogo. Megan, agora bicampeã do mundo, já era uma voz ativa pela causa LGBT e em muitas outras batalhas. Em 2016 aderiu, por exemplo, ao protesto iniciado por Colin Kaepernick e colocou um joelho no chão no momento de tocar o hino dos EUA, em protesto contra a violência policial sobre negros. É um dos rostos da campanha da seleção norte-americana pela igualdade salarial em relação aos homens: elas processaram a federação e o processo está em curso. Abertamente crítica de Donald Trump, assumiu já em França que não iria à Casa Branca se fosse campeã do mundo: «I’m not going to the fucking White House.» Trump reagiu a dizer para ela «ganhar antes de falar». Pois ela ganhou e pelo meio continuou a falar. Também disse, por exemplo, que «não era possível ganhar sem gays na equipa». E na véspera da final criticou o calendário, por coincidirem no mesmo dia as finais da Copa América, da Gold Cup e do Mundial feminino, e a FIFA pela disparidade no «prize money» pago a homens e mulheres.

As polémicas e o impacto que elas tiveram são outra forma de medir a visibilidade que o Mundial lhes deu, a elas. Que o diga Alex Morgan. A avançada festejou o golo à Inglaterra na meia-final fingindo beber uma chávena de chá e o gesto deu tanto que falar que ela se viu obrigada a voltar ao assunto, para dizer que há «uma espécie de medida dupla em relação às mulheres no desporto»: «Parece que temos de ser humildes nos nossos sucessos.»

A história do futebol feminino é uma história de luta. Que sente mais quem anda há mais tempo nisto. É também de desigualdade de tratamento que fala Ada Hegerberg, a primeira vencedora da Bola de Ouro feminina, no ano passado, que recusou ir ao Mundial com a seleção da Noruega. É de compromisso com uma causa que fala Marta, a estrela do Brasil, melhor marcadora de sempre do Mundial. Depois da eliminação nos oitavos de final frente à França, ela deixou palavras emocionadas dirigidas às suas compatriotas, noutra das imagens fortes que ficam do Mundial: «O futebol feminino depende de vocês para sobreviver. Pensem nisso, valorizem mais. Chorem no começo para sorrir no fim.»

As promessas da FIFA e os gritos na final: «Equal Pay»

O fosso entre o futebol jogado por homens e o futebol jogado por mulheres ainda é grande. O «Guardian» revelava há dias que a Federação norte-americana paga seis vezes mais aos homens. Quanto à FIFA, distribuiu 344 milhões de euros para o Mundial 2018, enquanto os prémios no Mundial feminino foram no total de 30 milhões de dólares (26.7 milhões de euros).

Gianni Infantino, o presidente da FIFA, anunciou no final do Mundial 2019 várias medidas para potenciar o futebol feminino, que vão da criação de um Mundial de clubes ao aumento do Mundial de seleções de 24 para 32 equipas. Também prometeu duplicar os prémios para o próximo Campeonato do Mundo e duplicar o investimento no futebol feminino nos próximos quatro anos.

O assunto está longe de estar encerrado. Como percebeu Infantino, que neste domingo ouviu o público que encheu o estádio de Lyon reclamar alto e bom som pela igualdade de tratamento. «Equal Pay», gritou-se nas bancadas.

No final, Rapinoe disse que já é tempo de avançar neste debate. «Estamos fartos da conversa se valemos o mesmo, se devíamos ter salário igual, se o mercado é igual. Os adeptos estão fartos, as jogadores estão fartas. Vamos para o passo seguinte. Como apoiamos as federações femininas e os programas femininos pelo mundo? O que pode a FIFA fazer para isso?», afirmou: «Como jogadoras, todas as jogadoras neste Mundial, demos o espetáculo mais incrível que podiam pedir. Não podemos fazer mais nada para impressionar mais. É altura de levar isto para o próximo patamar.»

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