Kei: goleador da MLS surgiu entre abutres e corpos nas ruas - TVI

Kei: goleador da MLS surgiu entre abutres e corpos nas ruas

Kei Kamara

Uma das grandes figuras do 'soccer' nos Estados Unidos escapou à guerra civil na Serra Leoa; está a construir escolas no seu país para ajudar jovens como ele

Lado B é uma rubrica que apresenta a história de jogadores de futebol desde a infância até ao profissionalismo, com especial foco em episódios de superação, de desafio de probabilidades. Descubra esses percursos árduos, com regularidade, no Maisfutebol:

«Se acabar a minha carreira, talvez sem conquistar campeonatos, mas ajudando a construir escolas na Serra Leoa, a minha carreira está sido um sucesso.»

Kei Kamara (Columbus Crew) tem atualmente 31 anos e fez a melhor temporada da sua carreira. Ainda assim, não venceu nada.

Marcou os mesmos 22 golos que Sebastian Giovinco. Porém, o italiano do Toronto FC foi o vencedor formal da Bota de Ouro devido a um fator de desempate: o número de assistências. Kei foi ainda finalista vencido no troféu MVP da temporada da Major League Soccer dos Estados Unidos, terminando no segundo lugar…atrás de Giovinco. Por fim, na semana passada, fez um golo mas não bastou para vencer a competição, perdendo na final com os Portland Timbers de Diego Valeri (ex-FC Porto).

Nada que afete o bom espírito de Kei Kamara, de qualquer forma. No final do encontro, foi ter com os jornalistas e levou-os às gargalhadas. Porém, garante que estava a falar a sério.

«Estou prestes a fazer um anúncio: vou retirar-me. Teria feito isso se tivéssemos vencido o troféu, aviso desde já, iria de imediato para Hollywood. Enfim, tenho de jogar mais uma época. Estou no meu topo de forma, tenho 31 anos e quero ganhar alguma coisa. Quando isso acontecer, irei retirar-me».

O avançado está no melhor momento da sua carreira mas não esquece uma infância traumatizante na Serra Leoa. Chegou aos Estados Unidos da América com 16 anos, fugindo da Guerra Civil que fez chorar o seu país e suportando mais de um ano num campo de refugiados na vizinha Gâmbia.

Kei Ansu Kamara nasceu em 1984 na cidade de Kenema. A Guerra Civil na Serra Leoa começou em 1991.



«Cresci numa família cheia de amor e muito muito grande. Tinha apenas seis anos quando a minha mãe partiu para os Estados Unidos e me deixou com a sua irmã mais velha, no mesmo ano em que começaria a Guerra Civil.»

O jovem foi-se adaptando a uma nova realidade, a um cenário de horrores. Rajadas de metralhadora, massacres. Corpos nas ruas. Abutres. A tentação de se tornar uma criança-soldado e combater ao lado dos rebeldes.

«Os filhos da minha tia eram como se fossem meus irmãos. Quando somos novos e crescemos num cenário de guerra civil não há muitas opções. Os rebeldes chegavam às cidades e tentavam recrutar crianças-soldado. Um dos meus ‘irmãos’ decidiu ir, assim como uma das minhas ‘irmãs’. Só que ela entretanto mudou de ideias, pediu para voltar para trás. Eles disseram que sim, sem problema, que fosse ter com a família. Ela virou as costas…e acabou-se para ela.»


Esse episódio provoca pesadelos a Kei Kamara – algo que se mantém até aos dias de hoje – assim como outro em que decidiu testemunhar.

«Lembro-me muito de outro dia. Não sei que idade tinha, talvez 10 ou 11. Lembro-me de os soldados capturarem alguns rebeldes, amarrá-los e coloca-los no chão. Como éramos apenas jovens, decidimos ficar e ver o que iria acontecer. Foram todos executados à nossa frente. Hoje quanto penso nisso sei que era algo que nunca devia ter visto.»

O futebol era por essa altura um escape. A bola de futebol permitia o escape temporário de uma existência grotesca, sem esperança, manchada com sangue nas ruas.

«Acordava de manhã e havia cadáveres nas ruas e abutres a comer a sua carne. Tínhamos apenas uma bola de futebol. Sem campeonato, sem balizas. O campo era onde houvesse espaço. Apenas pela alegria. Jogávamos até ser noite ou até começarem de novo os tiroteios.»
 
Essa foi a vida de Kei Kamara e de todos os jovens da Serra Leoa por mais de uma década. Oficialmemente, a Guerra Civil terminou em janeiro de 2002, deixando para trás um rasto de 50 mil mortes e 2,5 milhões de pessoas desalojadas.

Kei escapou antes do fim do conflito. A certa altura, arriscou a sua vida numa frágil embarcação com destino à Gâmbia.

«Deixámos tudo para trás e metemo-nos num barco em direção à Gâmbia. Eu via a água a entrar no banco e só pensava se íamos conseguir chegar ao outro lado. Conseguimos chegar, fazíamos parte de um programa de refugiados e tivemos de ficar lá à espera que chamassem os nossos nomes para ir para os Estados Unidos. Fiquei lá um ano e meio/dois anos, iá lá à escola, e já pensávamos que íamos ficar ali. Mas finalmente chamaram o nosso nome.»


O goleador do Columbus Crew sentiu dificuldades de adaptação aos Estados Unidos da América, como seria de esperar, mas agarrou-se ao futebol como via de integração plena.

Em 2006, com apenas 18 anos, foi selecionado pela equipa de Ohio no Super Draft da Major League Soccer.



Columbus Crew, San Jose Earthquakes, Houston Dynamo e Sporting Kansas City. Depois, Norwich City e Middlesbrough, permitindo a Kei Kamara ser o primeiro jogador da Serra Leoa a marcar na Premier League.

Kei Kamara cumpriu o sonho de jogar em Inglaterra mas o seu futuro estava nos Estados Unidos da América. No regresso ao Columbus Crew, uma época de sonho para encher de orgulho a família que o acompanha deste o continente africano.

«Devo tudo à Serra Leoa. Não é apenas o meu local de nascimento, é a minha casa. Tinha a oportunidade de jogar perante a minha família, portanto decidi jogar pela seleção da Serra Leoa e não pelos Estados Unidos. É a minha forma de retribuir, de dar algo a um país que não tem nada, de dar alguma esperança aos miúdos que não têm perspetivas de vida.»

O avançado não esquece as raízes e tem um enorme desejo de proporcionar um futuro melhor a jovens como ele.

«Fui abençoado e tenho a oportunidade de estar onde estou devido ao futebol. Agora é a minha vez de retribuir. Por isso é que estou a trabalhar em conjunto com o Michael Lahoud (Philadelpia Union) para construir escolas na Serra Leoa. Vemos as oportunidades que todos têm nos Estados Unidos e é isso que queremos para os miúdos da Serra Leoa. Se acabar a minha carreira, talvez sem conquistar campeonatos, mas ajudando a construir escolas na Serra Leoa, a minha carreira está sido um sucesso.»
 
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