Cursos de treinador vão mudar: o que está em causa - TVI

Cursos de treinador vão mudar: o que está em causa

Genéricas Maisfutebol

Nova legislação vem agilizar alguns dos problemas da duração da formação e da transição de atleta para treinador, que têm alimentado polémicas recentes. As mudanças em curso, enquadradas pelos responsáveis dos treinadores

Quem quiser ser treinador de futebol tem um longo caminho a percorrer. Um percurso complexo que tem estado na ordem do dia por causa das habilitações, ou falta delas, de treinadores como Silas ou Rúben Amorim, mas começa muito antes desse que é o patamar final. E está em processo de mudança, com nova legislação para agilizar precisamente alguns dos problemas da duração da formação e da transição de atleta para treinador. As alterações previstas passam por períodos de estágio mais curtos ou mesmo eliminados e também pela facilitação da formação no decorrer da carreira. O Maisfutebol falou com os responsáveis pela Confederação de treinadores e pela Associação de Treinadores de futebol, que enquadram as mudanças em curso.

Até ao topo da escada o caminho é longo, entre a formação teórica, os estágios e o tempo necessário de atividade profissional entre cursos, podendo levar seis a oito anos a chegar ao quarto nível, o último da carreira e aquele que em Portugal permite treinar equipas na Liga. A nova lei que define o «regime de acesso e exercício da atividade de treinador de desporto» para todas as modalidades e atualiza a legislação em vigor desde 2012, foi publicada em setembro, está agora na fase de reformulação do Plano Nacional de Formação de Treinadores e vai permitir encurtar esse prazo em dois ou três anos, estima Pedro Sequeira, presidente da Confederação de treinadores, que representa técnicos de 22 associações, incluindo o futebol, e participou no processo para a alteração legislativa. «Passa a ser possível fazer o Grau 1 num ano, o dois noutro, ao fim de mais um ano fazer o 3 e ao fim de quatro ou cinco anos terminar o 4. Antigamente demorava mais pelo estágio e pelo tempo entre níveis. Os graus 3 e 4 podiam implicar um ano e meio cada um, daí falar-se numa duração até oito anos.»

Estágios mais curtos ou abolidos

«Vai passar a ser menos tempo», reforça José Pereira, presidente da ANTF, a Associação Nacional de Treinadores de futebol, que dá exemplos das alterações previstas, nomeadamente em relação ao tempo de estágios, que passa a poder ser de apenas seis meses nos dois primeiros níveis, em vez de um ano, e será abolido no terceiro nível. «No Nível III acaba o estágio, vai ser possível apresentar em alternativa uma tese. Já facilita um bocado», nota: «Até agora um treinador num ano não conseguia fazer um curso e ficar preparado para outro. De acordo com a nova lei há essa possibilidade.»

«A quantidade de anos que se tem de estar em exercício entre cursos também foi encurtada», acrescenta Pedro Sequeira, «e há ainda diminuição da carga horária». Tudo alterações a consagrar na legislação geral, que depois é aplicada por cada uma das Federações. «A lei é sempre igual. As únicas adaptações que as modalidades fazem é na formação específica e na parte dos requisitos», explica, enquadrando os timings de um processo que está em andamento: «Está a ser construído um novo Programa Nacional de Formação de Treinadores, que terá de estar concluído até 6 de março. A fase de construção dos referenciais da componente geral terá terminado agora no final do ano. Depois há a construção dos documentos para as Federações, que podem ou não reformular a componente específica, o estágio, o reconhecimento da formação dos atletas.»

Facilidades para atletas «de elevado nível»

Há mais mudanças, nomeadamente no que diz respeito aos atletas. A lei passa a considerar a «carreira dual» e a permitir a atletas de alto nível agilizar a formação, sendo por exemplo dispensados do estágio a seguir ao curso, podendo completá-lo mais tarde e avançar para o nível seguinte. Quem for considerado «praticante de elevado nível», o que passa por ter sido atleta com estatuto de alta competição, ou ter jogado em ligas profissionais, ou ter sido internacional, entre outros critérios, também pode ficar dispensado de frequentar o Grau I.

«Tem esta facilidade aceleradora, ao poderem ficar isentos de fazer o Grau I e fazer logo o Grau II», diz Pedro Sequeira. «A lei não permitia a quem estivesse no desporto a 100 por cento conseguir ter outra profissão, e nomeadamente a de treinador. Agora fica resolvida a parte dos treinadores, ainda que para outras profissões continue a haver um caminho a fazer.»

No futebol, a dificuldade de conciliar a carreira de jogador com a formação de treinador tem sido um dos pontos polémicos, questionado por alguns dos novos técnicos que fizeram carreiras longas como jogadores. Pedro Sequeira concorda com a ideia de que essa é uma limitação e um «handicap» que prejudica antigos atletas em relação a treinadores que fazem em exclusivo a via da formação académica. «Um atleta que fizesse o Grau I, como é que podia fazer o estágio? Agora pode deixar o estágio para quando deixar de ser jogador.»

José Pereira, que questionou em nome da ANTF várias das nomeações de treinadores sem formação completa para clubes da Liga, defende por outro lado que já há atualmente formas de contornar a questão. «Qualquer jogador pode tirar o curso a partir dos 18 anos. Se tiverem vontade podem ir tirando o Grau I e II. Se começarem só aos 30 é mais complicado», afirma, defendendo, por exemplo, que os jogadores «podiam fazer o estágio no clube onde estão a trabalhar». Pedro Sequeira admite que sim, mas era sempre complicado um jogador estar a estagiar numa outra equipa do clube enquanto tinha de jogar no plantel principal: «Podia ser integrado no próprio clube, mas para os atletas profissionais, que têm estágios ao fim de semana, era complicado. Isso está simplificado pela atual lei.»

José Pereira defende que também já existiam outras vias para facilitar o processo de transição: «Os jogadores profissionais têm uma hipótese de aceleração, podem fazer dois graus num curso, o UEFA B+A. Já se fizeram dois cursos desses, que são só para jogadores.» E também há, diz, a hipótese de um pedido de equivalência: «Quem quiser também pode pedir o RVCC, Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências. Presta provas, e depois é ou não aprovado por um júri.»

Na escala de formação, os quatro níveis de formação hoje existentes mantêm-se na nova legislação. Esses níveis são definidos pelo IPDJ e no caso do futebol têm associados os graus definidos pela UEFA. «Os treinadores de futebol têm dupla certificação, do Estado, pelo IPDJ, que é para todas as modalidades. E depois, se querem ter aptidões para se candidatarem a diplomas da UEFA tem que ser via Federação», diz José Pereira: «Esta dupla certificação é que veio complicar, para fazer de acordo com os critérios da UEFA, que não são iguais. Tem que haver uma carga horária mais elevada para cumprir os pressupostos de uma e outra entidade.»

As diferenças nos níveis de formação no futebol

Os dois primeiros (Grau I – UEFA C e Grau II – UEFA B) são os níveis de base e são promovidos pelas associações de futebol. A lei permite também que haja empresas privadas a organizá-los, mediante certificação do IPDJ, mas na maior parte dos casos esses cursos não têm equivalência aos níveis de formação da UEFA, habilitando apenas os treinadores a trabalhar em Portugal. «A UEFA só reconhece cursos dados pela Federação. Isso significa que há um conflito que esta lei nunca vai resolver. A FPF tem viabilizado a equivalência com algumas instituições de ensino superior, mas essa é uma questão que se mantém», diz Pedro Sequeira.

Os cursos dos dois primeiros níveis são frequentes. «Há talvez uns 100 cursos por ano. São 22 associações e têm dois ou três por ano, algumas quatro», estima José Pereira. «Depois afunila», prossegue o dirigente dos treinadores de futebol.

Os níveis III (UEFA A) e IV (UEFA Pro) estão sob alçada direta da Federação. Com mais limitações temporais, nomeadamente o último. Uma imposição da UEFA, nota José Pereira: «Em Portugal, de acordo com a regulamentação da UEFA, só se pode fazer um curso UEFA Pro de dois em dois anos para o IV nível.» Está prevista pela Federação a realização de um curso UEFA Pro para maio deste ano.

Sendo menos regulares, os cursos mais avançados são também mais seletivos. «No III e IV nível há 200 inscritos para 30 vagas», diz José Pereira. É aí que entram diversos critérios de seleção, que vão da experiência de treino ao estatuto de jogador internacional. «Os critérios consideram por exemplo os jogadores internacionais. Mas primeiro está o o tempo que o candidato tem de treino e o escalão onde treinou. Não faz sentido que alguém já treine na II Liga e quem vem dos Distritais passe na frente», diz José Pereira.

Há mais alterações previstas na lei, importantes não apenas para o futebol. Pedro Sequeira destaca nomeadamente uma mudança no Grau I. «A mudança mais importante para a Confederação é o facto de o Grau I passar a ser autónomo, quando antes o treinador de Grau I tinha de ter sempre um tutor.»

Também há novidades no que diz respeito à formação contínua, que todos os treinadores têm de fazer mesmo depois de completo o percurso formativo. «Para a UEFA são 15 horas de três em três anos, para o IPDJ eram 50 de cinco em cinco, isso também muda», diz José Pereira.

E há ainda uma mudança no que diz respeito à fiscalização do cumprimento das normais. «Antes estava previsto que a fiscalização fosse feita pelas Federações e agora passou para a ASAE», explica Pedro Sequeira.

A importância da formação e a polémica no futebol

Ainda que destaquem como as alterações vão no sentido de tornar a formação de treinadores «mais acessível», como resume José Pereira, os representantes dos treinadores insistem na ideia de que esta é importante e deve ser respeitada. «O curso não é só a modalidade. Ser treinador é muito mais que ensinar a nadar, ou a jogar futebol. Um atleta internacional tem que ser valorizado, mas não tem formação sobre como lidar com crianças, não tem uma série de conhecimentos. É preciso muito mais conhecimentos de psicologia de treino, metodologia de treino», diz Pedro Sequeira.

A nova legislação pode contribuir para minimizar alguma da polémica a que se tem assistido no futebol, mas não quer dizer que ela acabe, acrescenta o dirigente da Confederação de treinadores. «Vai ajudar. Mas nunca vai resolver os problemas todos», afirma, defendendo que deve ser também uma questão de consciência dos próprios futuros treinadores: «A maior parte dos jogadores profissionais são conscientes e têm noção do que sabem e não sabem. Muitas vezes não sentem essas lacunas porque têm uma equipa técnica grande, onde há quem saiba metodologia de treino, psicologia de treino. O Rúben Amorim no Sp. Braga não vai ter problemas porque tem uma equipa técnica extraordinária. Mas se for treinar uma equipa dos Distritais, sem todo esse apoio, vai ter dificuldades. A culpa não é dos clubes, é dos treinadores, que deviam ter conhecimento. Na Federação isto é pacífico. Os problemas acontecem na Liga, porque são os clubes que se regem a si mesmos.»

A questão da formação de treinadores é complexa. «É difícil definir até que ponto é necessário fazer mais cursos, até que ponto se enquadra com as necessidades, e por outro lado ter em conta que o acesso à formação não pode ser negado», diz José Pereira, considerando no entanto que em Portugal «há cursos suficientes para as necessidades.» E há muitos treinadores já habilitados. «No futebol e no futsal», diz José Pereira, «anda à volta de 15 mil treinadores inscritos no IPDJ».

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