Ex-comissária da UE entre os políticos citados em novas revelações sobre offshores nas Bahamas - TVI

Ex-comissária da UE entre os políticos citados em novas revelações sobre offshores nas Bahamas

  • Redação
  • Por Will Fitzgibbon e Emilia Díaz-Struck ICIJ (Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação)
  • 21 set 2016, 19:00
Neelie Kroes

Conjunto de documentos fornece nomes de políticos e outros indivíduos ligados a mais de 175 mil empresas registadas na Bahamas entre 1990 e 2016

Durante anos, Neelie Kroes viajou pela Europa enquanto alta funcionária do continente, avisando grandes empresas de que não podiam “fugir” às regras da União Europeia. A política holandesa compadecia-se dos cidadãos comuns que se preocupam com a possibilidade de serem eles a pagar as contas “enquanto os infratores guardam os lucros extra”.


Enquanto comissária europeia da Concorrência entre 2004 e 2010, foi a executora empresarial de topo da Europa e integrou cinco vezes a lista anual da revista “Forbes” das “100 mulheres mais poderosas do mundo”.

Mas o que Kroes nunca disse ao público — nem aos membros da Comissão Europeia em audiências obrigatórias em 2010 e 2014 — é que tinha sido listada como diretora de uma empresa offshore nas Bahamas, o paraíso fiscal caribenho cujas estruturas tributárias e  de sigilo atraem tanto multinacionais como criminosos.

Kroes foi a diretora declarada de uma empresa das Bahamas entre 2000 e 2009, de acordo com documentos analisados pelo Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (ICIJ, na sigla inglesa). 

Através de um advogado, Kroes disse ao ICIJ e aos seus parceiros de media que não declarou o cargo ocupado na empresa porque esta nunca esteve operacional. O advogado de Kroes culpa “uma supervisão clerical que não foi corrigida até 2009” pelo facto de o seu nome constar dos registos da empresa. O advogado diz que a empresa foi criada através de um empresário jordano amigo de Kroes para investigar a possibilidade de angariar dinheiro para comprar bens, avaliados em mais de seis mil milhões de dólares, à Enron Corp., a gigante energética norte-americana. O acordo nunca foi concretizado e a Enron viria mais tarde a colapsar na sequência de um escândalo de contabilidade massivo.

Emily O’Reilley, a provedora de Justiça europeia com poderes para investigar alegadas violações das regras e procedimentos da UE, não comenta o caso de Kroes mas diz: “Quando as regras são quebradas, acidentalmente ou não, a impressão negativa que é deixada no público tende a ressoar com mais força do que qualquer medida positiva que possa ser subsequentemente adotada.”

Os detalhes da ligação de Kroes à empresa offshore estão entre as revelações contidas numa nova fuga de documentos, recebida pelo jornal alemão Süddeutsche Zeitung e partilhada com o ICIJ, que põe a descoberto os detalhes por trás de empresas incorporadas nas Bahamas. O conjunto de 1,3 milhões de ficheiros do registo empresarial da nação insular fornece nomes de diretores e de alguns dos proprietários de mais de 175 mil empresas, fundos e fundações registados nas Bahamas entre 1990 e o início de 2016.

Hoje, o ICIJ, o Süddeutsche Zeitung e outros parceiros de media estão a disponibilizar estas informações ao público. Pela primeira vez é criado um registo online, gratuito e pesquisável pelo público de empresas offshore criadas nas Bahamas. Estas informações foram associadas aos documentos do Panama Papers e outros sobre offshores para dar um peso adicional a uma das maiores bases de dados da História sobre entidades offshore.

As novas informações revelam ligações até agora desconhecidas ou pouco investigadas a empresas detidas ou geridas por atuais ou antigos políticos das Américas, África, Europa, Ásia e Médio Oriente.

Na capital das Bahamas, Nassau, os documentos empresariais podem ser consultados ao vivo. Um registo online, em teoria, serve o mesmo propósito. Contudo, a informação contida no registo online do Governo das Bahamas está muitas vezes incompleto. Para além disso, recuperar os documentos de uma empresa custa pelo menos 10 dólares, o que contraria a recomendação da associação internacional de registos empresariais, que desencoraja a aplicação de taxas de busca.

Os dados hoje divulgados envolvem as bases de construção de empresas offshore: o nome de uma empresa, a data da sua criação, a morada física e apartado nas Bahamas e, nalguns casos, os nomes dos diretores. Num nível básico, esta informação é crucial para o comércio do dia-a-dia. Noutros casos, a polícia, detetives ou investigadores de fraudes usam os registos como ponto de partida no trilho de irregularidades.

“Os registos empresariais são incrivelmente importantes”, diz Debra LaPrevotte, ex-agente especial do FBI cujo trabalho passava por rastrear os milhares de milhões de dólares em subornos e outros rendimentos de corrupção escondidos por políticos da Ucrânia, Nigéria e Bangladesh em paraísos fiscais. “As empresas offshore são muitas vezes usadas como intermediárias para facilitar a lavagem de dinheiro e, frequentemente, as empresas só são usadas para abrir contas bancárias, daí que os documentos do registo empresarial, que podem identificar os usufrutuários, sejam parte das provas.”

 

Novas informações

Ao contrário dos Panama Papers — 11,5 milhões de emails, contratos, gravações áudio e outros documentos, muitas vezes detalhados, de uma sociedade de advogados — a informação incluída nos novos documentos das Bahamas, ainda que fundamental, é mais simples em conteúdo. Os novos dados não clarificam, por exemplo, se os diretores nomeados em relação a dada empresa das Bahamas controlam de facto a empresa ou se agem como ‘nomeados’, funcionários contratados para dar a cara pela empresa mas que não estão envolvidos nas suas operações.

Quando analisados a par dos Panama Papers, os dados das Bahamas fornecem novas informações sobre as negociatas offshore de políticos, criminosos e executivos, bem como dos banqueiros e advogados que os ajudaram a movimentar o dinheiro.

Os novos documentos incluem os nomes de 539 agentes registados — intermediários empresariais que fizeram a ponte entre as autoridades das Bahamas e os clientes que pretendiam criar empresas offshore. Entre eles está a Mossack Fonseca, a sociedade de advogados cujos ficheiros internos formaram a base dos Panama Papers. A empresa criou 15.915 entidades nas Bahamas, fazendo do arquipélago a sua terceira principal jurisdição. Em determinado ponto, empresas das Bahamas estiveram entre as de maior sucesso da Mossack Fonseca.

Os Panama Papers mostram como a Mossack Fonseca ajudou clientes a usar o sigilo das Bahamas para manter os seus nomes fora dos registos públicos e como a firma de advocacia minou os esforços globais por maior transparência fiscal.

Para além da Mossack Fonseca e dos Panama Papers, os documentos das Bahamas revelados detalham as atividades offshore de primeiros-ministros, ministros, príncipes e criminosos condenados. Geralmente não é ilegal deter ou liderar uma empresa offshore e existem razões empresariais legítimas em muitos casos para se criar uma estrutura offshore. Mas especialistas em transparência dizem que é importante que altos funcionários públicos declarem as suas ligações a entidades offshore.

Figuras políticas e governamentais citadas nos documentos vazados incluem o ministro colombiano das Minas e Energia entre 1999 e 2001, Carlos Caballero Argáez, que surge listado como presidente e secretário de uma empresa das Bahamas, a Pavc Properties Inc., entre 1997 e 2008. Caballero Argáez também aparece como diretor da Norway Inc., uma empresa registada nas Bahamas entre 1990 e 2015.

Ao ICIJ, Argáez disse que a Norway Inc. tinha uma conta bancária em Miami que era gerida pelo seu pai. Os bens dessa conta foram distribuídos pelos filhos após a sua morte, diz Argáez. A Pavc Properties detinha um apartamento em Miami, adiantou Argáez, e a sua relação com a empresa acabou em 2008, quando vendeu as suas ações. Argáez diz que ele e outros escolheram as Bahamas a conselho dos seus advogados. Nega qualquer conflito de interesse e diz que a empresa foi criada nas Bahamas com “fins tributários”.

No caso de Kroes, a antiga funcionária de topo da UE, os registos mostram que foi diretora da Mint Holdings Ltd entre julho de 2000 e outubro de 2009. A empresa foi registada nas Bahamas em abril de 2000 e continua ativa.

Em resposta a questões do ICIJ, do The Guardian dos jornais holandeses Trouw e Het Financieele Dagblad, Kroes reconheceu que não assumiu a sua ligação a esta empresa na sua declaração de interesses financeiros pessoais quando se tornou comissária europeia da Concorrência em 2004 ou em declarações seguintes enquanto funcionária de alto nível da UE.

Kroes foi comissária da Concorrência entre novembro de 2004 e fevereiro de 2010 e comissária da Agenda Digital entre fevereiro de 2010 e novembro de 2014.

As regras da UE exigem que os comissários europeus declarem todos os seus interesses económicos e financeiros nos dez anos anteriores a ocuparem o cargo, incluindo posições de governação, supervisão ou aconselhamento em empresas dedicadas a atividades económicas e comerciais.

Entre os outros diretores da Mint Holdings conta-se o empresário jordano Amin Badr-el-Din, que continuava a ser citado enquanto diretor em documentos de julho de 2015. O registo online empresarial das Bahamas não lista os diretores da empresa.

Badr-El-Din fundou a UAE Offsets Group, uma empresa que reinveste nos Emirados Árabes Unidos os rendimentos de vendas de armamento. A UAE Offsets Group manteve no passado contratos com a fabricante de armas Lockheed Martin Corp. Kroes trabalhou como lobista para a Lockheed antes de ser nomeada comissária da UE para a Concorrência.


Quando foi escolhida para o cargo, Kroes colocou o seu dinheiro num fundo fiduciário cego e prometeu evitar adjudicar contratos a empresas com as quais tinha mantido ligações. 

Apesar de os seus opositores estarem preocupados que ela pudesse ser demasiado branda com o mundo empresarial, Kroes angariou a alcunha “Steely Neely” (Neelie de ferro, numa tradução livre) ao impôr multas recorde a empresas que fixavam preços ou que organizavam monopólios injustos.

Desde que abandonou os cargos na UE, contudo, já teceu críticas à sua sucessora à frente da Concorrência pela sentença contra a Apple, onde é declarado que a gigante tecnológica deve à Irlanda 13 mil milhões de euros em impostos não pagos.

Aos 75 anos, Kroes é atualmente diretora ou integra os conselhos de administração de várias empresas e trabalha como conselheira do Bank of America, do Merrill Lynch e da Uber. Continua a ser um membro influente do Partido Popular para a Liberdade e Democracia, que está no poder na Holanda.

Kroes rejeita quaisquer críticas às suas atividades empresariais. O seu advogado diz que ela desmente que “algum dia tenha havido conflitos por ligações ao setor privado”.

As declarações à União Europeia que omitiram menções à Mint Holdings foram “feitas em boa fé” e “com o melhor do seu conhecimento”, diz o advogado de Kroes. “A suposição foi que ela deixa de ser diretora quando deixa de precisar da empresa.”

A senhora Kroes irá informar o Presidente da Comissão Europeia deste lapso e assumir total responsabilidade por ele”, acrescenta o advogado de Kroes.

Badr-el-Din diz que a “Mint Holdings foi criada como veículo especial para gerir a aquisição de bens energéticos internacionais, principalmente da Enron. Esse acordo colapsou no final do verão de 2000.”

Se o acordo tivesse avançado, diz um advogado de Badr-el-Din, a empresa iria tornar-se “na principal empresa de gás do mundo, liderando a indústria para longe do carvão e do petróleo” e reduzindo a dependência europeia do monopólio energético russo.

O papel de Badr-el-Din na proposta de compra dos bens globais da Enron tinha sido previamente revelada pelo “The New York Times”, mas o envolvimento de Kroes no potencial acordo parece nunca ter sido noticiado.

Kroes continuou a ser listada como diretora da Mint Holdings até 2009 porque os “advogados envolvidos não seguiram todas as instruções para pôr fim à diretoria da senhora Kroes na Mint Holdings”, diz Badr-el-Din. “Estas supervisões clericais foram corrigidas assim que vieram à luz em 2009.”


A Suíça do Ocidente


As Bahamas são uma constelação de 700 ilhas, muitas delas com menos de dois quilómetros quadrados de tamanho. É uma de um punhado de micro nações a sul dos Estados Unidos que usam leis de confidencialidade e a sua relutância em partilhar informações com governos estrangeiros deu origem ao termo “cortina caribenha”.

Há quase um século que as Bahamas estão no radar de autoridades fiscais em todo o mundo. 

Nos anos 1930, o Departamento da Receita Federal dos EUA investigou americanos que fugiram a impostos na Suíça e nas Bahamas, país que em tempos se vendeu como “a Suíça do Ocidente”. O foco intensificou-se nos anos 1960 quando investigadores norte-americanos repararam num pequeno aumento do uso das Bahamas por chefes do crime organizado. Entretanto, os ativos de bancos dos EUA nas Bahamas foram multiplicados por oito entre 1973 e 1979. No final dos anos 1970, um estudo revelou que “o fluxo de dinheiro de evasão fiscal e origem criminosa” para as Bahamas correspondia a 20 mil milhões de dólares por ano.

A nação caribenha não era fácil de penetrar.

Para espreitar por trás da cortina, um projeto clandestino do Governo dos EUA intitulado “Operação Ventos de Comércio” recorreu a agentes de IRS que pagaram a um informador para entrar no quarto de um banqueiro das Bahamas que estava em visita a Miami e roubar-lhe a pasta enquanto, num restaurante próximo, outro informador do IRS mantinha o banqueiro abstraído com “entretenimento feminino”.

A pasta continha uma mina de ouro de informações de um banco das Bahamas com 308 detentores de contas norte-americanos, que alegadamente contabilizavam um total de 250 milhões de dólares.

Apesar de a operação ter conduzido a acusações criminais e a multas tributárias no valor de 100 milhões de dólares, foi suspensa em 1975 após o Congresso condenar o uso de informadores pelo IRS. Um tribunal dos EUA declararia mais tarde que a operação de busca daquela pasta era “flagrantemente ilegal”.

Em 2000, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), o principal fórum mundial sobre políticas tributárias, colocou as Bahamas na sua lista negra de países que ajudam à evasão fiscal. Depois da aprovação apressada de nove leis novas pelas Bahamas, a OCDE retirou o país da lista negra em 2001. Em 2009, contudo, a OCDE colocou as Bahamas na “lista cinzenta” da organização, uma categorização menos severa que ainda assim sinaliza uma não-conformidade com os padrões internacionais.

As Bahamas são uma parte fundamental das investigações dos EUA a evasão fiscal. Walter C. Anderson, um executivo do ramo das telecomunicações, de Washington D.C., que disfarçou a sua posse de empresas através de entidades-fachada nas Ilhas Virgens Britânicas e nas Bahamas, foi mandado para a prisão em 2007 por fugir aos impostos em mais de 200 milhões de dólares. Também em 2007, o bilionário incorporador de imóveis Igor Olenicoff declarou-se culpado de um crime fiscal federal relativo a contribuições tributárias enganosas e à transferência silenciosa de 196 milhões de dólares para as Bahamas. Olenicoff, que era diretor de duas empresas das Bahamas com contas bancárias nas ilhas, disse à Forbes no início deste ano que a sua “empresa de advogados de eleição fica nas Bahamas”.

Anos mais tarde, as Bahamas emergiram como fio condutor na investigação do Departamento de Justiça dos EUA à gigante bancária suíça UBS. Entre 2009 e 2014, a agência encetou processos criminais contra cidadãos e residentes dos EUA com negócios offshore nas Bahamas, incluindo um consultor da California, um executivo do setor do aço de Illinois, um executivo do ramo informático do Ohio, um consultor da indústria petrolífera do Texas, um empresário de hotelaria da Florida e um agricultor do Novo México.

Em muitos casos, os investigadores norte-americanos esforçaram-se para perceber por onde deviam começar. A legislação das Bahamas dita que os nomes dos diretores, que têm total poder sobre empresas offshore, sejam listados no registo nacional. Mas esses nomes nem sempre estão disponíveis online nem podem ser pesquisados individualmente ou sem conhecimento prévio do nome da empresa das Bahamas em questão. Isso torna difícil verificar se um funcionário público ou um executivo empresarial têm ligações a empresas fretadas nas Bahamas.

Nos novos documentos, por exemplo, a Exon Azerbaijan Caspian Sea Limited, detida pela gigante energética Exon no Azerbaijão, um país com um regime repressivo e cheio de riqueza do petróleo, não lista quaisquer diretores no registo das Bahamas. Contudo, existem 19 diretores citados nos documentos consultados pelo ICIJ. A Equatorial Guinea LNG Holdings Limited, outra empresa das Bahamas, não mostra quaisquer diretores no registo público mas, nos ficheiros analisados pelo ICIJ, constam como dirigentes seis cidadãos com poder de influência da Guiné Equatorial, entre eles o irmão da primeira-dama e quatro atuais ou ex-ministros da Energia.

Jason Sharman, que foi coautor de um inquérito informativo sobre 40 registos empresariais em todo o mundo, diz que os nomes dos diretores de empresas offshore são uma informação básica que deve ser de fácil acesso para o público.

Por estes dias, as Bahamas, cuja capital, Nassau, fica a uma hora de voo de Miami, garantem que estão mais limpas do que nunca. Mas as dúvidas persistem.

Em 2014, a mais recente revisão dos sistemas de combate à lavagem de dinheiro das Bahamas pela OCDE chumbou o país em metade das medidas-chave usadas para julgar o cumprimento dos padrões internacionais. Entre elas conta-se o facto de não ser exigido aos bancos ou instituições financeiras que revelem a verdadeira identidade do dono de uma empresa ou fundo. Apesar de a OCDE agora considerar as Bahamas cumpridoras, em junho de 2015 a União Europeia integrou esse e outros 30 países na lista de paraísos fiscais não-cooperativos.

Nicholas Shaxson, autor de “Treasure Islands: Tax Havens and the Men Who Stole the World”, diz que as Bahamas integram um punhado de paraísos fiscais que têm uma reputação mais arriscada e selvagem do que jurisdições offshore maiores como a Suíça. O país está “em pé de igualdade com o Panamá em termos da sua sede de dinheiro sujo e tolerância a esse dinheiro”, diz Shaxson.

Recentemente, refere Shaxson, à medida que os governos foram pressionando os paraísos fiscais para partilharem informações financeiras e do setor bancário com as agências tributárias nacionais preocupadas com a evasão offshore dos seus cidadãos, as Bahamas reagiram em força.

“Eles estão a dizer ‘apesar de toda a gente estar a ser transparente, os vossos segredos estão seguros connosco’”, diz Shaxson. “As Bahamas também assumem há muito uma atitude de não-cumprimento seletivo das suas próprias leis e agora estão a vender a mensagem com cotoveladas e piscares de olho.”

As autoridades das Bahamas dizem ao ICIJ que o país honra as suas obrigações internacionais e que coopera com as autoridades internacionais. As Bahamas “não toleram dinheiro sujo”, garantem as autoridades, notando que “em muitas áreas o país foi classificado como ‘cumpridor em larga medida’ dos padrões internacionais.”

As autoridades recusam-se a comentar casos específicos e defendem o registo empresarial. “As taxas para fazer buscas no registo online cobrem os custos e a melhoria do sistema online”, dizem as autoridades.

Quanto à partilha de informação sobre impostos, as autoridades dizem: “As Bahamas negoceiam em boa fé com todos os parceiros apropriados do Fórum Global para a transparência e troca de informações com fins tributários, sujeita aos padrões internacionais de segurança de dados e confidencialidade.”



Governantes, cleptocratas e iates


Empresas, fundos e contas bancárias das Bahamas têm surgido citadas em inúmeros casos envolvendo o confisco de dinheiro de ditadores e políticos. O filho do antigo ditador chileno Augusto Pinochet usou uma empresa das Bahamas, a Meritor Investments Limited, para movimentar 1,3 milhões de dólares para o pai. O filho de Pinochet, Marco Antonio, rejeita as alegações como “mentiras” e garante que não fez nada de errado através das Bahamas. O próprio Pinochet era detentor de outra empresa das Bahamas, a Ashburton Company Limited, criada em 1996. Abba Abacha, o filho do antigo Presidente da Nigéria Sani Abacha, viu 350 milhões de dólares serem congelados no Luxemburgo e nas Bahamas como parte de uma caça global aos três mil milhões de dólares que foram retirados da Nigéria durante os cinco anos de poderio do seu pai.

As empresas e contas bancárias nas Bahamas também têm desempenhado importantes papéis em esquemas fraudulentos envolvendo antigos políticos da Grécia, Ucrânia, Kuwait e Trinidad e Tobago, e em propinas ilegais pagas ao Governo iraquiano de Saddam Hussein sob o programa Petróleo-Por-Alimentos da ONU.

As Bahamas estão igualmente ligadas a negócios de cinco políticos e altos funcionários públicos revelados nos Panama Papers.

Entre eles inclui-se o sheikh Hamad bin Jassim bin Jaber al Thani, ex-primeiro-ministro e ministro dos Negócios Estrangeiros do Qatar até 2013, que era detentor da Trick One Limited, uma empresa com sede nas Bahamas. Em janeiro de 2005, enquanto ministro dos Negócios Estrangeiros, Al Thani assinou um acordo de empréstimo com um banco no valor de 53 milhões de dólares. Como garantia do empréstimo, Al Thani assinalou o Al Marqab, um iate premiado de 133 metros de comprimento avaliado em 300 milhões de dólares.

Um advogado de Al Thani recusou-se a comentar as informações.

O Presidente da Argentina, Mauricio Macri, o seu pai Francisco e o seu irmão Mariano, foram diretores da Fleg Trading Ltd, criada nas Bahamas em 1998 e dissolvida onze anos depois. Macri não listou as ligações à Fleg Trading nas suas declarações de rendimentos de 2007 e 2008, quando era autarca de Buenos Aires. No seguimento da divulgação dos Panama Papers, um procurador argentino tentou obter informações junto do Panamá e das Bahamas como parte da investigação às suspeitas de que Macri omitiu “maliciosamente” essas ligações à empresa.

O porta-voz de Macri disse ao ICIJ que o Presidente argentino não declarou a Fleg Trading Ltd. porque não tinha quaisquer interesses financeiros nem detinha ações da empresa.

Foi também nas Bahamas que houve circulação de documentos e encontros para a Blairmore Holdings Inc, um fundo de investimento dirigido por Ian Cameron, pai do ex-primeiro-ministro britânico David Cameron. Ian Cameron morreu a 8 de setembro de 2010. Após a divulgação dos Panama Papers, David Cameron foi forçado a admitir que beneficiou financeiramente desse fundo, criado para gerir dezenas de milhões de libras em nome de famílias endinheiradas. Através da estrutura offshore, incorporada no Panamá mas gerida nas Bahamas, o fundo escapou aos impostos no Reino Unido.

A Mossack Fonseca não respondeu ao pedido de comentário pelo ICIJ. Previamente a sociedade de advogados tinha dito ao ICIJ: “Como agente registada limitamo-nos a ajudar empresas incorporadas, e antes de aceitarmos trabalhar com um cliente de qualquer forma, conduzimos processos de diligência prévia, que em todo o caso cumprem e muitas vezes excedem as regras, regulações e padrões locais aos quais nós e outros estamos sujeitos.”



Satisfeitos com o statu quo



A Mossack Fonseca usou as regras de confidencialidade das Bahamas como ponto atrativo de venda e ecoou a própria defesa da indústria offshore pelo país face aos crescentes pedidos globais de maior transparência.
Em 2003, enquanto o país recuperava dos efeitos de ser incluído na lista negra de lavagem de dinheiro, um funcionário da Mossack Fonseca encontrou-se com um cliente para discutir a necessidade de “uma campanha de relações públicas agressiva para tentar alterar a má percepção que as pessoas têm das Bahamas no que toca à privacidade”. A informação não era “trocada muitas vezes nem extensivamente”, garantiram-se mutuamente, de acordo com notas internas dos Panama Papers.

Em 2009, um funcionário da Mossack Fonseca propôs transferir bens de um cliente dos EUA para um fundo nas Bahamas para garantir a sua confidencialidade durante a bancarrota. Em 2014, a Mossack Fonseca sugeriu a um cliente da Nova Zelândia que usasse uma conta bancária nas Bahamas para esconder que era detentor de uma empresa. Em 2015, uma cliente espanhola usou as Bahamas para guardar no banco meio milhão de dólares que não queria declarar no seu país. Outro espanhol usou os diretores postos à disposição pela Mossack Fonseca numa empresa para evitar que o seu nome constasse dos registos públicos.

Defensores de reformas fiscais têm criticado os paraísos fiscais, incluindo as Bahamas, por alardearem transparência ao mesmo tempo que assinam acordos de trocas com outros paraísos fiscais ou com pequenos países com menos probabilidades de obterem informação útil para governos pobres e famintos de impostos. Em 2010 as Bahamas assinaram um desses acordos com a Gronelândia, que tem uma população de 57 mil. Um funcionário da Mossack Fonseca e um cliente suíço “fizeram piadas” durante um encontro em 2014 sobre um acordo semelhante entre a Gronelândia e outro paraíso fiscal, a Suíça, de acordo com notas internas do encontro.

Hoje, em material publicitário, as Bahamas promovem uma “abordagem única” que se propõe a respeitar as regras internacionais mas ainda assim a proteger os seus clientes offshore. As Bahamas reasseguram potenciais investidores prometendo partilhar a informação tributária mais tarde do a maioria dos outros países e, mesmo aí, apenas com governos selecionados que cumprem as mais estritas e rigorosas exigências técnicas e de confidencialidade.

Em linha com essa abordagem, as Bahamas ainda não assinaram o tratado global que ajuda os países a partilharem informações sobre impostos. A OCDE, o organismo de governação responsável por esse tratado, classifica-o como “o mais poderoso instrumentos de combate à evasão fiscal offshore”. Em agosto, o número de participantes chegou aos 103, incluindo paraísos fiscais e alguns dos países mais pobres do mundo.

As Bahamas argumentam que o custo e carga administrativa de trocar automaticamente detalhes sobre impostos são demasiado altos e que a privacidade do cliente pode ficar em risco. As Bahamas alegam que, em vez disso, irão respeitar as regras internacionais através de acordos bilaterais ou de um-para-um.

“Tenho muitas dúvidas de que as jurisdições que procuram manter o bilateralismo neste assunto levem a sério a missão de cumprir os seus compromissos, até sob esses acordos bilaterais”, diz Reuven Avi-Yonah, professor de direito tributário da Universidade do Michigan e ex-consultor dos EUA e da OCDE.

A convenção multilateral “é o novo padrão global”, diz Avi-Yonah, “e as jurisdições que estão seriamente comprometidas com a troca de informação subscrevem-no. Preocupa-me que o dinheiro vá fluir para estas jurisdições bilaterais e que nenhuma informação seja avançada.”

As Bahamas, contudo, têm razões para estar felizes com o statu quo. Em 2016, antecipa ganhos de 17,7 milhões de dólares em impostos cobrados a empresas offshore.

Recentemente, quando representantes dos países se encontraram para formular o acordo de troca de informação tributária entre nações, os organizadores do encontro declararam que em breve as batotas fiscais “já não terão onde se esconder”. O ministro dos Serviços Financeiros das Bahamas afinou noutro tom quando falou com os jornalistas, concluindo: “Temos tudo o que queremos.”


Investigação adicional por Mar Cabra, Rigoberto Carvajal, Miguel Fiandor Gutiérrez, Juliette Garside, Gaby de Groot, Michael Hudson, Carlos Eduardo Huertas, Frederik Obermaier, Bastian Obermayer, David Pegg, Martijn Roessingh e Vanessa Wormer.

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