John Doe, o “garganta funda” dos Papéis do Panamá - TVI

John Doe, o “garganta funda” dos Papéis do Panamá

Email para o jornal alemão Süddeutsche Zeitung deu origem a uma investigação que envolve 11,5 milhões de ficheiros e mais de 214 mil empresas. Jornalistas dizem que nunca viram o rosto da fonte de informação e que, durante um ano, todas as conversas foram encriptadas

O jornal alemão Süddeutsche Zeitung, em Munique, deu origem a uma investigação que envolve mais de 214 mil empresas, no escândalo agora conhecido como Papéis do Panamá. Mas como é que os jornalistas Bastian Obermayer e Frederik Obermaier se viram de repente com 11,5 milhões de ficheiros que envolvem um total de 140 políticos de 50 países, com ligações a sociedades offshore em 21 paraísos fiscais? Tudo começou há um ano com um email de um certo “John Doe”. A história é contada pelos próprios jornalistas alemães, que revelam agora como é que os contactos foram feitos.

“Olá. Sou John Doe. Interessados em informação?”. Os jornalistas leram o email e responderam: “Sim, estamos muito interessados”. Foi com esta primeira troca de emails, há cerca de um ano, entre um anónimo que usou o nome de John Doe e o jornal alemão que terá começado a investigação que agora leva o nome de Papéis do Panamá.

 “Tenho uma série de condições. A minha vida corre perigo. Iremos falar apenas através de ficheiros encriptados. Não haverá nenhum encontro, nunca. A escolha das histórias fica obviamente ao vosso critério”, avisou a fonte anónima num dos primeiros emails.

Os jornalistas quiseram saber: “Por que está a fazer isto?”. John Doe esclareceu: “Quero tornar estes crimes públicos.”

Faltava saber que dados iriam receber. “De quanta informação estamos a falar?”. "Mais do que alguma vez viram”, disse aos jornalistas.

Em nenhum momento, de acordo com a informação publicada pelo Süddeutsche Zeitung, o interlocutor dos dois jornalistas pediu para ser pago. Foi assim que começou o escândalo agora conhecido como Papéis do Panamá.

Volume colossal de informação

Durante meses, os jornalistas do Süddeutsche Zeitung em Munique receberam um volume de informação gigantesco: 11,5 milhões de documentos, num total de 2,6 terabytes, que revelavam as empresas, personalidades e esquemas utilizados para esconder dinheiro e património em paraísos fiscais. A lista, que se começou a revelar no domingo, 3 de Abril, inclui chefes de Estado, políticos, atletas, atores, empresários e uma série de personalidades influentes e poderosas.

"[Informação] suficiente para encher 700 000 Bíblias", indica o Süddeutsche Zeitung.

É muito mais informação do que a configurada nos escândalos WikiLeaks, OffshoreLeaks, LuxLeaks e SwissLeaks todos juntos. Os Papéis do Panamá batem o recorde em volume de dados, sendo a maior fuga de informação sobre offshores de que há registo: envolve mais de 214 mil empresas.

Os ficheiros incluem emails, fotografias, powerpoints e partes da base de dados da Mossack Fonseca, a sociedade de advogados panamiana que está na origem da informação aparentemente mais relevante, num período entre a década de 1970 e a primavera de 2016.

"Diante dessa enxurrada de informações, é evidente que não podíamos lidar com as coisas sozinhos", explicam Bastian Obermayer e Frederik Obermaier.

O jornal alemão decidiu então investigar a informação que lhe foi chegando em colaboração com o Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (ICIJ), que já coordenara projetos relacionados com os casos OffshoreLeaks, LuxLeaks e  SwissLeaks. E para tal, em junho de 2015, teve lugar uma reunião na sede do consórcio em Washington, nos EUA.

A informação foi distribuída entre os órgãos de comunicação social membros do consórcio, por país ou por tema: o círculo dos próximos de Putin, a Islândia, a Arábia Saudita, as máfias japonesa, italiana ou russa, os barões da droga, os círculos de pedófilos, os desportistas…

“A Mossack Fonseca, uma pequena sociedade de advogados do Panamá de que quase ninguém ouvira falar, apareceu no centro da nossa investigação”, contam os jornalistas do Süddeutsche Zeitung. Mas era “essa pequena firma que guardava informação de algumas das mais poderosas e perigosas pessoas do mundo”, incluindo ditadores, membros da mafia siciliana, da japonesa Yakuza ou traficantes de droga e armas.

“Os arquivos de Mossack Fonseca estão organizados da seguinte forma: uma pasta de trabalho para cada empresa de fachada", explicam os dois jornalistas alemães.

"Procedemos a uma verificação cruzada da informação com base no que estávamos a investigar. O nome de Putin não aparece diretamente… Então procurámos a partir dos nomes dos parentes: a filha mais velha, Maria, a segunda filha Katerina, ou o violoncelista Roldouguine ...”.

O nome daquele famoso músico está ligado, de acordo com os documentos, a pagamentos equivalentes a várias centenas de milhões de dólares.

"O suficiente para despertar as nossas suspeitas", dizem Frederik Obermaier e Bastian Obermayer.

Uma história por dia

Durante meses, os repórteres do jornal alemão trocaram informações, sem nunca terem visto a cara da sua fonte. Todas as conversas eram encriptadas e os dados recebidos eram depois cruzados com outras informações para serem confirmados, conforme explicam os jornalistas.

O Süddeutsche Zeitung decidiu então marcar uma segunda reunião do Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação, desta vez em Munique, na sede do jornal.

Com cerca de 4,4 milhões de leitores, o Süddeutsche Zeitung, juntamente com outros meios de comunicação em mais de 80 países, incluindo Portugal, marcou o dia 3 de Abril para iniciar a divulgação dos Papéis do Panamá e das empresas e figuras envolvidas. Revelações que ainda só estão a começar. Sendo que foi definido que se publicaria uma história por dia durante quinze dias.

O caso Papéis do Panamá é um dos esforços de investigação jornalística mais alargados, dado que, nos últimos 12 meses, envolveu cerca de 400 jornalistas de mais de 100 órgãos de comunicação social em mais de 80 países (incluindo Portugal, através do Expresso e da TVI). No Reino Unido contaram com a colaboração do The Guardian e da BBC, do Le Monde em França, do La Nación na Argentina, entre muitos outros. Na Alemanha, os dois canais públicos de televisão, NDR and WDR, também reforçaram a investigação.

 

Continue a ler esta notícia

EM DESTAQUE