«Fui para o banco porque o Benfica tinha o melhor guarda-redes do mundo» - TVI

«Fui para o banco porque o Benfica tinha o melhor guarda-redes do mundo»

PreudHomme e Neno (Arquivo pessoal de Neno)

A propósito do reencontro entre as águias e Michel PreudHomme, o Maisfutebol recupera a entrevista ao belga e puxa pela memória do seu melhor amigo nos tempos da Luz, Neno. «Nunca conheci um profissional assim, às oito da noite a luz do quarto tinha de estar apagada»

O Benfica-Standard Liège é um jogo especial para o senhor Michel PreudHomme. Senhor, sim. Melhor guarda-redes do mundo em 1994, mais de 700 jogos como profissional, oito presenças divididas pelo Itália-90 e o EUA-94.

No ano em que é, precisamente, eleito o melhor do planeta na arte de defender a baliza, Michel deixa o Malines, para onde se mudara em 1986 após nove anos no Standard, e assina pelo Benfica. Aos 35 anos, PreudHomme chega à Luz e prova que «velhos são os trapos».

«Todos diziam: ‘o gajo era bom mas está velho’. Para os Media só vinha para o Benfica preparar a reforma. Acho que em cinco temporadas provei precisamente o oposto. Deixei de jogar aos 40 e por mim continuava mais uns anitos», conta o extraordinário PreudHomme numa entrevista concedida ao Maisfutebol em 2014.

Nessa mesma conversa, o homem que é agora vice-presidente do Standard, oponente do Benfica na Liga Europa, lembra o processo que o leva para Lisboa. Logo após um Campeonato de Mundo de nível sobre-humano.

«Eu fui para os EUA já como jogador do Benfica. Acabei o contrato com o Malines e o Luciano D’Onófrio [empresário] falou-me da possibilidade de ir para Portugal. Falei uma vez com o senhor Manuel Damásio [ex-presidente do Benfica], percebi a grandeza do Benfica e assinei logo».

PreudHomme joga até aos 40, mas tem o azar de coincidir em Portugal com um FC Porto «muito melhor». «Eles tinham uma espécie de superioridade moral nos jogos contra nós, eram arrogantes no bom sentido. No futebol isso é um bom começo de conversa».

Os números são evidentes: em cinco temporadas de águia ao peito, PreudHomme ganha só uma Taça de Portugal. Pouco, muito pouco para alguém capaz de conduzir o modesto Malines à vitória na Taça das Taças e da Supertaça Europeia em 1988.

O abraço de Neno a PreudHomme em 2019 (Arquivo pessoal de Neno)

No Benfica, Michel trabalha com oito guarda-redes. Lembra-se de todos de cor e salteado: «Neno, Tomás, Veiga, Brassard, Nuno Sampaio, Pedro Roma, Paulo Lopes, Bossio e Ovchinnikov.»

O único que lhe dá problemas é o russo. «Nada de grave. Com ele tive uma relação diferente, porque não aceitava ser suplente. Não era fácil para ele estar no banco, mas teve de esperar que o belga se reformasse.»

E o melhor companheiro? «O Neno. Era um grande campeão. Tinha conquistado o título, eu cheguei e ele perdeu o lugar. Nem assim reagiu mal. Aceitou-me, tornou-se meu colega de quarto nos estágios e um amigo verdadeiro. Grande pessoa, um tipo excecional.»

Tem a palavra o senhor Adelino Barros, o eterno Neno. Senhor, sim.

«Eu estava no banco e dizia 'com este gajo não tenho hipóteses'»

Quando PreudHomme chega ao Benfica, em 1994, o dono da baliza não é um guarda-redes qualquer. Neno é internacional português [nove jogos] e soma 43 presenças na campanha que culmina na conquista do campeonato nacional.

Sem surpresa, porém, o treinador Artur Jorge entrega o número um a PreudHomme e Neno passa a época inteira no banco. Faz só cinco jogos. A estreia de Michel acontece a 21 de agosto de 1994, na Luz, num 2-0 do Benfica ao Beira-Mar. Golos de Vítor Paneira e Clóvis.

VÍDEO: a estreia de PreudHomme pelo Benfica

«O Michel chegou ao Benfica com o estatuto de melhor do mundo. Foi o melhor guarda-redes que vi defender até hoje», diz Neno ao Maisfutebol, 26 anos depois de iniciar uma «amizade bonita» com o homem que acaba por afastá-lo da titularidade na Luz.

Fui para o banco porque o Benfica tinha o melhor guarda-redes do mundo. Obviamente que eu queria jogar, até porque vinha de algumas épocas a titular [122 jogos de 1990 a 1994]. Mas o Michel… eu estava no banco e pensava ‘com este gajo não tenho hipóteses’. Fazia defesas anormais, algumas mesmo impossíveis. O problema é que o Benfica tinha uma equipa fraca.»

Conformado com a perda do lugar para o belga, Neno passa a ser um ombro amigo, sempre disponível para ajudar. «Lembro-me de um jogo em Alvalade. Falei com o Michel e disse-lhe: ‘Cuidado, o Carlos Xavier vai fazer que cruza e depois remata à baliza. Ele vai tentar enganar-te’. Assim foi. Durante o jogo há uma jogada assim e vejo o Michel a corrigir a tempo o movimento e a defender. No final abraçou-me e disse-me que defendeu aquela bola por minha causa.»

Neno tem «memórias incríveis» do ano passado ao lado de Michel PreudHomme. O terceiro guarda-redes nessa temporada é Tomás, então com 23 anos. Tomás faz toda a carreira na II Liga, depois de também sair do Benfica em 1995: Paços Ferreira, Varzim, Felgueiras, Sp. Espinho…

«O Michel disse-me que eu era o primeiro guarda-redes colega de quarto dele. Confiava em mim. Ele dizia que antes tinha medo que o colega lhe fizesse mal ou que ficassem os dois doentes e a equipa perdesse os dois homens para a baliza», continua Neno.

«O PreudHomme vinha de uma cultura diferente. Nos estágios jantávamos, subíamos ao quarto e às oito da noite o Michel queria as luzes apagadas. Como sempre gostei de ficar a ver televisão, lá ia eu bater à porta do quarto do William ou do Isaías. Estas diferenças, curiosamente, faziam com que nos déssemos muito bem. Criámos uma empatia enorme.»

«O Neuer e o Oblak não chegam aos calcanhares do PreudHomme»

Neno acaba por sair do Benfica e muda-se para Guimarães, onde vive e trabalha até hoje no Vitória. Na Cidade-Berço faz quatro épocas, as duas primeiras com o estatuto de titular e «a lutar com o PreudHomme» pelo prémio de jogador mais regular do campeonato.

«Esse foi um detalhe curioso. O Michel era um detalhista e tornou-me num detalhista. Eu não ligava nada aos pormenores do jogo, para mim o futebol era só alegria e felicidade na baliza. Até trabalhar com ele», explica Neno, antes de dar dois exemplos concretos dessa «obsessão» do belga pelo estudo.

O Daniel Gaspar, treinador de guarda-redes com larga experiência e que trabalhou na seleção, no FC Porto e no Benfica, disse-me um dia que o Michel passava horas a ver resumos dos avançados que ia defrontar. Como rematavam, em que zona do campo rematavam, que movimentos faziam… o Dan até me disse, e eu concordo, que o Michel podia ter sido ainda melhor se se concentrasse mais nele, no seu próprio jogo. No Benfica era ele quem coordenava a defesa, quem definia o jogador que ficava ao primeiro poste, quem marcava quem, tudo era decidido por ele.»

Até no aquecimento, garante Neno, Michel PreudHomme prima pela diferença. «Nos clubes anteriores, o aquecimento do Michel era feito pelos adjuntos. No Benfica eram os outros guarda-redes. Lá tive de lhe explicar com calma as coisas e garanti-lhe que tudo seria bem feito. E ele aceitou, por confiar muito em mim.»

Para que se perceba objetivamente o nível de PreudHomme nos anos 90, Neno compara-o aos melhores da atualidade. «O Neuer é fantástico, o Oblak é incrível, talvez o melhor do mundo. Ao lado do Michel? Não lhe chegam aos calcanhares.» Elucidativo.

 

«Aquele abraço» de Neno e PreudHomme em Liège (arquivo pessoal de Neno)

«Ele vai adorar rever amigos do Benfica e o Estádio da Lu»

PreudHomme e Neno já não dividem o balneário há 25 anos, mas mantêm a amizade e continuam a trabalhar no futebol. Michel no Standard e Neno no Vitória Sport Club. A 19 de setembro de 2019, o reencontro.

«Fomos jogar a Liège para a Liga Europa. Até veio cá a Guimarães uma equipa de jornalistas e souberam que tínhamos sido colegas de equipa. Passei a ser o foco da reportagem. O nosso abraço? Foi muito, muito emocionante», conta Neno, visivelmente feliz ao falar do amigo.

«Nós falávamos esporadicamente, mas teve de ser o futebol a reunir-nos. O Michel é um homem fabuloso e, para mim, o expoente máximo do profissionalismo. Marcou a minha carreira ter tido o privilégio de lutar com ele pela baliza do Benfica. Tenho a certeza de que ele vai adorar rever alguns amigos do Benfica e o Estádio da Luz.»

Michel PreudHomme e Neno. Senhores, sim.

NOTA: fotos gentilmente cedidas por Neno ao Maisfutebol

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