Papéis do Panamá: como é que os super-ricos escondem milhões quando se divorciam - TVI

Papéis do Panamá: como é que os super-ricos escondem milhões quando se divorciam

  • Redação
  • Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação
  • 5 abr 2016, 18:28
Casamento (arquivo)

A Mossack Fonseca não lida com legislação matrimonial, mas desempenha um papel fulcral quando os super-ricos de todo o mundo decidem separar-se.

Christopher Williams tinha estado à espera durante 90 minutos no escritório de uma companhia de helicópteros na ilha de Kauai, no Hawai, dando cuidadosas espreitadelas à área de estacionamento, lá em baixo.

Na mão tinha documentos judiciais, prontos a ser apresentados a um milionário russo envolvido num divórcio que custaria muitos milhões. Tinha uma pequena câmara de vídeo, para registar o momento.

De repente, Williams viu que era a sua oportunidade. Descruzou as pernas e expirou. Abriu a porta, precipitou-se pelo pequeno lanço de escadas abaixo e atravessou o asfalto até uma coluna de SUV brancos. Dentro de um deles estava Dmitri Rybolovlev, um magnata do sector da indústria mineira cuja mulher, Elena, argumentava que ele estava a esconder dinheiro que ela exigia no processo de divórcio.

 

Dmitry Rybolovlev

“Para Dmitri”, disse Williams enquanto, através da janela do condutor, colocava os documentos no colo de um dos motoristas do milionário. Trocou um olhar com Rybolovlev, enquanto o motorista carregou no acelerador e se afastou. “Entregue!”, desabafou William, recuperando o fôlego.

A perseguição de William foi apenas um dos episódios numa caça global a bens no âmbito de um dos mais duros divórcios. E ilustra os esforços que as mulheres, os seus advogados e investigadores privados têm que desenvolver na busca de dinheiro e bens colocados em ofshores através de complexas redes de empresas e fundos.

Os pormenores da guerra que foi o divórcio de Dmitri Rybolovlev e muitos outros estão nos ficheiros secretos obtidos pelo Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação e pelo jornal alemão Suddeutsche Zeitung e os seus parceiros, entre os quais a TVI e o Expresso. Os mais de 11 milhões de documentos, datando de 1977 a dezembro de 2015, mostram os bastidores o funcionamento da Mossack Fonseca, uma empresa global de advogados baseada no Panamá que ajudou os seus clientes a criarem “abrigos” financeiros offshore. Os ficheiros revelam factos e números que mostram um universo alternativo no qual se movimentam algumas pessoas que jogam com regras diferentes – e uma empresa que permite tais comportamentos.

Fraude em família?

“Um marido desonesto é tão trapaceiro como Bernard Madoff” (investidor norte-americano da bolsa que protagonizou a maior fraude financeira da história dos EUA, tendo sido preso em 2008), disse ao consórcio de  jornalistas Martin Kenney, um especialista em recuperação de fortunas das Ilhas Virgens Britânicas que trabalhou para mulheres da Rússia, Reino Unido, Suiça e Estados Unidos. “Estas empresas e fundações offshore… são instrumentos num jogo das escondidas”


Além da casa de 77 milhões em Londres, havia outros tesouros maiores, noutras paragens. Nas Ilhas Virgens Britânicas, uma empresa de fachada era usada para adquirir e guardar obras de arte cujo valor ascendia a 570 milhões de euros

 

Elena Rybolovleva

No âmago da batalha judicial de Elena Rybolovleva estava a alegação de que o seu marido – que aparece na mais recente lista da “Forbes” como o 14º russo mais rico – recorreu a paraísos fiscais para esconder dinheiro e propriedades.

Os documentos que Williams entregou naquele dia eram sobre um apartamento de 88 milhões de dólares (77 milhões de euros) de Rybolovlev em Nova Iorque, uma aquisição que Elena defendia que violava uma ordem judicial de um tribunal suíço congelando os bens do magnata.

Mas havia tesouros maiores em causa noutras paragens. Nas Ilhas Virgens Britânicas, uma empresa-fachada era usada para comprar e guardar obras de arte cujo valor ascendia a 650 milhões de dólares (570 milhões de euros) com a ajuda da Mossack Fonseca.

Da Tailândia ao Equador, do Luxemburgo à Holanda

Durante décadas, cônjuges – quase sempre os maridos e pertencendo ao grupo de um por cento dos mais ricos do mundo – pediram à Mossack Fonseca que os ajudasse a dissimular bens, segundo os ficheiros. E a empresa aceitou sem grandes hesitações.

Na Tailândia, a empresa aceitou ajudar um homem que tinha pedido num e-mail uma solução que lhe permitisse escapar no caso da mulher lhe tentar retirar bens. No Equador, funcionários da Mossack Fonseca propuseram empresas de fachada a um cliente que precisava de “adquirir uma empresa panamiana para transferir bens antes de se divorciar”. Do Luxemburgo, funcionários brincaram enviando emoticons quando concordaram em ajudar um holandês que queria “proteger” bens “dos resultados desagradáveis de um divórcio (que estava no horizonte!)”.

Um Procurador trabalhou num caso de divórcio tão complexo que teve de fazer num caderno um emaranhado diagrama das contas bancárias e empresas do homem que estava a divorciar-se. “Parecia que alguém tinha despejado esparguete para cima de uma folha de papel”.

Os fornecedores de serviços offshore que colocam os bens de um marido fora do alcance da mulher podem ser processados, dizem especialistas. “Quanto mais próximo de um divórcio essas pessoas tomarem decisões deste tipo, mais probabilidades há de esses bens serem posteriormente colocados à parte por serem considerados fraude marital”, diz Aanford K. Ain, um Procurador de Washington que trabalhou num caso de divórcio tão complexo que teve de fazer num caderno que tinha em cima da sua secretária um intrincado diagrama das contas bancárias, empresas e fundos do homem que estava a divorciar-se. “Parecia que alguém tinha despejado esparguete para cima de uma folha de papel”, disse, lembrando que descobrir o rasto de tudo custou 2 a 3 milhões de dólares (1.700 a 2.600 milhões de euros).

 

Michelle Young

Michelle Young, que protagonizou uma muito publicitada batalha judicial por divórcio, fundou em 2014 uma organização para ajudar ex-esposas defraudadas a navegar no caro sistema judicial britânico. “É um desporto sangrento”, disse. “A não ser que se tenha dinheiro suficiente, está-se morta e enterrada”.

Young passou sete anos e gastou milhões de dólares a descobrir o rasto de bens ligados ao ex-marido, o gestor de empresas Scot Young, que usou a Mossack Fonseca e outros fornecedores de serviços offshore para gerir um intrincado impperio financeiro que incluía empresas e bancos na Rússia, nas Ilahs Virgens Britânicas e no Mónaco.

“Há tantos bens e propriedades que é como uma Enron bebé”, diz Michelle Young (numa referência à empresa norte-americana Enron Corporation, que tinha os mais variados sectores de atividade e protagonizou uma das mais estrepitosas falências nos Estados Unidos, em 2001, sendo apontada como um dos maiores exemplos de fraude contabilística sistemática e institucionalizada).

Em 2013, Michelle Young ganhou 32 milhões de dólares (28 milhões de euros) num acórdão de divórcio. Pouco tempo depois de Scot Young ver rejeitado um recurso contra o acórdão, foi encontrado espetado no gradeamento depois de ter caído do quarto andar do seu apartamento em Londres. A namorada dele disse que ele lhe tinha dito que ia atirar-se, mas as autoridades indicaram que não podiam garantir se ele se tinha suicidado ou se tinha caído.

Nós não nos envolvemos na gestão das empresas dos nossos clientes”, diz a Mossack Fonseca numa declaração. “Além dos pagamentos pelos nossos serviços, não guardamos o dinheiro dos nossos clientes nem temos nada a ver com qualquer aspeto financeiro direto relacionado com a gestão dos seus negócios. Lamentamos qualquer uso indevido que empresas tenham feito dos serviços que fornecemos, e sempre que possível tomaremos medidas para descobrir e fazer cessar tal utilização”.

 

Amor perdido


Dmitri Rybolovlev casou-se com Elena, uma colega estudante pela qual se apaixonara em 1987 numa universidade dos Urais. Nos 20 anos seguintes, o casal teve dois filhos, foi viver para a Suiça e fez fortuna. Dmitri tornou-se conhecido como o “rei dos fertilizantes” russo. Como diriam mais tarde advogados, o casal era “fabulosamente rico”.

Decidir que bens deveriam entrar na partilha não era assim tão simples. Tal como a fortuna de Rybolovlev tinha aumentado, também o tinha a complexa rede das suas empresas offshore

Em dezembro de 2008, Elena Rybolovleva pediu o divórcio, justificando-o com “um período prolongado de relações maritais tensas”. De acordo com a lei suíça, cada um dos cônjuges tem direito a uma parte igual da partilha dos bens do casal.

Decidir que bens deveriam entrar nas partilhas não era assim tão simples. Tal como a fortuna de Rybolovlev tinha aumentado, também o tinha a complexa rede de empresas offshore.

Por exemplo, em 2002 a Mossack Fonseca incorporou a Xitrans Finance Ltd nas Ilhas Virgens Britânicas. A empresa offshore, que era constituída apenas por uma caixa postal na soalheira cidade de Tortola, era um míni museu do Louvre quando Elena foi atrás dos bens que lá havia: a Xitrans tinha telas de Picasso, Modigliani, Van Gogh, Monet, Degas, Rothko.

Também tinha comprado secretárias, mesas e estiradores estilo Louis XVI feitas por alguns dos maiores fabricantes de mobiliário parisienses.

Segundo notas de uma audiência enviadas por e-mail para a Mossack Fonsec, em janeiro de 2009 e que fazem parte dos documentos revistos pelo consórcio de jornalistas, quando o casamento se desfez Dmitri usou a Xitrans Finance Ltd para transferir estes bens de luxo da Suiça para Singapura e Londres, para os colocar fora do alcance de Elena. Enquanto a Xitrans era detida pelo fundo da família Rybolovlev, segundo os registos da mossack Fonseca, apenas Dmitri Rybolovlev tinha ações na empresa, apesar de Elena alegar que a Xitrans adquirira bens “a pedido dela própria e do marido”.

Em 2014, depois de vários anos de guerra judicial, um tribunal suíço atribuiu-lhe 4.500 milhões de dólares (3.900 milhões de euros). Foi noticiado que um tribunal de recurso reduziu posteriormente este número para 600 milhões de dólares (520 milhões de euros) depois de ter recalculado a fortuna, em dinheiro, escondida nos fundos de Dmitri em Chipre. Tanto ele como Elena recusaram-se a comentar.

Elas cometem erros iguais


As mulheres não estão imunes à tentação de usar paraísos offshore. Em 2004, funcionários do Mossack Fonseca encontraram-se com Marcela Dworzak, mulher do general reformado Antonio Ibárcena Amico, antigo chefe de Estado Maior da Armada peruana e amigo do ex-Presidente Alberto Fujimori.

Pouco tempo depois do fim do regime Fujimori, em 2000, o marido de Marcela fora acusado de corrupção e enriquecimento ilícito, pelo seu papel no negócio de armamento.

Os ficheiros mostram que funcionários da Mossack Fonseca ficaram preocupados com notícias saídas na imprensa dizendo que o marido de Marcela Dworzak tinha usado uma empresa offshore para lavar dinheiro através de compra de propriedades e da conta bancária dela. O nome da empresa offshore saída na imprensa era semelhante ao de uma das duas empresas de Marcela registadas através da Mossack Fonseca, a Alverson Financial S.A. A Mossack Fonseca suspeitou que os jornalistas pronunciaram mal o nome da empresa e que ela era uma das suas.

Marcela foi ao Panamá esclarecer que as suas empresas offshore eram usadas apenas para ela esconder bens dos olhares do marido

Para esclarecer esta questão, Marcela visitou a sede da Mossack Fonseca, no Panamá. Com advogados ao lado, garantiu aos funcionários que a Alverson Financial S.A. era, na realidade, uma empresa sua e que tudo tinha sido feito “de um modo limpo, transparente e legal”. As suas empresas eram usadas apenas para ela esconder bens fora do alcance do marido.

“Ela estava separada há anos do marido, um funcionário do Governo Fujimori, e as empresas destinavam-se a proteger de um possível divórcio os bens que ela tinha herdado da família”, disseram funcionários da Mossack Fonseca numa nota interna da empresa. Os advogados de Marcela confirmaram que ela “não queria que ele soubesse dos bens que ela tinha”, segundo notas de um encontro de funcionários da Mossack Fonseca. Depois de alguma discussão, a Mossack Fonseca aceitou as explicações de Marcela e ela continuou a ser cliente da empresa.

Anos depois, as autoridades peruanas investigaram Marcela Dworzak por lavagem de dinheiro. Marcela vive atualmente no Chile, não tendo regressado ao Peru para responder a acusações de que utilizou uma conta bancária panamiana para esconder dinheiro do contrato de armamento pelo qual o marido era acusado. A família Ibarcena-Dworzak desmente qualquer ilegalidade e diz que as acusações peruanas têm motivações políticas. Marcela não quis fazer qualquer comentário.

“Edifício podre”


Tal como os Rybolovlev, também o divórcio entre Nichola Joy e Clive Joy-Morancho foi caro e muito publicitado. O casal separou-se em dezembro de 2011, após mais de cinco anos de casamento e três filhos. Desde então, Nichola Joy tem reclamado bens no valor de 40 milhões de dólares (35 milhões de euros) que defende serem seus. Em causa estão pelo menos duas casas em Londres, um avião charter, um palacete com seis quartos em França, uma moradia nas Caraíbas e um pedaço de terra numa aldeia suíça de esqui.

Joy-Morancho, um magnata da aviação nascido no Zimbabué, insiste que a fortuna está bloqueada offshore e não a pode usar. Argumenta que irá à falência se for forçado a aceitar as exigências da mulher.

Nichola Joy-Morancho conseguiu a atribuição de 180 mil dólares (157 mil euros) por ano até a justiça tomar uma decisão final sobre a divisão de bens

No fim de 2014 , um juiz britânico decidiu o que fazer com uma parte dos bens disputados pelo casal, que incluíam carros antigos no valor de milhões. Dos 35 automóveis da coleção – que incluía um Bentley, um Ferrari e dois McLaren -, Joy-Morancho achou o Alfa-Romeu de Clive particularmentre “bonito”, disse ele em tribunal.

O juiz, Sir Peter Singer, recusou o pedido de Nichola em relação aos carros. Mesmo assim, ela descreveu a coleção como sua, argumentando que, aos olhos da Justiça, os donos dos automóveis não eram quem os conduzia, mas o fundo a que pertenciam, através de uma empresa offshore. Nichola conseguiu 180 mil dólares (157 mil euros) por ano até ser tomada uma decisão final sobre a divisão de bens.

O juiz criticou ambas as partes, mas guardou as palavras mais duras para Clive Joy-Morancho e para os seus amigos e sócios. “A sua posição é uma charada elaborada, cuja direção de atores foi feita de modo impiedoso e sem olhar a custos”, escreveu o juiz, chamando ao caso do ex-marido “um edifício podre baseado na ocultação e no embuste, sendo portanto uma vergonha, uma charada, uma falsidade, espúria e inventada”.

Os ficheiros mostram que a Mossack Fonseca foi parte do edifício offshore de Joy-Morancho durante anos. A empresa tem centenas de e-mails e ficheiros de Joy-Morancho e de homens de negócios e acordos ligados a ele datando até 1997. A empresa ganhou milhares de dólares em papeladas em nome de algumas das empresas e de diretores usados no Reino Unido para contestar as reclamações da ex-mulher.

Em Maio de 2013, os advogados de Nichola enviaram à Mossack Fonseca uma ordem judicial para congelar os bens de Clive até o tribunal dividir os pertences do casal. Como representante nas Ilhas Virgens Britânicas da Glengarriff Property Holdings Limited, uma empresa proprietária de duas casas disputadas em Londres, a Mossack Fonseca ficou proibida de fazer fosse o que fosse passível de prejudicar os direitos de Nichola.

“As consequências de quebrar uma ordem judicial são graves, pelo que nós, como Agente Registado, temos de agir responsavelmente”, disse aos colegas Daphne Durand, supervisora para questões judiciais do escritório da Mossack Fonseca nas Ilhas Virgens Britânicas.

Seja como for, isso pode não ter tido importância; a justiça decidiu que Joy-Morancho transferiu oficialmente a propriedade das casas de Londres para um fundo offshore antes de se ter casado com Nichola, que portanto não as podia reclamar como fazendo parte do património do casal.

Eu fui ingénua sobre o significado do que é um fundo quando me casei com ele”, disse Nichola Joy ao consórcio de jornalistas, por email. “O problema é que o custo por combater esta injustiça inibe-me, e o meu ex sabe disso”, escreve. “A lei tem que mudar, estes fundos offshore brincam com a Justiça”. Quanto a Clive Joy-Morancho, não quis responder.

Um juiz pode decidir posteriormente o que sobra do pedido de 40 milhões de Nichola. Mas com empresas e fundos offshore no caminho, Nichola enfrenta um problema que é familiar a muitas ex-esposas que andam na peugada de bens por todo o mundo.

Por trás disto tudo, nota o juiz Justice Singer, estão ex-maridos com “vontade de as subjugar financeiramente”. Ex-maridos que têm um “pavor”, segundo o juiz: “pagar seja o que for que possa ser evitado”, seja ao fisco seja à ex-mulher.
 

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