«Mandela disse-me: 'Não estive 27 anos preso para me negares um sonho'» - TVI

«Mandela disse-me: 'Não estive 27 anos preso para me negares um sonho'»

Carlos Queiroz

Rui Miguel Tovar entrevista Carlos Queiroz, que passa a carreira a pente fino e até recorda o dia em que o presidente da FPF o anunciou como selecionador... antes de ele ter aceite o convite

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Rui Miguel Tovar está no Maisfutebol com a rubrica LOAD " " ENTER. Para ler todas as semanas e saborear conversas por vezes improváveis com as principais figuras do futebol. Já sabe, basta escrever LOAD " " ENTER para entrar neste mundo maravilhoso de Rui Miguel Tovar. 

Carlos Queiroz faz agora o 200.º jogo como selecionador, entre Portugal (49), Emirados Árabes Unidos (19), África do Sul (24), Irão (99) e Colômbia (9) e passa a carreira a pente fino, desde a estreia em 1991 vs Áustria, nas Antas, até ao jogo desta madrugada com o lendário Brasil, em Miami.

Três Mundiais, duas Taças da Ásia, uma Copa América e um Campeonato Africano das Nações. O currículo, por si só, já é notável. Se a isso acrescentarmos o 200.º jogo pelas seleções (Portugal, Emirados Árabes Unidos, África do Sul, Portugal, Irão e Colômbia), tropeçamos num nome incontornável no nosso jet-set: Carlos Queiroz. É o décimo homem à face da terra a chegar às duas centenas e o número redondo acontece frente à seleção mais titulada do mundo. Ya, o Brasil. É esta madrugada em Miami, a partir das duas da manhã.

Pergunta de algibeira: qual é o sentimento por estar à beira do jogo 200 ao serviço das seleções?

É uma sensação de bem-estar. Quando olho para trás, vejo o meu percurso e percebo onde estou, sinto-me orgulhoso de ter vivido muitas aventuras com muitos mistérios à parte. Sinto-me feliz por ter conhecido tantos jogadores. Sinto-me completo por ter conhecido o mundo. Desde a estreia até hoje, descobri inúmeras facetas, lidei com muitas tácticas, enfrentei muitos fenómenos e só uma coisa nunca mudou: a bola. Daqui para a frente, nos próximos 200 jogos, a bola também nunca mudará e tudo o resto será diferente.

Lembra-se da estreia?

1991, nas Antas. Com a Áustria, certo?

Correto e afirmativo.

Era o tempo em que os selecionadores falavam ao mesmo tempo com os jornalistas.

Como assim?

Acabava o jogo e íamos juntos para a sala de imprensa.

Essa é boa.

Nessa noite, fui eu e o Ernst Happel. O grande Happel.

Entrou em 1991 por obra de quem?

Entrei no início da época desportiva 1991-92 e a meio da qualificação para o Euro-92. O Artur Jorge, selecionador, recebeu uma proposta do PSG, com o qual teve imenso sucesso, a comprovar pela conquista da taça e do campeonato francês, e foi preciso preencher a vaga. O desafio foi-me lançado pelo João Rodrigues, presidente da federação.

E?

Não queria aceitar, não achava oportuno, ainda por cima estávamos quase fora do Euro-92. Ainda me lembro perfeitamente da reunião, ali na Praça da Alegria, num gabinete. Disse de minha justiça ao João Rodrigues, ele ouviu e depois levantou-se. Pediu-me desculpa por uns minutos. Quando voltou ao gabinete, disse-me ‘acabei de anunciar à imprensa que o Carlos é o próximo selecionador, agora é consigo: saia desta porta e fale com os jornalistas’. Saí e fui logo bombardeado com parabéns dos jornalistas. Ahahahah.

Surpresa, surpresa.

Agarrei-me à ideia a partir daí, claro.

Qual era a ideia?

Fazer a transição entre os campeões mundiais sub-20 de Riade e Lisboa com os mais velhos. Como não sou homem de revoluções, quis preservar a memória coletiva e técnica da seleção. Daí que tenha ido aos poucos. Na estreia, com a Áustria, jogam Baía, Couto e Paulo Sousa, se não me engano.

Nem mais.

A transição fez-se aos poucos. Só depois vieram os Peixes, os Figos, os Ruis Costas e por aí fora. No fundo, a estratégia era a apostar na evolução da continuidade e os mais novos só iriam aprender com os mais velhos.

Quem são os mais velhos?

João Pinto, André, Semedo, Rui Águas, Paneira, Futre, Rui Barros. A todos eles, o meu obrigado. Porque eram e ainda são referências do nosso contentamento e porque se misturaram com os mais novos da forma mais pacífica possível. O grupo era homogéneo e ainda acreditava na qualificação para o Euro-92.

E...

Eiscchhhhhhh, esqueci-me do Oceano. Meta aí o Oceano, óbvio. Ele está aqui comigo e tudo, ahahahah. Acompanha-me desde os tempos do Sporting: eu treinador, ele capitão. E, por fora, acompanha-me desde os tempos do Irão. Oceano, inclua-o ao lado de Futre, Rui Barros. Aliás, se não me engano, o Oceano era emigrante na Real Sociedad, a par de Futre, no Atlético Madrid, e Rui Barros, no Monaco.

Exatamente, na mouche.

Veja bem, ó Rui, só três emigrantes no onze. Agora é o que é. Em 1991, só três. É muito jogo, é muita evolução. Falava eu da bola continuar a ser o único elemento na mesma. É a mais pura das verdades.

Com a seleção portuguesa

E a qualificação para o Euro-92?

Havia ali uma porta entreaberta. Ganhámos à Finlândia e precisávamos de ganhar na Holanda. A Holanda dos três holandeses, passe a expressão. Ahahahahahah. Essa é boa. A Holanda de Rijkaard, Gullit e Van Basten. Era a atual campeã europeia. Ganharam-nos com um golo do Witschge num remate fora da área em que apanha o Baía em contrapé. Do que mais me lembro desse jogo é do Rijkaard e do Van Basten terem ido cumprimentar o Peixe depois do jogo, a darem-lhe os parabéns pela exibição. O Peixe só tinha 19 anos. Acho que se estreou nesse jogo e tudo. Isso é uma memória muito forte. Somos eliminados e, ainda assim, as estrelas do futebol mundial dão-nos os parabéns.

Nessa primeira fase da seleção portuguesa, qual o jogo mais conseguido?

Vou dizer dois, ambos com a Suíça. Empatámos 1-1 lá, ganhámos 1-0 nas Antas. No fundo, cumprimos o nosso papel com a Suíça. Isto já é qualificação para o Mundial-94. O problema é que a Suíça nos baralhou as contas ao fazer três pontos em quatro possíveis com a Itália. Num grupo em que, à partida, quem passava éramos nós e a Itália, intromete-se a Suíça.

Essa fase de qualificação é quase toda embrulhada.

Nem me fale, ó Rui. Nas Antas, com a Itália, ainda nem sequer me sentei no banco de suplentes e já estamos a perder 1-0. Acabou 3-1. Mas, lá está, tínhamos de pontuar o mais possível com a Suíça para sonhar. E pontuámos. E sonhámos.

Lembro-me que lançou Abel Xavier no 1-1 com a Suíça.

Pois foi, o Abel.

O Abel Xavier jogava na 2.ª divisão, pelo Estrela. Como é que se arrisca assim?

Arriscar? Conheço o Abel desde os 14 anos, sabia perfeitamente das suas capacidades físicas, técnicas e táticas. Reconhecia-lhe valor desde o primeiro dia, quando chegou aos treinos da seleção de juvenis. A sua evolução foi meritória, foi campeão mundial sub20 em 1991 e era uma questão de tempo o salto para um grande. Acabou por ser o Benfica. Depois Itália, depois Alemanha, depois Inglaterra, nos dois grandes de Liverpool, depois Turquia. Enfim, o Abel tinha qualidades inatas. Era central de origem, adaptei-o a lateral. Ele faz esse jogo a lateral e é dele o cruzamento para o empate do Semedo.

Tenho esse golo bem fresco na memória.

A Suíça já tinha surpreendido a Itália, pelo que o nosso 1-1 na Suíça serviu para tornar o grupo de qualificação ainda mais confuso. Depois ganhámos 1-0 à Suíça, golo do João Vieira Pinto.

E o 5-0 à Escócia?

Claro que é um jogo memorável em que tudo nos correu bem. Nessa noite, o trio da frente constituído por Rui Barros, Futre e Cadete jogou como nunca. Entenderam-se de olhos fechados e acabou 5-0. Foi o fim da carreira do Andy Roxburgh, de quem sou muito amigo há anos e anos. Nunca me perdoou, ahahahahahahah. Nessa noite, chovia copiosamente em cima do Estádio da Luz. Só lá. Se fossemos a Cascais, nada. Se fossemos ao Barreiro, nada. Por cima da Luz, chovia a potes. Uma tormenta tal que até se pensou em adiar o jogo. Nada disso aconteceu e goleámos 5-0.

Ainda faltava aquela dupla jornada no fim da qualificação.

Pois, Estónia em casa e Itália fora. Se ganhássemos 4-0 à Estónia na Luz, só precisávamos de um empate em Milão. O Futre marca um golo espetacular mesmo no início, só que não conseguimos mais de três golos. Essa noite é particularmente aziaga, porque o antijogo dos estónios é mais que flagrante. Ao todo, diria uns 20 minutos a retardar lançamentos laterais, pontapés de baliza e faltas. E o árbitro participa naquela falta, só dá uns 20 segundos de descontos. Bom, adiante. Estávamos obrigados a ganhar em Milão. E perdemos 1-0, um golo fora-de-jogo do Dino Baggio, perto do fim. Atenção, Itália essa que chega à final desse Mundial dos EUA. Os Baresis, Costacurtas, Robertos Baggios e Donadonis desta vida.

Segue-se o quê?

Fui para a seleção dos EUA.

A sério?

Assinei por cinco anos, o objetivo era assumir depois do Mundial-98. Só que o presidente da federação Rothlisberger abdicou do cargo, por razões familiares, e pedi à federação para anular o contrato.

Então?

Quando não se é o treinador do presidente, fica tudo nas mãos de Deus, nem sequer na dos jogadores, porque escapam-se-nos muitas coisas. Além do mais, um treinador precisa de respeito e apoio do presidente.

Foi então para os Emirados Árabes Unidos?

Isso mesmo, uma boa experiência, mas não uma boa decisão.

Porquê?

Na altura, devia ser o único treinador principal de Portugal a trabalhar fora do país e ainda não tínhamos um nome com força no panorama dos treinadores. Eu, o Toni e a restante equipa técnica vivíamos no Dubai e a situação era agreste para nós. As pessoas olhavam para nós como que a dizer, ‘mas quem é um treinador português para trabalhar no mundo de treinadores brasileiros e franceses?’ Há uma história engraçada.

Conte.

O advogado da federação até me dizia ‘tu falas bem português, fala brasileiro’. Ahahahah. Naquele tempo, Portugal era mesmo só Eusébio e Amália.

Um ano nos Emirados e?

Decidimos, eu e o Toni, fazer umas férias sabáticas.

Assim, sem mais nem menos?

Já havia o convite da África do Sul, uma proposta apresentada numa das duas vezes em que eleito o treinador da seleção do resto do Mundo, pela FIFA. Aceitei a proposta e a ideia era a qualificação para o Mundial-2002.

O Carlos conseguiu?

Foi a única vez que a África do Sul conseguiu o apuramento. O outro Mundial que jogaram foi o de 2010, aquele que organizaram.

Eischhhhh, espetáculo.

Até joguei um CAN [Campeonato Africano das Nações] e tudo. Na última jornada da fase de grupos, ganhámos 3-1 ao Marrocos do Humberto Coelho e qualificámo-nos para os quartos-de-final. Fomos eliminados aí pelo Mali, acho.

Isso é quê, fevereiro?

Isso mesmo. O Mundial começa em junho e nós preparamo-nos para tudo: a lista de convocados, as viagens, os centros de estágios, os hotéis e essa logística toda. A mês e meio do Mundial, com tudo organizado por mim, um movimento menos agradável, muito pouco agradável mesmo, criou uma situação de rutura dentro da federação. Acusaram-me de decisões racistas. Enfim, as grandezas e misérias do ser humano. Isso deu-me uma possibilidade, abriu-me a porta inesquecível.

A sério, como?

O Nelson Mandela interferiu.

O Nelson Mandela?

O Nelson Mandela.

Uauuuuuuuu.

Ele interferiu e tentou pacificar, não queria que eu saísse da seleção. Chamou-me a casa dele, ouvi a sua mensagem, os seus desejos e recordo com muita clareza uma frase dele: ‘Eu não estive 27 anos na cadeia para me dizeres não a um sonho, não a um desejo, não a ver um africano branco e um africano negro na seleção sul-africana’. Ele sabia que eu tinha nascido em África, portanto a história do racismo ultrapassava todos os limites da decência.

Qual foi a história?

Simples: a pessoa que dirigiu esta campanha era dono de um clube e tinha em mente introduzir jogadores do seu clube na seleção para promovê-los e vendê-los. Conseguiu, dois dos seus três jogares transferiram-se.

E o Carlos?

Eu recusei-me, ninguém de fora pode interferir assim no meu trabalho. E o trabalho em questão era a convocatória para o Mundial-2002.

Abandonou a África do Sul nesse preciso instante?

Claro, não havia condições. Se nem o Mandela conseguiu pôr cobro à situação, está a ver.

E saiu a bem de Joanesburgo?

Ohhhhhh, muito bem. Tive gestos extraordinários, como o do capitão Bartlett, que chegou a dizer: ‘Se o Queiroz for embora, eu também saio’. Houve outros jogadores com posições bastantes firmes. No dia em que parti, o conselheiro de ministro da África do Sul ligou-me e apanhou-me no aeroporto. Trocámos umas palavras simpáticas. Mesmo nesse tempo agreste, guarda-se uma recordação.

Qual?

Como vivia na sede da federação, encontrava-me usualmente com alguns craques. Já falei do Bartlett, havia ainda McCarthy e Fortune. O Quinton Fortune, lembra-se?

Claro.

Pronto, ele jogava no Manchester United e ia vê-lo às vezes. Conheci aí o Alex Ferguson. Já viu como são as coisas? Começámos a falar e a conversa deu em amizade. Ainda hoje. Ainda por cima, temos um amigo em comum, compatriota do Alex: o Andy Roxburgh, o tal selecionador da Escócia na qualificação para o Mundial-94.

Com Alex Ferguson no Manchester United

 

Passado esse episódio na África do Sul, o Carlos volta para Portugal?

Certo, com Madaíl. Na altura, trabalhava com jogadores portugueses no United [Ronaldo e Nani] que foram decisivos para o meu regresso à seleção. Na altura, também é bom dizê-lo, tinha contrato para a posição de manager do United. Fui para a seleção portuguesa com o sonho de jogar um Mundial ao lado da terra onde nasci. E isso foi uma honra. Não estou nada arrependido, bem pelo contrário. Agora, sim é verdade, se pudesse voltar atrás, faria diferente em certas decisões.

Diga-me uma.

Olhe, aceitar trabalhar com pessoas de quem não estamos seguras do seu carácter. Devia ter aplicado uma máxima minha: ‘Em caso de dúvida, não há dúvida’. E a verdade é que hesitei. Quando assim é, quando não respeitamos os nossos valores, acabamos por pagar uma fatura cara.

É a vez do Irão.

A minha posição profissional e pessoal estava muito complicada, porque pairava no ar aquela suspensão de dois anos por uma coisa que não fiz. Aliás, provou-se no Tribunal Europeu e tudo, tudo mesmo, foi uma perfeita injustiça e montagem sem qualificação. Era para apanhar dois anos e, generosamente, um grupo de pessoas reduziu-me a pena para oito meses. Foram simpáticos. Num processo em que as mesmas pessoas que acusavam eram as mesmas que julgavam e condenavam, uma subtileza inacreditável numa sociedade que se diz moderna e democrática como a de Portugal, encontrei-me num beco sem saída.

Porquê?

Estava impedido de recorrer. Eu acuso-te, eu julgo-te, eu condeno-te e tem mais: não podes recorrer. Isso foi traumatizante. A única saída possível foi o Tribunal Europeu. Fui sozinho e ganhei a ação, tanto à ADOP como à FPF. Depois dessa decisão ser tomada, não me lembro de ver debates na televisão ou na rádio sobre o assunto, ao contrário do escândalo criado à volta do assunto na altura do processo instaurado pela ADOP. Enfim, perdi algumas oportunidades, tanto a nível de clubes como de seleções, algumas delas com grande dano pessoal. E apareceu o Irão. Quando lhe expliquei a situação da eventual suspensão, o presidente da federação só me disse: ‘Nós esperamos por si três, quatro, cinco ou seis meses’. Face a uma atitude tão firme e confiante, aceitei o convite e foram oito anos à frente do Irão.

Com Cristiano Ronaldo na seleção portuguesa

Teerão?

Fazia Teerão, Istambul e Dubai.

E que tal Teerão, do outro mundo ou...?

Quando se chega a países desconhecidos, pensamos sempre que vamos ver Marte. Só que o Irão era um país como os outros: as mães levam os filhos à escola, os pais vão de carro para o trabalho, há gente educada, amável. O tempo de criança, em que dividíamos o mundo entre índios e caubóis, ficou muito lá para trás. E essa é a sorte de ter visitado dezenas de países: há sempre coisas boas e coisas más. No Irão, muitas coisas boas. Só o facto de alguns jogadores ainda me chamarem de papá é do mais gratificante que há. Estão todos os jogadores no meu coração.

O Mehdi Taremi também?

Ahahahahah. Grande figura, tenho-o acompanhado no Rio Ave,

Que craque.

A pergunta que se coloca é como é que o Medhi passou despercebido tanto tempo, mesmo depois de ter jogado o Mundial-2018? Mistérios, já resolvidos.

Com a seleção do Irão

Agora é a Colômbia.

Já joguei uma Copa América e estamos a preparar-nos para outra, daqui a um ano, a jogar em casa, a meias com a Argentina. É uma seleção cheia de talento, com muita matéria-prima. O contacto com os líderes de balneário foi interessante, numa primeira fase do processo, que até foi promovida pelo Falcao com uma reunião conjunta em Roma. Juntaram-se os emigrantes, digamos assim, e falámos todos juntos. Escutámos problemas e inquietudes para fazer um plano de ação no futuro imediato e também longínquo.

O futuro imediato é já agora, Brasil-Colômbia em Miami. O que representa o Brasil para si?

Muita coisa. A minha primeira experiência com o Brasil foi em 1982. A seleção de Telé Santana treinou no Jamor antes de seguir viagem para Espanha e nós, eu, Jesualdo Ferreira e Mirandela da Costa, tínhamos meios tecnológicos que eles, brasileiros, desconheciam. Então eles quiseram fazer um trabalho conjunto e pediram-nos para partilhar informação sobre as seleção de Escócia e URSS, adversárias do Brasil na fase de grupos do Mundial-82. Assim foi.

Como assim?

Eram meios primários, com Betamax.

Cassetes de vídeo?

Isso mesmo.

E depois?

Falávamos com a equipa técnica, liderada pelo Telé, sobre este jogador, aquele sistema, aquela jogada estudada. Prevenir, no fundo. Entrar em campo a saber algumas manhas do adversário.

Isso é muito à frente.

Nããããõ. Muito à frente era estar ali a falar para os Zicos, os Sócrates, os Júniores, os Falcões e os Cerezos. Uns anos mais tarde, já estou em Manchester, e recebo a visita do Sócrates. O seu sonho era jogar em Inglaterra e, aos 40-e-tal ou até 50, cumpriu-o ao serviço de uma equipa dos distritais. No dia seguinte, tinha um recado da minha secretária do Manchester United a dizer que o Sócrates me tinha ligado a pedir para traduzir o que os jornais ingleses tinham escrito sobre ele, a propósito da estreia. Ahahahah.

Essa ajuda ao Brasil em 1982 é preciosa.

Caaaalma. A palavra ajuda não é mais correcta, soa a pretensioso. O que aconteceu foi que eles nos viram trabalhar e pediram-nos um trabalho de investigação sobre Escócia e URSS. As reuniões técnicas eram no Guincho, onde o Brasil estava hospedado. E aí aprendi uma lição valiosa sobre tecnologias.

Ai sim?

Por mais eficientes e interessantes que possam ser, há sempre uma entidade superior no futebol: o pé do jogador. E nisso o Brasil é rei. Essa seleção então nem se fala.

E mais do Brasil?

No Mundial-90, como consultor da FIFA, calhei de fazer os match reports do grupo do Brasil, com Suécia, Costa Rica e Escócia. Saí cedo, porque o Brasil foi eliminado pela Argentina nos oitavos-de-final, naquele jogo em que o Maradona finta uns dois ou três antes de passar para o Caniggia: 1-0.

E no Mundial-94?

Desde os tempos do mundo árabe, criei uma amizade com o Carlos Alberto Parreira e ele nem vai de modas: convida-me para acompanhar a preparação do Brasil em Los Gatos.

Assim?

Assim. Foi um privilégio imenso, maiúsculo. Eu ali no meio da futura seleção campeã mundial, com Romário, Bebeto, Dunga, até o Ronaldo fenómeno muito noviiiiiinho. Foi das coisas mais fechadas que vi, esse estágio. Foi de um rigor e disciplina impressionantes. Funcionava com um sistema de passes que tínhamos de assinar diariamente. Um dia, o Parreira esqueceu-se de assinar o meu passe e o segurança não me deixou passar. De todo. Tive de esperar pelo Parreira para dar início ao meu dia de trabalho, ahahahah. São experiências que nos enriquecem.

Ficou até ao fim?

Nunca poderia ir até ao fim, porque estava já a treinar o Sporting e a pré-época começava durante o Mundial. Ainda vi uns jogos, claro, e quis trazer um jogador.

Brasileiro?

Sim.

Para o Sporting?

Pois.

Quem?

Não posso dizer.

Nem 29 anos depois?

Nem 29 anos depois. Ahhhhhhhh. Não dá, Rui, não dá. Ahahahahah. Ainda tive esperança, sabe? Mas, pronto, já passou [nem me passa pela cabeça perguntar se é Ronaldo fenómeno].

Com a camisola da Colômbia

Brasil, finito?

Pelé.

Hein?

Trabalhei com o Pelé nos EUA. Quando fui consultor da federação e quase selecionador, passava alguns dias com o Pelé, que também trabalhava com a federação. Tínhamos reuniões formidáveis, em que o ouvia. Era das pessoas mais humildes que vi. Ele e o Carlos Alberto Torres, capitão da fabulosa seleção tricampeã mundial em 1970. Aliás, treinei o filho do Carlos Alberto. Chamava-se Alexandre e treinei-o no Japão.

Nagoya Grampus Eight?

Exactamente. O Carlos Alberto falava muito comigo nesse tempo e acabámos por criar uma amizade. Quando soube da sua morte, foi um choque. Admirava-o profundamente. Por aquilo que tinha sido como jogador, por aquilo que era como pai e por aquilo que representava como pessoa. Era um herói calmo, tranquilo e humilde. Humilde, humilde. O Alexandre é hoje scouter do Manchester United no Brasil. Voltando ao Pelé, só para rematar, houve um debate de ideias bastante interessante sobre o porquê de os EUA ainda não serem uma potência futebolística. E eu disse-lhe ‘há duas razões de peso’.

Quais?

O futebol não estava feito para os mais desfavorecidos, para os mais pobres. O futebol de lá tinha um custo. E havia o futebol Coca-Cola.

Coca-Cola?

Foi preciso esse o tom de Pelé, ahahahah. Se houvesse 17 milhões de praticantes masculinos e 10 milhões de praticantes femininos, eles faziam 27 milhões de pares de chuteiras. Eles valorizavam a quantidade e não qualidade. Quando assim é...

Obrigado, grande abraço e boa sorte para o jogo 200.

Obrigado.

E boa sorte para o 201, 202, 203...

Também obrigado, ahahahah.

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