Washington, temos um problema - TVI

Washington, temos um problema

  • Germano Almeida*
  • 17 mai 2017, 22:07
Donald Trump na Sala Oval da Casa Branca

Nenhum sistema aguenta viver em convulsão durante um longo período de tempo. Que o Presidente dos EUA seja um agitador que provoca perturbação permanente é quase uma aberração. O “impeachment” pode ser complicado, mas quatro meses bastaram para que o afastamento de Donald Trump da Casa Branca seja uma hipótese real

"É suposto que os EUA sejam o adulto na sala e não o miúdo mal comportado à mesa, ou aquele tio louco que se fecha no sótão e não sabemos bem o que vai magicar. Vemos o Presidente dos EUA dizer uma coisa sobre um tema tão importante como a Síria e, no mesmo dia, outros membros da sua administração dizerem coisas opostas sobre o mesma tema. Isto é muito perturbador".

SUSAN RICE, Conselheira de Segurança Nacional e Embaixadora dos EUA nas Nações Unidas nas duas Administrações Obama

 

“Nenhum político na história moderna foi tão mal tratado como eu tenho sido nos últimos tempos”

DONALD TRUMP, Presidente dos EUA

 

Há um problema, sério, a perturbar o complexo sistema de poderes e contrapoderes que marca o mapa político norte-americano.

Os Estados Unidos têm, faz este sábado, 20 de maio, quatro meses, um agitador compulsivo como Presidente.

Ora, isso não só não é normal, como não estava previsto no modo como os Pais Fundadores desenharam aquela tão singular arquitetura de poderes.

É mesmo caso para dizer: Washington, temos um problema.

Não é uma questão de ideologia ou, sequer, de estilo pessoal -- é quase uma questão de bom senso: Donald Trump não tem comportamento de Presidente.

O pivot de um sistema daquela dimensão e importância não pode estar sempre a agitar e a provocar. Nenhum sistema aguenta tanto tempo em convulsão.

Donald Trump não tem condições nem dimensão política para se assumir como um presidente republicano "normal".

E isso gera consequências: a suposta junção partidária de Casa Branca e das duas câmaras no Congresso não é real. Trump tem tido uma capacidade de concretização legislativa baixíssima e isso está a fazer aumentar anticorpos do lado republicano junto desta administração.

Na Reforma da Saúde, as resistências têm sido mais do que a sintonia; na Reforma Financeira, o plano brutal de cortes fiscais aos mais ricos e às grandes empresas que Trump defende só encontra respaldo nas lideranças republicanas do Congresso em partes da proposta, mas ainda não o suficiente para a tornar lei; e no plano de construção de infraestruturas, próximo grande bloco legislativo que a Casa Branca se prepara para apresentar ao Senado, as divergências ideológicas são notórias.

No caso da Saúde, e apesar de conseguir passar à tangente, na câmara baixa, proposta de revogação do ObamaCare, o caminho para uma nova lei, com visão republicana, ainda é muito complicado. Na House só passou por quatro votos (217-213), no Senado vai precisar de 51. Com 52 senadores republicanos, isso quer dizer que só pode falhar um. E, pelo menos para já, há dúvidas e reservas em relação à proposta aprovada em vários senadores do GOP.

Há sete casos que dificilmente Trump resolverá: os senadores republicanos Lamar Alexander (Tennessee), Susan Collins (Maine), Rob Portman (Ohio), Lisa Murkowski (Alaska), Ted Cruz (Texas), Dean Heller (Nevada) e Rand Paul (Kentucky) já levantaram em público questões que devem impedir um "sim" à aprovação na câmara alta da versão aprovada na Câmara dos Representantes. Nancy Pelosi, líder da minoria democrata na Câmara dos Representantes, deixou o aviso: "Esta proposta tem muitas falhas e não está em condições de passar no Senado. Vamos fazer tudo para que isto não passe". Retirar, de uma penada, o acesso à saúde a vários milhões de americanos tem consequências políticas claras para vários congressistas que precisam de buscar a reeleição nas midterms do próximo ano.

Sensação de letargia

A sensação em Washington é de letargia: quase nada se consegue fazer, quase tudo parece estar a ser posto em causa.

Em vez de dar garantias e dissipar receios, o comportamento de Trump vai agravando a ideia de que esta administração pode mesmo acabar mal.

Sondagem do Public Policy Polling -- feita já depois do despedimento do diretor do FBI e das revelações permitidas pela "desclassificação" legal de documentos libertados sobre a Rússia, mas ainda antes de se saberem os pormenores do “Comey memo” -- refere que 48% dos americanos defende um 'impeachment" de Donald Trump.

Um número destes, quando este Presidente tem apenas quatro meses em funções, é fatal.

Se se confirmar, pela investigação independente, que Trump colocou mesmo os interesses dos EUA atrás dos da Rússia em nome de interesses individuais durante a campanha presidencial de 2016, a figura de "traição à pátria", motivo de afastamento de um Presidente, pode mesmo ser usada.

Al Green, membro da Câmara dos Representantes, democrata do Texas, deu o primeiro passo, durante a tarde de quarta-feira, ao tornar-se o primeiro congressista a exigir oficialmente o "impeachment" do Presidente Trump. «É esta a minha posição e vou mantê-la: o Presidente tem que ser alvo de impeachment. O povo americano não participa na democracia apenas no dia da eleição. Falo diretamente ao povo americano. É tempo de nos dizerem qual é a vossa posição sobre isto. É tempo de nos fazerem saber o que pensam e o que querem».

Território de “impeachment”

Na véspera, David Gergen (que foi conselheiro de quatro presidentes, três republicanos e um democrata), comentou na CNN: «Já entrámos em território de 'impeachment'."

Não se pense, porém, que a insistência na ideia de “impeachment” torna um cenário de afastamento de Trump provável. O caminho é muito longo e ainda improvável.

Até hoje, só três presidentes americanos foram alvos de “impeachment”: Andrew Johnson, Richard Nixon e Bill Clinton. E só um, Nixon, teve como destino a saída da Casa Branca (tendo-se demitido na véspera de vir a ser afastado).

O Presidente dos EUA goza de muitos poderes. E o “impeachment” é, em última instância, sempre um processo político – mesmo que parta de bases judiciais.

Mesmo com as divergências acima notadas entre o Presidente na Casa Branca e os republicanos a controlarem as duas câmaras do Congresso, a verdade é que tem que haver um contexto político diferente do atual.

São precisos dois terços de votos no Senado para se afastar um Presidente, depois de passar o impeachment na Câmara dos Representantes.

Realisticamente, só depois das intercalares de novembro de 2018, e num cenário de forte vitória democrata nas duas câmaras, isso se afigura como plausível.

Provas de resistência

Mas o “impeachment” é a bomba atómica.

As provas de resistência do sistema americano perante um Presidente de características demagógicas e autoritárias, têm sido dadas aos mais diversos níveis.

Nem de propósito: Hillary Clinton até montou, há dias, um “comité de resistência ao Presidente Trump”.

Donald Trump pensou que despedir James Comey o faria ganhar simpatias do lado democrata.

Afinal de contas, foi o diretor do FBI que impediu Hillary Clinton de ser Presidente dos EUA.

Mas a ligação entre o afastamento de Comey e o agravamento das suspeitas do 'conluio russo' é tão direta que Trump acabou por não marcar pontos com ninguém.

Os últimos dias foram tão desastrados para o Presidente dos EUA.

Donald Trump não mediu bem as consequências de despedir alguém que tinha um mandato muito mais longo do que ele próprio e que o estava a investigar.

Foi um ato que provoca os limites dos poderes presidenciais e é a maior afronta autoritária que o 45.º Presidente dos EUA fez ao sistema desde que tomou a 20 de janeiro passado.

Os diretores do FBI têm mandatos de dez anos. Uma duração duas vezes e meia superior aos mandatos dos presidentes -- precisamente para não estarem diretamente dependentes dos ciclos políticos na América.

Ao demitir James Comey, em pleno processo de investigação do eventual "conluio russo", Donald Trump mostrou total desrespeito pela separação de poderes e pela autonomia dos serviços de informação e de possíveis consequências judiciais das conclusões que possam vir a sair da comissão independente que decorre no Congresso.

Washington ainda não é Moscovo -- muito menos Pyongyang.

Nos EUA, as instituições funcionam e, como Bill Schneider bem recorda, "é precisamente nas alturas de crise e tensão que elas funcionam melhor".

Olhando para os disparates que têm sido feitos pelo Presidente dos EUA nas últimas semanas, é caso para dizer: também não era preciso exagerar.

Mitch McConnell, líder da maioria republicana no Senado (casado, para mais, com a responsável pela pasta dos Transportes da Administração Trump, Elaine Chao), desabafou: «Era um pouco menos difícil trabalhar se não houvesse tanto drama e tanta confusão vinda da Casa Branca». Isto foi dito pelo líder da maioria republicana, repito, nem sequer foi por um congressista democrata.

A queda de Flynn foi o “turning point”

A saída do general Flynn do importantíssimo posto de Conselheiro de Segurança Nacional, apenas 23 dias depois de iniciar funções, foi a “smoking gun” que veio mostrar que a questão russa ia dar sérios problemas à Administração Trump.

Mesmo despedido pelo Presidente, Comey vai testemunhar no Senado. Não há caminho para trás nas investigações da “Russia collusion”. E começa a ficar claro que o envolvimento de Donald Trump pode ser comprometedor.

Se for mesmo verdade o que vem no “Comey Memo” (Trump terá pedido ao FBI para parar as investigações ao general Flynn porque ele era… “um tipo porreiro” e terá sugerido prisão aos jornalistas responsáveis por fugas de informação), o prestígio e a autoridade do 45.º Presidente dos EUA podem ficar irremediavelmente abalados.

Um presidente “não americano”

No meio de tantas tropelias e confusões, passou sem o devido destaque um dos momentos mais graves da Presidência Trump nestes primeiros 120 dias: na receção a Macri na Casa Branca, Donald Trump tentou convencer o presidente argentino a não condecorar Jimmy Carter, Presidente dos EUA entre 1977 e 1981.

Macri tinha decidido atribuir a Carter a Medalha da Ordem do Libertador San Martín, pelo seu trabalho de promoção dos direitos humanos durante a última ditadura militar da Argentina.

Ora, uma atitude destas vai totalmente contra a tradição de respeito entre presidentes dos EUA, independentemente de ideologias ou de serem democratas ou republicanos. Clinton, nos anos 90, amnistiou Nixon meses antes do presidente republicano mais odiado pelos democratas ter falecido.

Obama deu indicações para não se perseguir judicialmente o vice-presidente Dick Cheney, no pós intervenção militar no Iraque. George W. Bush chamou Bill Clinton em momentos dramáticos como o Katrina ou o terramoto no Haiti.

Donald Trump perde tempo, em audiências oficiais na Casa Branca, a convencer um homólogo de outro país a não condecorar um antigo presidente americano que ocupa os últimos anos da sua vida a lutar pelos direitos humanos e pelos princípios democráticos.

"This is not America"

  *autor de dois livros sobre a presidência Obama e outro sobre Hillary Clinton e a eleição presidencial de 2016

 

 

 

 

 

 

 

 

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