Como ficou a saúde mental dos futebolistas depois do confinamento? - TVI

Como ficou a saúde mental dos futebolistas depois do confinamento?

Treino do Sporting (foto: Sporting)

Viagem pela forma como alguns futebolistas atravessaram uma fase inédita nas suas carreiras

Às vezes basta um cheiro.

Aquele aroma de relva molhada, por exemplo.

E tudo parece voltar a fazer sentido.

Claro que a bola a rolar também ajuda. Ajuda muito. Mas para um jogador de futebol, poucas coisas sabem melhor do que o cheiro da relva.

Aquele que quase todas as equipas da Liga já puderam sentir nesta semana, numa altura em que o regresso da Liga já tem uma data: 4 de junho.

Até lá, há muito para trabalhar. Quer em termos físicos, quer no que diz respeito à mente dos jogadores.

Sim, essa parte tão importante do ser-humano também precisa de fazer um desconfinamento. E libertar-se de amarras feitas de incerteza e preocupação.

Jorge Silvério chama-lhe «a fase da esperança». Para o conhecido psicólogo, que trabalha com vários desportistas, esta é a quarta fase da história de uma pandemia que paralisou o mundo. E que levou o futebol por arrasto.

E depois de os futebolistas terem passado pelas mesmas primeiras três fases que a restante população – a do choque, a da habituação e da saturação –, a esperança chega aos futebolistas antes de iluminar as dúvidas e incertezas da maioria da população.

Ainda que venha envolvida num quê de medo.

«Depois de alguma ansiedade provocada pela incerteza – quer da retoma da competição, quer por haver cortes nos salários, por exemplo – os jogadores vivem agora uma nova fase. A esperança mistura-se com algum receio de se infetarem e de poderem infetar as famílias, mas a ansiedade é menor», acredita o clínico, que trabalha com cerca de uma centena de futebolistas.

Este número, explica Jorge Silvério, é quase uma duplicação do número de jogadores de futebol que recorriam ao seu trabalho de psicólogo antes do surgimento da pandemia.

«Houve um acréscimo de procura justificado por toda a incerteza trazida por esta situação», aponta, revelando que surgiram no seu «gabinete» situações distintas das habituais.

«Agora havia outro tipo de preocupações: pelo facto de não saberem quando regressaria a competição, ou pela dificuldade em manter o foco no treino», detalha.

Ainda assim, e apesar de o cenário se apresentar agora menos nebulado pela dúvida, o psicólogo acredita que ainda haverá feridas desta pandemia para curar num futuro próximo.

«O confinamento, que atingiu quase toda a população mundial, vai ter consequências. Os jogadores não vivem numa bolha e é provável que haja sequelas que terão de ser acompanhadas», declara.

É certo que não é nas condições desejadas, mas o regresso recente das equipas aos treinos serviu para aliviar o stress acumulado pelos futebolistas ao longo dos últimos dois meses.

Mas o tal cheiro da relva e o gosto por ter a bola a rolar sobre ela novamente não devolve todas as rotinas aos jogadores, que terão de se habituar agora ao que Jorge Silvério chama de «nova realidade».

«Do ponto de vista mental, também esta retoma implica uma mudança de rituais. Afinal, os jogadores não podem ir aos balneários, ou sequer conviver com os companheiros. Há a necessidade de fazerem uma habituação ao novo normal», aponta, sublinhando, porém: «É algo que vai surgir naturalmente porque o ser-humano tem uma grande capacidade de adaptação».

Bruno Nogueira: um ‘inimigo’… que se aceita

Preparar as pessoas para a mudança. Essa é uma das principais tarefas do trabalho de Tânia Paiva.

A professora especialista em ioga adaptado a desportistas de alta competição refere que «uma das principais funções do ioga é preparar as pessoas psicologicamente para quando há uma mudança».

E é fácil de perceber que isso é o que todos os futebolistas de equipas da Liga estão a viver neste momento, apesar de Teresa Viana lembrar tratar-se de pessoas habituadas a não sair muito de casa.

«Os jogadores de futebol profissional já estão habituados a uma espécie de confinamento, normalmente têm uma vida mais de casa. A diferença é que se precisassem ou se lhes apetecesse sair, podiam fazê-lo e durante umas semanas não puderam», diz.

Teresa Viana trabalha diretamente com Luís Neto e um outro jogador do Sporting, que prefere o anonimato. E em declarações ao Maisfutebol, a professora assume que sentiu alguma ansiedade nos jogadores, mas acredita que eles estarão mais preparados para a retoma do que aqueles que passaram o confinamento sem apoio de um profissional

«É claro que os jogadores estão ansiosos, mas agora tudo vai depender da mentalidade de cada um. Claro que quem tem aulas de ioga, ou trabalha com um coach ou um psicólogo tem condições para dominar melhor a mente e estará mais preparado para o que aconteceu», defende.

No caso concreto dos jogadores que acompanha, Teresa Viana vai ao encontro do que Jorge Silvério aponta como uma das dificuldades sentidas pelos profissionais de futebol.

«Uma das preocupações passou pela necessidade de se manterem focados, apesar de treinarem à distância. Eu acredito que a capacidade de manter o foco também é talento», atira, sorridente.

Outro problema com o qual os jogadores se debateram durante a fase de confinamento foi a necessidade de manter, minimamente, as rotinas de sono e refeições, algo que a professora entende ser fundamental.

«Por norma, os futebolistas são disciplinados em termos de rotina e aqueles que mudaram muito durante o período em que estiveram confinados poderão sentir maiores dificuldades em voltar», antecipa.

Assumindo que a instabilidade fez com que atletas que trabalham com ela revelassem ter sentido, por vezes, dificuldades em adormecer, Teresa Viana fala de como um fenómeno deste período ajudou Luís Neto.

«É normal que os atletas não durmam tão bem nesta fase e o Luís Neto chegou a dizer-me que por vezes via os diretos do Bruno Nogueira no Instagram. Apesar de serem tarde [começavam sempre às 23 horas], o humor ajudava-o a descontrair, como aliás acontece com todos nós», enaltece.

E neste caso concreto, não se tratava apenas do humor, mas da forma como se criou «um sentimento de grupo».

«O Bruno Nogueira fez com que as pessoas sentissem que não estavam sozinhas. Os problema e rotinas que ele relata são aqueles que a maioria das pessoas estava a viver. Uns dias melhores do que outros, as saudades de estar com familiares, a vida de casal…», enumera.

Nesse sentido, apesar de mexer com as rotinas dos jogadores, Teresa Viana concede que este ‘inimigo’ da rotina pode ter tido um efeito positivo, também nos futebolistas.

Meditação e uma ‘nova vida’ para o ioga

A meditação é indissociável do ioga. E nesta fase de regresso aos treinos, a modalidade é encarada mais como um suplemento, nesta fase, que é quase uma pré-época, Teresa Viana diz que as aulas que tem dado aos dois jogadores leoninos é focada sobretudo no relaxamento.

«Ambos se sentem bem fisicamente, mas agora adaptamos o ioga à carga de treinos que têm tido. Focamos mais no relaxamento, em exercícios de respiração e na meditação, mas sempre com algum movimento corporal associado», revela.

Durante o período de vigência do confinamento obrigatório, e apesar das limitações, a professora conseguiu algo que norma é difícil: ter duas sessões semanais com cada um dos atletas.

E aquilo que podia parecer um problema, pode ter-se transformado na solução para uma nova vida do ioga para os jogadores.

«As aulas do Luís Neto tiveram de ser feitas on-line, mas correram bem. E até comentámos que podemos fazer, por exemplo, quando ele estiver em estágio e sentir que pode ser importante trabalhar o foco mental», confidencia a professora.

«Código de conduta? Os jogadores sabem que todas as profissões têm restrições»

Uma questão que levantou alguma polémica nos últimos dias foi o código de conduta para os futebolistas, divulgado pela Direção Geral de Saúde (DGS), e que levou vários jogadores a reclamarem das imposições inscritas no documento.

Contudo, Jorge Silvério não acredita que, esclarecida a situação, não haverá problemas para os futebolistas, uma vez que todos se passam a ter de reger pelas mesmas normas.

«É importante haver um manual de indicações que todos os jogadores tenham de cumprir, para conferir segurança a todos», defende, acrescentando.

«Toda a população está limitada, os jogadores sabem que também têm de seguir as restrições específicas da sua profissão. Muitos médicos, por exemplo, optaram por sair das próprias casas para protegerem as famílias», recorda.

O psicólogo realça ainda que a existência de jogadores infetados nos plantéis das equipas da Liga não irá fazer aumentar os níveis de ansiedade dos jogadores, uma vez que, tratando-se de um universo tão alargado, seria de esperar que houvesse casos positivos.

«A existência de jogadores infetados era expectável. Tal como acontece na população em geral, de resto. Porque falamos de um universo muito largo», nota.

Por outro lado, Jorge Silvério sublinha a importância de se aumentar nesta fase o acompanhamento dos jogadores. E, acima de tudo, mostrar abertura para esclarecer todo o tipo de dúvidas que possam existir.

«É fundamental haver uma grande comunicação entre os jogadores e os clubes. Todas as dúvidas devem ser tiradas e nesta fase tem de haver uma maior atenção. Se o acompanhamento psicológico já fazia sentido antes, agora ainda faz mais», refere.

Uma ideia, de resto, partilhada também por Teresa Viana, que salienta a ideia de que além de fisicamente, é necessário que os jogadores estejam bem em termos mentais.

«O atleta joga com o corpo inteiro, não é só com os pés. Se a mente não estiver afinada, o jogador não vai marcar golos», diz.

Uma ideia milenar, no fundo: «mente sã, corpo são.»

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