«Jorge Jesus é um génio: desordenado, meio maluco, iluminado» - TVI

«Jorge Jesus é um génio: desordenado, meio maluco, iluminado»

Manuel Sérgio

Rui Miguel Tovar entrevista Manuel Sérgio, «O Filósofo» do treinador do Flamengo. Uma viagem pelos primeiros dias do futebol português, com passagem obrigatória pelo Brasil. Revelações e inconfidências de um pensador

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Rui Miguel Tovar está no Maisfutebol com a rubrica LOAD " " ENTER. Para ler todas as semanas e saborear conversas por vezes improváveis com as principais figuras do futebol. Já sabe, basta escrever LOAD " " ENTER para entrar neste mundo maravilhoso de Rui Miguel Tovar.

Campeão de inverno, Braga ou Porto? Tsss tsss, nada disso: Manuel Sérgio é o campeão de inverno, da primavera, do verão, do outono, de tudo e mais alguma coisa. Eis o professor com quase 87 anos de vida

Só para termos uma ideia da idade deste senhor, a nossa seleção acumula 624 jogos na história. Quando Manuel Sérgio nasce, Portugal só tem 30. Sim, 30. Aos 86 anos, quase 87 (Abril, aniversários mil), o professor escolhe o Hotel Continental para a entrevista. Ali mesmo ao lado da antiga RTP, na Avenida 5 de Outubro. Toda a gente do hotel o conhece e saúda-o com reverência, desde o cozinheiro até ao dono. Castiço, sempre. Cumprimenta todos com uma graça pelo meio e sai airosamente para o restaurante.

No outro dia, ouvi-o na RTP3. Falava do seu primeiro jogo ao vivo e a cores.

Benfica-Académica, final da Taça de Portugal de 1939. Nas Salésias, então o único relvado em Portugal.

Foi com quem?

À boleia do meu pai, que era guarda republicano.

E que tal esse jogo?

Só tinha seis anos, lembro-me da emoção de ir ao futebol e da grande balbúrdia da Académica no final do jogo. Acabou 4-3.

E depois?

Depois? Fui para casa.

A pé?

Morava a uns 500 metros.

Maravilha.

Nesse tempo, tínhamos um grande jogador.

Tínhamos?

O Belenenses, ora essa. Sou Belenenses.

Muito bem. Quem era o craque?

Mariano Amaro, estilo Rui Costa. O Perfeito Rodrigues, que jogava lá na frente, dizia-me sempre ‘mal arranco, nem olho para trás porque sei que o Mariano vai meter-me a bola à minha frente’. O Mariano era extraordinário. Fazia meio-campo com Amaro Gomes e Serafim. Fomos campeão nacionais em 1946.

Também viu o jogo desse título de campeão?

Em Elvas? Nem pensar. Ouvi pela rádio e fiquei à espera dos jogadores em Belém. Foi cá uma festa que nem lhe conto. Inesquecível. Como inesquecível foi também a estreia do Matateu.

Estava lá?

Estava, sim senhor. Quatro-três ao Sporting, o Matateu meteu dois golos. Mal acabou o jogo, o público levou-o em ombros para fora.

Do campo, diz?

Do estádio. O Matateu saiu do Restelo em ombros. Foi cá um dia. O Matateu era um fenómeno. Fora do campo, um crédulo. Dentro dele, um avançado imparável. Na grande área, digo-lhe, foi o maior. Recebia a bola, dava um toque para afastar-se do defesa e tinha um pontapé indefensável. Era golo pela certa. Que loucura.

E o Manuel Sérgio no meio dessa loucura.

A minha mãe tinha um medo de pânico de me perder; não me queria deixar ir para o meio da multidão. Só ia ao futebol com o meu pai em serviço.

O seu pai, que tal?

Chegou a Lisboa em 1920, um ano depois do nascimento do Belenenses. Veio de Chaves, serviço militar e tal. Era analfabeto, fez a terceira classe na Guarda Republicana.

E a sua mãe?

Era criada de servir, como se dizia antigamente. Boa gente, os meus pais, mas sem cultura. Sou assim uma espécie de milagre; nao havia um livro em casa, só o livro da missa. A minha mãe queria que eu fosse para padre, que era o safanço dos pobres. Entro num colégio para padres em Santarém, onde estou três anos.

E?

Expulsaram-me.

A sério?

Epá, não tinha jeito para aquilo. Só falava do Belenenses e da Amália Rodrigues. O meu mundo não era aquele.

Seguiu-se o quê?

Entrei em 1968 para o INEF [Instituto Nacional de Educação Física] e comecei a estudar a sério. Eu sei pouco, mas o que sei foi de estudar a sério.

E continuava a ir às Salésias?

Na altura já era Restelo. Foi a grande asneira do Belenenses. O Soares da Cunha, um grande salazarista, queria fazer do Belenenses uma grande equipa e faz-se o estádio, só que o Belenenses nunca teve massa associativa para encher aquilo. Gastámos aquilo que tínhamos e o que não tínhamos.

Compreendo. Ia ao Restelo, então?

Claro. Belenenses, sempre. Vi o primeiro jogo do Eusébio no Restelo. Acaba 1-1, acho. Marcam Peres e Eusébio. Às tantas, o Eusébio passa o meio-campo e atira uma bola que bate na trave e volta para ele. Ficou tudo palerma. O gajo era qualquer coisa. No caminho para casa, acompanhou-me o guarda-redes José Pereira. Até ele estava incrédulo. ‘Ò senhor Manel, já viu o coice do preto? Ele atirou cá uma brasa'.

...

Sabe quem via às vezes no Restelo?

Nem ideia.

O Jesus Correia. Ele ia ver o Belenenses. Um dia, isto é engraçado, estava eu na Direcção Geral dos Desportos e aparece-me o Peyroteo. De repente, também apareceu o Jesus Correia. Isso foi em 1975. Os dois começam a falar daquele 6-3 do Sporting em Madrid, no campo do Atlético Aviación, agora Atlético Madrid. É um jogo histórico, porque o Jesus Correia marca todos os seis golos do Sporting. Palavra puxa palavra e o Peyroteo diz-lhe ‘só marcaste cinco, o outro é meu, porque a bola ainda não tinha passado a linha quando a encostei para a baliza’.

Ahahahahah.

O Peyroteo era um calmeirão. Parado, um fenómeno. Em andamento, nem queria saber. Ele arrancava e mais ninguém o apanhava. Vi-o uma vez na Tapadinha, ganhou o Sporting ao Atlético por 3-0. O primeiro golo é do Jesus Correia, antes do primeiro minuto. Nem me tinha sentado, veja lá.

Cinco Violinos, portanto.

E o Travassos? Tinha cá um pontapé. O Artur Agostinho disse-me uma vez: ‘a melhor coisa do futebol é o remate do Travassos a 40 metros da baliza’. E era, de facto. A propósito do Travassos, dou-lhe o onze ideal da minha vida.

Chute.

Bento / João Pinto, Humberto Coelho, Ricardo Carvalho e Hilário / Figo, Coluna e Travassos / Matateu, Eusébio e Ronaldo

E viu todos?

Todos, todos.

Ficam de fora alguns ilustres, imagino. O Rogério Pipi, por exemplo.

O Rogério era de uma souplesse como nunca vi. Era um jogador circense. Que marcava golos atrás de golos. Outro jogador extraordinário era o Espírito Santo. Acredita que o vi bater o recorde nacional do salto em altura nas Salésias?

Acredito.

Ahahahah. Pois bem. Ele bate o recorde, 1,88 metros de altura, e depois entra em campo para jogar o Belenenses-Benfica. Tudo na mesma tarde.

Outros tempos.

Tinha um salto exemplar, o Espírito Santo. Mas o gajo mais elegante que vi a saltar foi o Artur Jorge, seguido de perto pelo José Águas. Esta é boa, um dia vi o Águas apanhar tanto do Feliciano. Atenção, o Feliciano era uma das torres de Belém e eleito um dos melhores centrais da Europa. Só que apanhou, para variar, um 9 muito tecnicista. Bem, nem imagina, o Águas apanhou tanta bardoada. Faz-me lembrar outra história, entre o Feliciano e o Peyroteo num Beleneses-Sporting. O Peyroteo queixou-se ao Mariano Amaro sobre o tratado do Feliciano e o Mariano Amaro, como capitão, foi dizer das boas ao Feliciano. Sabe o que lhe disse?

Diga.

'Continua assim, Feliciano'. Ahahahah. Esta sei bem porque o próprio Mariano Amaro contou-me. Costumávamos almoçar no Chagão, ali na Pinheiro Chagas. Quem também estava nesse almoço era o Acácio Rosa, figura ilustre do Belenenses.

Conheço-o bem, claro. Fez tudo e mais alguma coisa, até livros do Belenenses.

Nem mais. Foi o primeiro seleccionador do andebol de 11, é ele quem traduz as primeiras regras para o português. Um dia, Portugal vai ao Mundial do andebol de 11. No primeiro jogo, ao intervalo, já está 5-0. Há quem lhe pergunte, ‘ò Acácio, e agora?’ A resposta dele ainda hoje é célebre: ‘Agora é tudo ao molho e fé em Deus’.

[toca o telefone, Manuel Sérgio atende e diz de sua justiça ‘ò meu amigo, faço isso para si sem problema nenhum (...) lembra-se da frase do Fernando Pessoa: ‘merda, estou lúcido’ (....) fique descansado]

É só rir. Grandes história, grandes memórias.

Vi muita coisa, sabe? Em 1955, estava nas Salésias quando o Martins lixou-nos o campeonato, na recarga a um remate do Mokuna, o fura-redes. Três anos depois, estava em Alvalade, para ver o Brasil. Queria ver o Pelé, vi o Gaaaarrincha. Que monumento. Perguntaram ao Hilário se lhe tinham trocado os olhos, veja bem.

E a seleção nacional?

Lembro-me de um 3-0 à Suíça nas Salésias. Lembro-me do quintento ofensivo como se fosse hoje: Mourão, Alberto Gomes, Peyroteo, Pinga e Cruz. Também me lembro de um tempo em que a seleção era mais conhecida como Sport Lisboa e Araújo, porque jogavam 10 futebolistas de clubes lisboetas e o Araújo, do FC Porto. Que era um jogador muito bom. Em 1961, na Faculdade de Letras, eu tirei filosofia e o David Sequerra, história. O David era o seleccionador nacional dos juniores e Portugal recebeu o Europeu desse ano.

Ganhámos, não foi?

Quatro-zero à Polónia, na final. Quatro golos do Serafim. Embora estivéssemos a tirar cursos diferentes, tínhamos uma disciplina em comum: teoria da história. Apanhei o David Sequerra no dia em que ele ia comunicar os convocados à comunicação social e falei-he do Fernando Peres.

Do Belenenses, suponho.

Ora bem, vê como sabe. Ele já o conhecia, óbvio, e disse-me que havia um ponta esquerda ainda melhor. Chamava-se Simões, jogava no Benfica. Encaixei bem, ahahahah. Sabe, dei aulas de francês ao Peres.

Fantástico. O seleccionador era o David Sequerra, o treinador de campo era o Pedroto, certo?

Nem mais. Conheci bem o Pedroto, cheguei a acompanhá-lo em estágios, a pedido dele. Quer dizer, não estavávamos no mesmo hoitel, ficávamos perto um do outro. Eu defendia a tese do racionalismo, criado no século XVIII. Há um livro muito especial a esse propósito, chama-se ‘O Nascimento da Clínica’. Li-o e fiquei com umas ideias, que as defendia em conversas privadas.

Quais ideias?

Não há educação física, há é o movimento de pessoas no movimento da transcendência. Futebolisticamente falando, qual é o tipo de homem que quero para este treino? A periodização táctica é antropológica e táctica, depende dos homens. Puro e duro, sabe? O treino depende do homem. O jogo também.

Estou a ver.

Uma vez, vi o treinador italiano Rino Martini, do Belenenses, com uma barra de exercícios no meio-campo. Para quê? O treino tem de ser igual ao jogo. Meter obstáculos só para actividade física de nada vale.

É aquela máxima

Não há jogos, há pessoas que jogam. Não há chutos, há pessoas que chutam. Ou seja, o treino é da pessoa, não é do físico e o Pedroto ficou agradado com essa perspectiva. E descobriu o paradigma. Só que naquele tempo só o ex-jogador é que podia treinar. Não era um marreco qualquer que ia dizer que o treino estava errado. Num congresso de medicina em Espinho, ano 1979, o Pedroto apresentou-me a sua filha. Estava ela no segundo ano. Lembro-me bem. Quer dizer, até julgava que era 1981, ela corrigiu-me uma vez. Ahahahah. Seja 1979.

O Pedroto é só o início. Seguiram-se outros treinadores.

O meu amigo está certo. A minha turma era Mourinho, Peseiro. Também dei aulas ao Rui Vitória. O Jesualdo, por exemplo. Conheci o Jesualdo como aluno no INEF, já sou velho para caraças.

Quanto anos?

Quase 87, com mulher, três filhos, quatro netos e dois bisnetos.

Espectáculooooo. Desses treinadores todos com quem conviveu, fica o quê?

O Pedroto era uma figura curiosa, um tipo muito racional. O Mourinho era um estudioso. Depois o Jesus. Conheci-o no Belenenses, quando ele treinava lá. Costumava almoçar no estádio com o Homero Serpa e o Jesus pediu autorização para participar. Ficou a amizade para sempre. O génio é o desordenado, o meio maluco, o iluminado. É aquele que antecipa e o Jesus antecipava tudo nos treinos. Percebi isso no Benfica, quando o via em ação. Há que ter olho e há que ter visão. O Jesus junta isso na perfeição, daí o sucesso na carreira. Esta frase fez-me lembrar uma cena com o Pietra, ainda no Belenenses. Mal o vi jogar, disse ‘este miúdo não engana’. E não enganou ninguém: do Belenenses para o Benfica, do Benfica para a seleção.

Benfica, bem lembrado. E aquele futebol dos anos 60?

Irrepetível. Era uma equipa verdadeiramente homogénea, com um génio (Eusébio) e um quase génio (Coluna), fora os outros extraordinários. Nenhum jogador deste Benfica entrava nesse Benfica. Nenhum. Digam o quiserem. Eram bons tempos. Os do futebol e também do hóquei. Se bem que aqui era diferente, porque a competitividade era reduzida. Havia duas ou três equipas e Portugal era a melhor de todas. Sei a equipa de cor e salteado. Elísio, Raio, Sidónio, Correia dos Santos, Jesus Correia e Olivério (depois Edgar, do Sintra). Ouvíamos os relatos na rádio, através do Amadeu José de Freitas, o pai do José Manuel.

Que histórias.

E ainda nem falei do Brasil.

Como assim?

Dei aulas no Brasil, em Campinas, São Paulo.

Quando?

Em 1987 e 1988, na Unicamp. Vieram buscar professores à Europa e eu fui como professor de educação física. Conheço o Brasil de norte a sul, de Fortaleza até à Foz de Iguaçu. Assisti ao nascimento do PT e fui há pouco à festa dos 30 anos: quando vou entrar, metem-me uma pulseira vermelha. Nos discursos dizem que não há classes neste partido. No fim dizem que há comida lá em baixo: couratos, torresmos, pão e cerveja. Eu, como convidado, fui por um corredor e entrei numa sala diferente, e havia de tudo, até caviar, champanhe. Um luxo, tudo o que meu amigo quisesse.

E futebol no Brasil?

Ia ao futebol todos os domingos. Ou via o Guarani, na 1.ª divisão, ou via o Ponte Preta, na 2.ª. Isto em Campinas. Conheci figuras como Telé Santana, Careca, Müller. E o Sócrates que era todo PT. Ele aplicava-lhe na cerveja que não era brincadeira e era um gajo fora de série, com uma cultura anormal para um futebolista. Também convivi com o Rivellino. Vi um Brasil-Uruguai em Porto Alegre. Sabe o que era mais espantoso no Brasil?

O quê?

O futebol de várzea. Vêem-se génios da bola. Autênticos génios. Digo-lhe.

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