«Cheguei a pedir duas vezes a demissão antes do Mundial2002» - TVI

«Cheguei a pedir duas vezes a demissão antes do Mundial2002»

António Oliveira (foto Facebook)

Load “ “ Enter. Rui Miguel Tovar está no Maisfutebol e entrevista António Oliveira

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Rui Miguel Tovar está no Maisfutebol com a rubrica LOAD " " ENTER. Para ler todas as semanas e saborear conversas por vezes improváveis com as principais figuras do futebol. Já sabe, basta escrever LOAD " " ENTER para entrar neste mundo maravilhoso de Rui Miguel Tovar. 

Oliveira.

Eis o primeiro seleccionador AA de Portugal a ganhar o primeiro troféu internacional, o Torneio Skydome, em 1995 (uma Liga das Nações pré-histórica)

A ideia do Load “ “ Enter é continuar em grande. Ao estreante Dominguez (1,65 metros de altura), saltamos para Oliveira (1,72 m). Sempre a subir. Meeesmo. Saímos do regabofe com Dominguez em Lagos e viajamos directos para Campanhã (seis horas-e-tal de comboio), onde nos espera António Oliveira, certamente o jogador-treinador com mais golos na carreira da 1.ª divisão. Ao todo, 19.

Craque. Campeão nacional por Porto e Sporting, também ganha a taça pelos dois clubes, curiosamente em finais com o Braga, uma nas Antas (1-0) e outra no Jamor (4-0). Faz-se seleccionador nacional e ganha o primeiro troféu internacional dos AA, em Janeiro 1995: é o Torneio Skydome, no Canadá. Agora, a quatro dias de mais um ano de boa vida, Oliveira vê o futebol à distância e é um homem com uma actividade empresarial imensa, com turismo hoteleiro, no eno-turismo como produtor de vinhos, no turismo termal e na hotelaria patrimonial e histórica, da qual o hotel A Brasileira é porta-estandarte. Cinco estrelas. O hotel. E a conversa.

A Liga das Nações está aí. Dois jogos em poucos dias, faz lembrar a Taça Skydome ganha por Portugal em 1995.

Ninguém fala disso. Nunca se tinha ganho absolutamente nada e ganhámos à Dinamarca, campeã europeia em título. Um-zero. Lembro-me perfeitamente do último lance do jogo [Oliveira levanta-se da cadeira, afasta-se da mesa e curva-se todo, com os braços para baixo, inertes]. O Barbosa estava sem fôlego, completamente de rastos. [Oliveira endireita-se e cá vai disto] Vale a pena dizer que o torneio jogou-se no SkyDome, um dos estádios mais bonitos e modernos que vi. A pala abria e fechava-se de acordo com a temperatura do ar. Como estávamos em Janeiro, havia neve até dizer chega e jogámos fechados. [Oliveira retoma a posição anterior, curvado até mais não] O Barbosa está podre de cansaço e eu levanto-me do banco para o incentivar. Ahahah. Insultei-o tanto: ‘morre no teu poste, meu g’anda’. Ele começa a correr, vai à linha e cruza para a área, onde aparece o Paulo Alves para fazer o golo da vitória à Dinamarca e também o do torneio.

Imagino a festa.

Você não imagina é o antes.

Então?

Tínhamos sido tão enxovalhados mas tão enxovalhados pelos emigrantes que aquele golo libertou-nos e acabou por transmitir finalmente sintonia entre os dois lados.

Emigrantes?

Sim.

Porquê?

Não levámos a equipa principal.

Pois, o torneio foi em Janeiro, a meio da época desportiva.

E explicar isso aos portugueses? Não estavam os craques, os gajos que eles adoram. Digo-lhe, nunca vi tanta gente exaltada como aí. Garanto. Nunca entrei tanto em pânico. Julguei ‘vão matar-nos’. Porque a fúria era visível, através dos insultos. A carga verbal era enorme. Pergunte a qualquer um dos jogadores desse torneio, eles confirmam. Palavra de honra.

E com o golo do Paulo Alves?

Aí foi uma festa. Passámos a deuses, num abrir e fechar de olhos.

Que equipa era essa?

Fui buscar o Caetanozito a Santo Tirso. O Calado ao Estrela, o Vado e o Paulo Alves ao Marítimo, o Tulipa ao Salgueiros, o Barroso ao Braga. Era uma selecção de segundo plano, uma selecção B, vá.

Ninguém dos grandes?

Dos que jogavam lá fora, estilo Baía, Figo, Couto, Rui Costa, Paulo Sousa e tal, nem um. Só chamámos jogadores a actuar em Portugal.

E dos três grandes?

Assim de repente, lembro-me do bicho, o Jorge Costa [do Benfica, Neno, Paulo Madeira e Nelo; do Sporting, Nélson, Oceano e Sá Pinto; do Porto, Secretário, Jorge Costa e Folha].

E a chegada a Portugal?

Tudo tranquilo, nada de especial.

E a taça, onde está?

Na federação.

Esse torneio Skydome foi a meio da qualificação para o Euro-96.

Verdade. Fizemos uma fase de apuramento bem boa, apurámo-nos para um Europeu 12 anos depois do de 1984 e só perdemos uma vez. Se não fosse o azar do maior frango do Vítor Baía na Irlanda, quando a bola lhe bate no cotovelo e entrou na baliza, era ainda mais tranquilo. Bateríamos o recorde de pontos com a maior das facilidades. Melhor ataque do grupo, melhor defesa, mais vitórias, menos derrotas. Enfim, é uma equipa de sonho, só craques. Tinha herdado essa equipa do Carlos Queiroz, campeão mundial em 1991.

Falou com Queiroz nesse processo?

Falava mais com o Nelo Vingada. O Queiroz tem um papel fundamental na estrutura do futebol português. É ele quem inicia o processo da organização, o de transferência de responsabilidade, o de processos de treinos, o de processo de auto-estima. Aí não há hipótese, Queiroz é rei. O problema dele era o feitio. Preferia falar com o Nelo.

 

Oliveira jogou nos seniores do FC Porto de 70 a 79

E que tal esse Euro-96?

Podíamos ter ido mais longe, havia essa sensação de que poderíamos chegar à final. Digo isto agora, hoje. E disse isto antes e durante o Europeu. O grupo era realmente formidável.

Acabou tudo com aquele golo do Poborsky, nos ¼ final.

Bastava que ninguem tocasse na bola e o Baía recolhia-a à vontade. O problema foi que o Paulo Sousa afastou a bola, houve um ressalto no Oceano e o Poborsky fez um chapéu, como quem diz ‘ide à vossa vida’. Agora vou dizer-lhe uma coisa. No final desse jogo, em conversa com o presidente da federação [Gilberto Madaíl], ouvi uma coisa indescrítível: ‘Ainda bem que não passámos porque a federação não tinha dinheiro para pagar os prémios’. Está a ver bem? Se passassémos a República Checa, a federação não tinha dinheiro.

[silêncio]

[mais silêncio]

Agora é tãããão diferente. Fizemos por isso, atenção. Graças à organização dentro da federação e dentro da formação. Hoje há uma coordenação e a própria criação da figura do director-técnico traduz-se numa esquema delineado desde cima até abaixo. Agora há espaços e competência bem definidos. Também não era difícil, bastava ver os outros países e imitá-los. Os bons exemplos seguem-se sempre.

Antes da eliminação da Rep. Checa, o que dizer de Portugal?

O que dizer? Olhe, criámos uma ideia. O slogan até é da minha autoria, veja lá aqui. [Oliveira saca de uma folha A4, onde se vê a fotografia da selecção mais a da figura do seleccionador e a seguinte mensagem: ‘Caros amigos, chegou a altura de assumirmos o grande desafio: deixar de ser os melhores para passarmos a ser os PRIMEIROS!’]

Deixar de ser os melhores para sermos os primeiros.

Isso mesmo. A minha mensagem era muito clara: vocês ganharam dois Mundiais sub20 seguidos, mas nunca fizeram nada nos seniores. Isso é história, é um facto indesmentível, não estou a retirar mérito a ninguém. Lancei o slogan e até fiz um CD para eles verem na televisão. A partir daí, começámos a fazer um trabalho adulto porque agora esses jogadores deixavam de ser as promessas para serem as certezas de todo um país. Dizia-lhes ‘Nosso Senhor deu-vos este dom e é um crime vocês não o aproveitarem. Vamos lá passar a ser os primeiros’.Claro, tudo isso implica compromisso e muito trabalho. A ideia era básica: caros amigos, chegou a altura

E os jogadores assimilaram?

Todos eles, sem excepção.

Como é que sabe?

Até o Figo fez uma frase para o grupo.

Boa. Qual era?

[Oliveira saca de outra folha A4]. Para vencer, é preciso ter qualidade e atitude. Temos qualidade, vamos ter ATITUDE.

Uauuuuu.

Isto foi o Figo, mas todos os outros também se comprometeram. Sabe como?

Nem ideia.

Temos de recuar uns tempos e perceber o problema de antes.

Qual problema?

Antes, a selecção parecia um sanatório. Os gajos vinham à selecção para descansar dos clubes. Não havia o culto do trabalho. Só que isso acabou.

Como?

Com ambição, trabalho e profissionalismo. Se a ideia passava por ir a todas as fases finais, tínhamos de ganhar na fase de qualificação. A esse compromisso juntava-se o de trabalharmos como um grupo, como um todo. O que é isto, na sua essência? Como começámos a emigrar com mais frequência, pedíamos a esses jogadores que nos trouxessem os métodos de treinos. Pedíamos a todos: ao Figo do Barcelona, ao Paulo Sousa da Juventus, ao Rui Costa da Juventus, ao Couto do Parma e por aí fora. Queríamos conhecer a maneira de trabalhar dessas equipas para incorporar exercícios que fossem benéficos para todos. Eles, jogadores, traziam as novidades e nós, corpo técnico, decidíamos. Entrámos num mundo totalmente novo. A nossa ideia era apreender. Eu também fazia o meu trabalho de casa e deslocava-me a esses treinos de Barcelona, Parma, Fiorentina, Juventus. Queria saber o máximo possível e levava comigo o médico para que ele também pudesse trocar ideias. Começámos a profissionalizar a selecção, sobretudo porque todos os jogadores davam-se como irmãos e usavam o conhecimento em prol da equipa. Nunca esconderam nada, sempre agiram como irmãos. O que foi fantástico.

A grande surpresa do Oliveira na convocatória para o Euro-96 foi o Porfírio.

[Oliveira sorri] Não tenho boa memória para isso, mas, sim, foi o Porfírio. Era um rapaz muito bom jogador e tinha uma coisa interessante: criava uma empatia fácil com os outros, era um bem-disposto e um brincalhão. Era muito bem aceite por toda a gente. Vou contar-lhe um exemplo contrário, de rejeição do grupo em relação a um jogador.

Quem?

O Sá Pinto. Qual Paulinho Santos qual João Vieira Pinto. O Sá é que foi o caso de rejeição.

Ai sim?

Pela irreverência, pela intempestividade. O Sá era irascível. Nos treinos, hein? [Oliveira faz uma careta e depois sorri longamente] [e fala a rir] Tive de ter uma conversa séria com ele. Adoro o Sá, é uma excelente pessoa, mas passava-se nos treinos. [Oliveira range os dentes] Ia a todas as bolas, saltava, pulava, atirava-se de frente, de lado, de costas. Falei com ele, porque percebi que o grupo estava a rejeitá-lo.

Falou de que maneira?

Apelar-lhe ao coração. ‘Sá, modera o estilo, fica mais tranquilo’.

E ele?

Começou a perceber, embora criticasse, às vezes, a atitude dos outros. ‘Mas ò mister, ele é que meteu o pé por cima’. E eu: ‘Ò Sá, és um bom jogador e tens todas as condições para andar com a malta, mas tens de moderar. Qualquer dia não te posso convocar.’ Ele lá atinou. Aquela agressividade era demais. Ele ia à bola e depois voltava a ir, como se fosse uma desforra.

Curiosamente (ou não), o primeiro golo desse Euro-96 é do Sá Pinto.

Pois foi, à Dinamarca campeã europeia em título, com os irmãos Laudrup mais o Schmeichel. O golo do Sá foi um cruzamento do Folha da esquerda. Ele deu de cabeça, sem hipótese para o Schmeichel.

Quantos avançados levou para esse Europeu?

O Sá e o João [Vieira Pinto]. Foi um período de poucos avançados, noves puros. Só depois é que dei a possibilidade do Pauleta e ele foi até ao fim. Com os resultados que se conhecem.

No seu tempo de jogador, havia noves a sério

Se havia, meu caro, se havia. Só classe.

No Euro-84, Nené marca à Roménia e Jordão bisa à França.

Nem mais.

Onde é que viu esse Europeu?

Aqui em casa.

Mas fez parte da qualificação, certo?

Verdade. Marquei dois golos, ambos à Finlândia, um lá e outro cá, em Alvalade.

Esteve no 1-0 à URSS?

Não joguei com a URSS. Nem lá, os famosos 5-0 em Moscovo, nem cá, na Luz, 1-0 do Jordão. Estava lesionado nos dois jogos. Um problema nos pés e uma hepatite. Azares.

Essa campanha começa com o Otto Glória. Como é que ele era?

Ohhhhh, era eu e mais dez.

A sério?

Ele gostava muito de mim.

Porquê?

Sei lá [Oliveira ri-se para a frente e para trás, pregado à cadeira]. Gostava de mim, pronto. Via alguma habilidade em mim. Tanto o Otto Glória como o Mário Wilson, ele diziam ‘é o António e mais dez’.

O Otto era porreiro?

Impecável.

Brasileiro em todo o sentido?

Mesmo, em tudo. Tinha uma queda especial para o treino e para a comunicação com os jogadores. Tinha uma voz doce e a gente achava-lhe piada. Já estava numa fase adiantada da vida, em fim de carreira profissional, mas ainda era um seleccionador com visão.

O Oliveira apanhou mais quantos homens com visão?

Muitos. Olhe, o Guttmann.

O Bela?

Achava-lhe piada porque dizia sempre ‘passa e chuta’. E, às vezes, também me dizia ‘se quiser, o minino é o melhor jogador do mundo’.

Ele falava assim?

Engraçadíssimo. E tinha a mania de nos meter a atirar a bola para acertar num poste distante, depois do almoço. Era a sua superstição, ahahah. Outro homem sensacional era o Fernando Riera. Um gentleman, da cabeça aos pés. Vestia-se com categoria, falava com uma voz bastante segura de si mesmo. Um treinador evoluído era o Aimoré Moreira, que já tinha sido seleccionador brasileiro. Era o tempo em que era obrigatório ter o curso de educação física para ser o treinador. Aqui, em Portugal, nada de nada. E os brasileiros eram pioneiros e evoluídos. Eles é que traziam as novidades, o fenómeno da exportação-importação, a tal permuta do conhecimento. Também apanhei o Paulo Amaral. Dizia-se que tinha sido o preparador físico do esquadrão da morte do Brasil. Agora imagine o que nos fazia nos treinos.

Nem imagino.

Pois não, ahahahah. O Stankovic, da escola jugoslava, era outro dos bons. Como o escocês Tommy Doc [Tom Docherty]. E, claro, o Artur Baeta, uma instituição dentro da própria instituição.

A do FC Porto?

Exacto. O Artur Baeta é uma bandeira do clube como formador de homens e jogadores ao longo de décadas e décadas. Foi um homem importantíssimo e extraordinário. Com visão e tacto, muito tacto. Descobriu uma série de ases.

Por falar em formação, o Oliveira tem uma carreira curta nas camadas jovens.

Engraçada essa história. Como era de Penafiel, só vinha ao Porto para jogar. E, às vezes, aparecia na segunda parte.

Nem treinava?

Estudava em Penafiel, ainda por cima num colégio interno, o da Formiga, e não havia maneira de fazer essa viagem. Só se fosse à boleia ou nos transportes. Fiz só uma época de juvenil e outra de júnior. Como nasci em Junho, tirei essa vantagem. Ahahahah.

Então nunca foi campeão?

Não. Pior ainda, no sentido da curiosidade, nunca fui titular de juniores A nem de juvenis A.

Porquê?

Porquê? Boa pergunta [Oliveira volta ao sorriso xxl]. Se nem treinava sequer, quanto mais jogar. Já viu bem? Só que uma vez, nos juniores, o central Cerqueira teve uma lesão qualquer no pulso, acho, e o Vieirinha, outro treinador de referência do Porto, convocou-me para uma fase final do campeonato, ali no Bessa. Chegou ao pé de mim e disse-me ‘só tu é que me podes ajudar, o Cerqueira teve um problema pá, só tu é que podes jogar a defesa-esquerdo.’

E o Oliveira?

Nunca tinha ouvido falar do Cerqueira nem sabia o que era jogar a lateral-esquerdo. Lá fomos, Porto-Leixões na final do campeonato regional do Porto. O Leixões era bem bom, com Horácio e Teixeira. Os bebés, no fundo. Lá fui para a esquerda. Às tantas, o nosso guarda-redes, o Matos, atira-me a bola e eu comecei a fintar quem me aparecesse à frente. De repente, entrei na área do Leixões e rematei à baliza. O guarda-redes deles, o Serrão, defender e o Correia Dias, que vive hoje no Canadá e está muito bem, faz a recarga vitoriosa. Ganhámos 1-0. Mal acaba o jogo, o Vieirinha diz-me que está ali o doutor David Sequerra para falar comigo. Sabia lá quem era o doutor David Sequerra. E estava acompanhado por um outro senhor, o adjunto, chamado Peres Bandeira, a quem chamei o tio Peres daí para a frente.

E então?

Falaram comigo e convocaram-me para estar às xis horas no sítio xpto. ‘Traz as botas’, disseram eles.

Eram o quê?

Eram dois torneios da seleção nacional, um em Espanha e outro em França. E eu nem queria ir.

Então?

Viajar, não me apetecia viajar. Mesmo hoje, quando viajo, sinto saudades de Portugal num instante. Sempre fui assim. Vou contar-lhe uma inconfidência: uma vez, o Porto eliminou o Barcelona e ganhou 1-0 em Camp Nou, com golo do Abel. Fiz um jogo bom e falou-se do interesse do Barcelona. Garanto-lhe, o interesse era real, só que nunca me apeteceu sair do país. Nesse sentido, sou provinciano. Gosto de estar aqui, rodeado da minha gente.

Mas foi aos dois torneios lá fora ou...?

Fui, sim. A minha saga começou aí. Joguei a defesa-esquerdo em Espanha e fui considerado o melhor jogador desse torneio. E também o fui no torneio em França. Ao segundo jogo, pedi para me meterem à direita. Quando voltei a Portugal e começou a época seguinte, entrei logo como titular no Porto. Foi o Paulo Amaral quem me promoveu. Mal me viu no treino, disse ‘esse menino não é jogador de reserva, não’. Meteu-me a titular, só não me lembro se fosse no meio-campo ou extremo-direito. Sei que depois conquistei o lugar ao Bené, ao lado do senhor Pavão. Era tudo senhores. O senhor Bené, o senhor Pavão, o senhor Rui à baliza. Depois o Senhor fez-me jogador. Tinha o fascínio da bola. Sempre tive, o que até é inexplicável porque toda a minha família é da música. Podia ter aprendido a tocar um trombone, um saxofone, o que seja. Mas não, gostava era do mundo da bola. A emoção do resultado, o fervor do público, o andar atrás da bola, as chuteiras.

Quais eram as chuteiras?

Cheguei a jogar esses torneios em Espanha e França com chuteiras amarradas por uma corda. Só queria era jogar.

Só tinha um par?

Só.

E as primeiras chuteiras de marca?

Le Coq Sportif. Vieram a Portugal para fazer-me uma bota especial.

A sério?

Isso mesmo. Tenho um problema no peito do pé, que me provocava um problema constante. Ainda hoje, dependendo do calçado. Um dia, a meio do Porto-Anderlecht para a Taça UEFA, vi um jogador belga com uma chuteira mais alta que a outra para proteger-lhe o tendão de Aquiles. Mal vi a chuteira, quis uma igual. Mas como? Eis que a Le Coq Sportif quis fazer uma publicidade comigo e aproveitei o momento para pedir uma chuteira especial. Mais à frente, também tive umas botas da Adidas com uma borracha na parte lateral interior. As pessoas até diziam que infuenciava os meus livres. Acho que não, era mais jeito que outra coisa., ahahahahah.

Le Coq Sportif, Adidas. Mais?

Puma. Uma vez, até joguei com Puma no pé direito e Adidas no pé esquerdo.

Então?

Apercebi-me que faziam negócio connosco e só nos davam uma esmola, estilo uma camisola ou assim. Um dia, reivindiquei e entrei em campo com as botas de duas marcas. Na altura, um jogador para usar um par de botas tinha de mendigar.

Vou mudar radicalmente de assunto.

Força, o amigo manda.

Ganhou a Taça pelo Porto e Sporting?

Ambas ao Braga, uma nas Antas, outra no Jamor.

Marcou algum golo?

Dois no Sporting-Braga em 1982. Foram os tais dois golos dedicados ao Ramalho Eanes. Na quinta-feira seguinte, fui almoçar com ele e levei o fato ‘ver Eanes’. Ele riu-se imenso.

Fato ‘ver Eanes’?

Fiz um fato à medida e comecei a encontrar-me com o Eanes vestido dessa forma. Era o fato ‘ver Eanes’. Ainda há umas semanas, cruzámo-nos num casamento de um amigo em comum e disse-lhe o de sempre. Ele riu-se, de novo.

No Sporting da época seguinte (1982-83), o Oliveira assume-se como treinador-jogador.

Atenção, já o tinha sido no Penafiel em 1980-81.

Verdade, esqueci-me. Alguma vez pensou em ser treinador?

Não, nada. Quando comecei a jogar futebol, nem sabia que se ganhava dinheiro. Era o vício da bola, tinha o diabo no corpo. Quando me propuseram o primeiro contrato, ganhava seis contos por mês. Se fosse casado ou internacional A, passava para oito. Já que ganhava dinheiro, achei que devia enveredar por aí. Agora treinador? Nada. Quer dizer, comecei a ficar atento às nuances e ganhei o respeito pela profissão. Depois, resolvi experimentar. Primeiro como jogador. Nasci treinador sem querer, ahahah. Foram as circunstâncias que assim o determinaram. No Penafiel, foi a ressaca do Verão quente do Porto em 1980. No Sporting, foi a ressaca da saída do Malcolm Allison na pré-época.

Alguma vez entrou em campo?

Claro que sim. Se entrasse, era por necessidade de mudar o jogo. Olhe, no Marítimo, por exemplo, fui contratado para treinar. Quando cheguei lá e percebi a falta de dinheiro mais a ausência de um plantel aceitável para a 1.ª divisão, pedi ao chefe de departamento Carlos Pereira, agora o presidente do clube, para me inscrever como jogador, senão não nos safávamos. Em duas ou três situações, entrava e mudava o jogo.

Alguma vez foi expulso?

Só uma vez, pelo Penafiel. Com o Porto. E depois do jogo.

Porquê?

Era um jogo comigo de um lado e o Pedroto do outro. E o Pedroto não nos deixou fazer o aquecimento no relvado, que estava todo encharcado aquando da nossa entrada em campo com o propósito de nos prejudicar. Tudo bem, também houve jogos em Penafiel em que encurtei o campo e enchi as laterais de saibro para que os adversários percebessem que se aleijavam à séria se escorregassem por ali fora. Também fiz algumas coisas desse ponto de vista. Quanto mais vantagem para nós, melhor. Era assim em todo o lado. Até o Porto do Pedroto fazia, está a ver.

A sua época de treinador-jogador no Sporting acaba antes do fim da época.

Verdade, entra o Venglos. Ele chegou para conhecer a realidade portuguesa e preparar antecipadamente a época seguinte.

Lembra-se bem desses tempos?

Claro. Olhe, o Venglos entregou-me o Futre para orientá-lo. A sua primeira medida foi definir o Futre como meu companheiro de quarto nos estágios.

Que tal?

Espectáculo, bom rapaz. Novinho e já queria fumar, ahahah. Dizia-lhe que não. Depois repensava. Afinal, quem era eu, um fumador, para lhe dizer isso? Por isso, deixava-lhe a ponta e dizia-lhe ‘dá lá dois pushes e apaga-me o cigarro’. Ele merecia, bom menino. Divertido e excelente jogador.

Foi o maior fenómeno?

Ele e, claro, o Chalana. Cada um com as suas características, mas idênticos na forma repentina de resolver os jogos. O Venglos estava a preparar o Futre para ser um jogador à escala mundial. Dizia-me isso muitas vezes. Como tal, fazia-o entrar 15 minutos num jogo, 20 no outro, 25 no seguinte e por aí adiante. De repente, o Porto foi lá e ficou com ele. O resto é história. Da boa.

Mais um aviso, vou fazer outra revienga na entrevista.

Ò meu amigo, está à vontade.

Mundial-2002.

Foi um Mundial interessante até chegarmos lá. Mais uma vez, uma fase de qualificação imparável como primeiro do grupo e sem qualquer derrota [sete vitórias e três empates, igual à Irlanda, segunda classificada; decide a regra da diferença de golos: +26 contra +18]. Tínhamos condições para ser campeões mundiais. Só que o Figo lesionou-se em Fevereiro, o Simão lesionou-se em Março durante o jogo com a Finlândia no Bessa e tivemos problemas com mais 4 ou 5 jogadores.

De lesão?

Se fossemos rigorosos, sérios e profissionais, sem outros interesses metidos ao barulho, esses quatro ou cinco nem sequer seriam convocados para o Mundial.

Quem são?

Abel Xavier e Paulo Sousa, por exemplo. Eles não treinavam nunca e, depois, o relatório médico dizia sempre o mesmo: aptos. Cheguei mesmo a pedir a demissão. Por duas vezes, entre o último jogo da fase de qualificação e o primeiro da fase final. Ou alteram as coisas ou demito-me.

E?

Nem devia ter ido a esse Mundial porque tinha sido sujeito a uma cirurgia. O médico desaconselhou-me totalmente e até me dizia que corria risco de vida se uma bola fosse ao meu encontro vinda sabe-se lá de onde.

Foi operado antes do Mundial?

Disse assim ao presidente [Gilberto Madaíl], ‘se não alterar o que está a acontecer no seio da equipa, demito-me’. Nem imagina, havia uma disputa de lugares e um pedantismo. Era constante, não me pergunte porquê. Ninguém noticiou a minha operação com medo de que isso pudesse causar algum desconforto junto dos jornalistas, da opinião pública, etecetera. Isso só se saberá no dia em que formos todos à Torre do Tombo. Se as pessoas forem honestas, sabem que foi assim que se passou. É por isso que não os perdoo. Porque foram maus e premeditamente injustos. No meio daquele processo, toda a gente enjeitou responsabilidade e evitou dar a cara. Que eles continuem a fazer a vida deles, a ganhar o seu dinheirinho.

Porque é que tirou o Ricardo, titular na qualificação, e incluiu o Baía no Mundial?

O Ricardo fez a campanha toda porque o Vítor Baía se lesionou. Com o Vítor em pleno, o Ricardo nunca jogaria. Certo? Vou dar-lhe um exemplo: o Casillas lesiona-se e é substituído pelo suplente, que faz boas exibições. Quando o Casillas recupera, reentra na equipa. Porque é o número um. Tão simples como isso. No caso do Vítor Baía-Ricardo, a lógica é essa. Com mais este pormenor: quem treina os guarda-redes da selecção é o Silvino. Pergunto-lhe como está o Vítor Baía e ele responde-me isto: ‘o Vítor está bem, está o Vítor de sempre e o grupo quer o regresso dele’. Eu nem quero saber se o grupo quer ou não o regresso, só quero saber se ele está bem. E está, sim senhor. Então vou meter o Vítor. Tive o cuidado de chamar o Ricardo à parte e dizer-lhe isto: ‘ò Ricardo, não devia dizer-te isto mas vou dizer: vais ser o suplente do Vítor Baía no Mundial-2002 e vais ser o titular no Euro-2004’.

Já a pensar no Euro-2004?

O meu contrato ia até ao Euro-2004, a ideia era fazer um bom Mundial e ganhar o Euro-2004 em casa. Estavam montadas todas as condições, só que infelizmente dei-me com uma série de sem carácter. Contra isso, confesso, não consigo fazer frente. Dei o meu melhor e ainda não percebi o mal que fiz. Só porque se lesionou, o Vítor nunca mais ia jogar? Está lesionado e não joga, muito bem. Está bem, regressa ao 11. Simples. Foi um período negro em que misturam clubes e mais uma série de coisas. Houve uma certa toupeirada em relação ao papel do seleccionador. Confiei nas pessoas e elas traíram-me.

E é verdade que deu ordem para não se saber o resultado do Polónia-EUA durante o Portugal-Coreia?

Isso vai novamente de encontro ao falado anteriormente. Qual ordem? Se me perguntarem ainda hoje, não quero saber o resultado dos outros, só queria saber do meu resultado. Agora nunca ninguém me perguntou se queria saber ou não. Não houve essa decisão. Então eu estou ali de muletas, à espera do golo que nos dá o apuramento e vou estar preocupado com os outros? Agora, se eles todos sabiam e não me disseram, é só mais um exemplo de má fé. Fiz honestamente o que sempre fiz toda a vida. Se fiz alguma coisa de errado, sempre assumi a responsabilidade. Houve coisas nesse Mundial de que fui acusado e preferia morrer de vergonha. Quando era treinador do Porto, ficava em casa cheio de vergonha no dia seguinte a um empate ou uma derrota. Morria de vergnha, digo-lhe. Misturaram coisas que nada tinham a ver com a selecção. Questões de clubes e a Olivedesportos. A ideia, repito-lhe, era ganhar o Euro-2004. O Scolari teve os deuses todos a seu favor.

Menos os deuses gregos?

É verdade, menos esses. Se perguntar a esses jogadores, sabem que não fiz nada de mal na seleção. Eles respeitaram sempre as minhas decisões, houve um clássico de guerra entre dirigentes. Felizmente isso agora não acontece, porque todos sabem que a liberdade de um acaba na liberdade do outro. Nunca confundi empresários com jogadores, empresas com federação, clube com seleção. Nunca. Agora há coisas que me ultrapassam, feitas nas minhas costas, e isso não controlo.

O que falhou, no fundo?

Antes, vivíamos fechados, isolados. Tínhamos jeito para a bola e queriam que fossemos os brasileiros na Europa, mas não havia exigência profissional nem rigor no treino. Estávamos no princípio das coisas. Na altura, o professor era um bicho estranho. Não havia ninguém com estudos no futebol, era tudo feito às três pancadas. Havia até alguma resistência por parte dos treinadores aos tais professores, que eram, simplesmente, pessoas com mais estudos. Daí para cá, tudo mudou. Uma evolução estratosférica, só lhe digo. Os próprios jogadores têm outra cultura e forma de estar. E tudo depende do país. Se essa evolução fosse numa Alemanha ou numa França, era rápido. Uma licenciatura demora cinco anos em Espanha. Em Portugal era num abrir e fechar de olhos. O país evoluiu em tudo. Só que agora o problema é outro.

Qual?

Há uma fobia enorme aqui em Portugal: antes a banca intrometia-se no futebol, agora é a política. Querem agarrar-se ao futebol como se fosse a última coisa a fazer. Não auguro nada de bom se a política continuar a apoiar-se no futebol. Depois não digam que não avisei, como diz o nosso presidente Marcelo. Estão a futebolizar a política. Excessivamente, exacerbadamente. Acham que o futebol é da elite e do poder. Há aqui uma fronteira mal definida entre futebol e política. É como o encontro das águas da Amazónia. Uma é preta, a outra é castanha e não se juntam. Ainda agora na final da Taça de Portugal, a primeira linha é ocupada por políticos e assessores. Só depois é que aparecem os jogadores. Assim não pode ser. Esse pedestal está ultrapassado, o dos jogadores irem lá acima. Não quero desprezar a figura do presidente ou do ministro, mas os jogadores lá em baixo têm uma grande responsabilidade social. Vou mais longe: estou à espera que proponham o futebol como prémio Nobel. Já viu a responsabailidade do futebol contra o racismo, a favor da paz no mundo, pela igualdade dos direitos? Os políticos que fiquem no lugar deles a desempenhar a sua função, mas não assaltem o poder do futebol. A factura paga-se, digo-lhe. Depois não digam que não avisei.

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