Cemitério no Brasil é “casa” de mais de 50 sem-abrigo - TVI

Cemitério no Brasil é “casa” de mais de 50 sem-abrigo

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  • 6 mar 2018, 13:28
Cemitério (Arquivo)

Sepulturas do cemitério da Vila Nova Cachoeirinha, em São Paulo, chegam a servir de “cama”. Há abutres, animais mortos, dejetos e restos de comida em toda a área equivalente a 50 campos de futebol

Cerca de 50 pessoas sem-abrigo vivem no cemitério da Vila Nova Cachoeirinha, na Zona Norte de São Paulo, no Brasil. O segundo maior cemitério da cidade, com 21 mil sepulturas e gavetas, parte delas encobertas por um matagal que atinge a altura da cintura de um adulto, é a moradia de homens, mulheres, uma das quais com deficiência física, toxicodependentes e travestis. Novos e velhos, há lugar para todos, exceto para crianças, devido ao ambiente insalubre e ao constante uso de drogas, afirmam os moradores.

Abutres que disputam os restos de animais mortos, pragas de ratos e de baratas, dejetos e restos de comida são uma constante em toda a área equivalente a 50 campos de futebol onde os sem-abrigo ergueram barracas, conforme constata uma reportagem da BBC Brasil.

Um repórter que visitou o local conta que quem anda pela avenida central do cemitério, administrado pela Câmara de São Paulo, “tem o desafio de controlar os enjoos provocados pelo cheiro de animais em decomposição”.

Ao longo dos 350 mil metros quadrados do cemitério, o ar de abandono salta à vista. O mesmo repórter conta que, no local, foi erguida “uma espécie de vila precária”. Há barracas erguidas dentro do cemitério mobiladas com sofá, cadeiras, varal para estender a roupa. Mas há também simples lonas apoiadas em bambus e pedaços de madeira.

Um espaço entre os ossários foi convertido pelos moradores em casa de banho. Junto aos dejetos humanos, há restos de comida, roupas e entulho. A presença de pragas, como ratos e baratas, é uma constante. À noite, os insetos multiplicam-se, mas as maiores dificuldades surgem no período de chuvas. Durante o verão, as enxurradas molham os sofás velhos que os sem-abrigo usam para dormir à reportagem da BBC Brasil, admitem que, para se proteger, arrastam grandes pedras de mármore que cobrem as sepulturas e dormem nas gavetas, ao lado dos caixões.

"O que mais me deixa triste é não poder abrir o frigorífico”

Igor (nome fictício atribuído pela BBC para proteger a identidade do entrevistado), 41 anos, 12 dos quais passados no cemitério, é um dos moradores mais antigos no local. Sentado num banco, abre uma lata, tira de lá um tubo de papel alumínio e um saco plástico, e cuidadosamente monta um cachimbo em que fuma duas pedras de crack (cocaína solidificada em cristais) enquanto conta a própria história à BBC Brasil, a poucos metros de algumas covas abertas.

"A primeira vez que fumei crack foi no fim de 1993. Mesmo fumando com frequência, trabalhei como operador de empilhadora, comunicação visual em várias empresas, além de tradutor e intérprete de japonês no bairro da Liberdade", afirma.

Igor aprendeu japonês quando em 1995 foi morar para o Japão, a terra natal da avó paterna, mas a experiência não correu bem.

"Fui preso por tráfico de drogas, vandalismo, atropelamento e corrupção de menores. Fui deportado para o Brasil em dezembro de 1997. A minha família não quer mais saber de mim. Hoje, só nos vemos em velórios, casamentos e festas".

Igor tentou recomeçar a vida no Brasil, mas o vício das drogas foi mais forte. Retira do lixo doméstico parte das roupas que veste e alimentação, como bolos e alimentos deitados fora em pacotes fechados. “Bens” que partilha com os demais moradores. Sem televisão, Igor também se informa através dos jornais que recolhe dos sacos de lixo. Parece adaptado ao ambiente, apesar da falta de conforto.

"O que mais me deixa triste é não poder abrir um frigorífico e ter o prazer de tomar uma Coca-Cola bem gelada ou comer uma fruta", revela.

“A autarquia nunca apareceu para nos tentar ajudar”

Muito dos sem-abrigo ali vivem sentem-se abandonados pelo município e queixam-se da violência policial.

"A autarquia nunca apareceu para nos tentar ajudar, só vem para deitar abaixo as nossas barracas. A Pastoral (do Povo de Rua) visita-nos uma vez por ano para saber se estamos vivos e só a Polícia Militar aparece sempre para ‘nos dar um salve’", diz à BBC Brasil um homem que pediu para não ser identificado e que usou uma gíria para se referir aos espancamentos dos agentes policiais.

"Já fui espancado e torturado aqui de joelhos durante horas por polícias. Eles chamam-nos viciados malditos, perguntam onde estão os cachimbos e derrubam as barracas. O que querem que façamos? Vamos para onde?", questiona.

A BBC Brasil contactou a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo e a Polícia Militar, que recusaram comentar o caso.

Já a Câmara de São Paulo reconhece que "é recorrente a montagem por dependentes químicos de tendas dentro e fora do Cemitério Vila Nova Cachoeirinha para o consumo de drogas". A autarquia diz que as barracas são "retiradas pelos funcionários, mas logo surgem outras no local". Informa ainda que, "sempre que necessário, toma providências" em relação aos animais mortos e que há uma empresa responsável pela limpeza da área.

O município não informou quanto gasta na manutenção do local, quantas pessoas trabalham ali nem desde quando o cemitério está ocupado, mas a reportagem da BBC Brasil sabe da presença dos sem-abrigo no local há pelo menos quatro anos.

Um funcionário que trabalha há mais de 20 anos no cemitério revela à BBC Brasil que há uma relação de respeito entre os sem-abrigo, os funcionários do cemitério e os poucos visitantes do local.

"As pessoas têm muito medo de chegar perto deles. Mas eles ficam lá em baixo, não se metem com ninguém", afirma.

Funcionários que pediram para não ser identificados dizem que não conseguem dar conta de limpar nem sequer metade do cemitério.

“Quando acabamos de um lado, o outro já está com mato alto e todo sujo", refere um dos funcionários.

 

 

 

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