Das aulas em Camarate ao 1.º contrato profissional aos 23 anos - TVI

Das aulas em Camarate ao 1.º contrato profissional aos 23 anos

Nacional-FC Porto (Lusa)

Há pouco mais de três anos, Rui Correia jogava na Série E da antiga III Divisão e já nem pensava no futebol profissional. Dava aulas em Lisboa e estava a meio de um mestrado, mas uma boa época no Fabril Barreiro despertou a atenção do Portimonense.

«Liga a pulso» é um espaço do Maisfutebol com relatos na primeira pessoa de jogadores que chegaram ao principal escalão do futebol português depois de terem passado por clubes semiprofissionais e/ou amadores. São histórias de vida de quem nunca desistiu de um sonho mesmo quando as portas pareciam fechar-se. (sugestões para david.j.marques@gmail.com)

Rui Correia, 26 anos (defesa e capitão do Nacional)

«As primeiras memórias com uma bola de futebol são do tempo em que o meu pai jogava no Desportivo de Chaves. Lembro-me de ir com ele para o campo de treinos e ficava lá a brincar com a bola. Qualquer miúdo tem o sonho de ser ‘jogador da bola’ e eu não fugi à regra.

Comecei a jogar nas escolinhas do Seixal, onde estive até aos juniores. O Seixal é um clube mediano com equipas de formação que jogam nos campeonatos distritais de Setúbal contra equipas como o Arrentela ou o Amora. Apesar de haver jogadores com muita qualidade, a visibilidade é reduzida. Como nunca fiz formação num grande nem estive numa divisão onde defrontava equipas grandes como o Benfica ou o Sporting, deixei cair o sonho de me tornar profissional.

Nunca fui um aluno de excelência, mas tirava boas notas. Os meus pais sempre me disseram para nunca deixar de estudar. O meu irmão sempre gostou de jogar futebol e nunca largou os estudos. Fez todos os anos sem repetir e eu também fui nessa sequência. Fiz o 12.º ano e fui para a faculdade: entrei no curso de Educação Física na Lusófona. Foquei-me nos estudos, mas continuei a jogar futebol por diversão.

Percurso

1998/2009: Seixal

2009/10: Zambujalense e Amora

2010-2012: Sesimbra

2012/13: Fabril Barreiro

2013/14: Portimonense

2014-…: Nacional

Passei metade do meu primeiro ano de sénior no Zambujalense, de Sesimbra. Acordava às 06h30 da manhã, apanhava o barco para Lisboa e depois o metro para as aulas. À tarde voltava para casa e ao final do dia ia treinar. Ia e voltava numa carrinha que me apanhava na minha zona. Dormia por volta de seis a sete horas por dia, não dava para mais.

No ano seguinte fui jogar para o Sesimbra, onde estive duas épocas. Saltei da distrital para a III divisão. Foi aí que comecei a ganhar alguma coisa: uns 200 euros. Eu e alguns colegas enchíamos um carro e dividíamos a gasolina. Dava para juntar uns 100 ou 150 euros.

Quando terminei a licenciatura, comecei um mestrado em Ensino Básico. De manhã ia para a faculdade e à tarde dava aulas a alunos da 1.ª à 4.ª classe numa escola em Camarate. Na altura estava no Fabril Barreiro, onde treinava à noite.

Acabar o mestrado, concorrer a escolas, continuar a dar aulas, jogar futebol por diversão e estar ligado a um projeto relacionado com atividades físicas era o que projetava para a minha vida.

Apesar de estar a fazer uma boa época, fui apanhado de surpresa quando o meu agente Paulo Filipe Dias, que começou a acompanhar-me nessa fase, me disse que havia vários clubes interessados em mim. No final da temporada apresentou-me as possibilidades que tinha e fui para o Portimonense.

Assinei o meu primeiro contrato profissional com quase 23 anos. Sinceramente, achava que era tarde para conseguir alguma coisa. Toda a gente tem um objetivo quando trabalha, mas eu já estava numa fase em que jogava futebol por gosto e por conseguir conciliá-lo com o trabalho.

A minha vida mudou de um dia para o outro. Tive de interromper o mestrado a meio, passei a ganhar um bocadinho mais e saí de casa, da minha zona de conforto, pela primeira vez na vida. Mais: desde os seis anos que estava habituado a treinar à noite. De repente comecei a ter dois treinos por dia, um de manhã e outro à tarde. Na II Liga joga-se muitas vezes à quarta-feira e ao domingo e eu não tinha a melhor preparação física. Eu, um miúdo que vinha dos campeonatos inferiores… Foram necessários alguns meses até estar no ponto mas, com a ajuda de toda a gente do Portimonense, consegui. Com o tempo, o corpo humano habitua-se.

Se a minha vida já tinha mudado muito, mudou ainda mais quando assinei no ano seguinte, em 2014, pelo Nacional. Chegaram a dizer-me que podia estar a dar um passo maior do que a perna, mas essa questão nunca me atormentou. Se tinha corrido bem da distrital para a 3.ª divisão e da 3.ª para a II Liga, por que razão não haveria de correr bem agora?

Tal como no Portimonense, precisei de algum tempo para me adaptar à realidade de jogar numa equipa da primeira divisão, onde o jogo é mais rápido e dinâmico e os jogadores tocam menos vezes na bola. Na I Liga, se cometes um erro estás condenado a sofrer um golo. É um campeonato com características muito diferentes. Na II Liga tinha dois ou três segundos para pensar, enquanto agora tenho de antecipar ações e decidi-las num segundo. Quando cheguei ao Nacional, ainda tinha alguns vícios da 3.ª divisão. Aprendi muito no primeiro ano cá. Lembro-me que andava a bater com a cabeça nas paredes por jogar pouco no início, mas hoje reconheço que foi melhor para mim não ter sido logo lançado às feras. Fui entrando de forma progressiva, ao mesmo tempo em que fui aumentando a minha compreensão do jogo.

Felizmente, tem corrido tudo bem até agora: estou num clube da Liga e já joguei um play-off da Liga Europa. Se há dois anos, quando estava no Fabril, alguém me dissesse que isto iria acontecer comigo, diria que era uma anedota, uma maluquice. Mas aconteceu.»

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