«O Jordão dizia-me: 'Só gosto de um uísque e bebo-o com colher de chá'» - TVI

«O Jordão dizia-me: 'Só gosto de um uísque e bebo-o com colher de chá'»

Fidalgo e Jordão

Rui Miguel Tovar à conversa com Fidalgo a recordar Rui Jordão. Jogaram juntos na seleção, no Benfica e no Sporting. E qualquer pretexto é bom para o recordar

Rui Miguel Tovar está no Maisfutebol com a rubrica LOAD " " ENTER. Para ler todas as semanas e saborear conversas por vezes improváveis com as principais figuras do futebol. Já sabe, basta escrever LOAD " " ENTER para entrar neste mundo maravilhoso de Rui Miguel Tovar.

O programa da 16.ª jornada inclui o clássico no Bonfim entre Vitória e Sporting, os dois últimos clubes da carreira de Jordão. O jogo está em dúvida, por causa do surto de gripe que dizimou o plantel sadino, mas Jordão é Jordão e não vamos perder uma oportunidade para falar sobre ele.  

Rui Manuel Trindade Jordão. Quem o conhece de ginjeira? Só alguns, como Manuel Fernandes, José Eduardo, Carlos Xavier, Mário Jorge e mais uns quantos. Quem joga com ele na seleção portuguesa, no Benfica, no Sporting e ainda sofre um golo seu? Só um, António Fidalgo e mais nenhum. Vai daí, apanha-se o comboio para Espinho. À saída da estação, fisgamos António Fidalgo. Segue-se um passeio à beira-mar por uns bons metros. Às tantas, viramos à esquerda, passamos um quarteirão e entramos num restaurante mágico de peixe: o Casa Locas. Soa a pleonasmo. O atendimento, dez estrelas (em cinco). A sopa de peixe, outros dez. O peixe grelhado na grelha, mais dez. E a conversa? É ler e pontuar.

O tema é Jordão.

Das poucas vezes em que me caíram as lágrimas aos olhos, sabes? Quando ouvi a notícia, fiquei paralisado. Nem sou nada assim, vejo-me pragmático em muitas situações. Menos nesta. O Rui foi um grande companheiro. Não gostava de grandes aglomerados nem de confusão, muito menos de entrevistas e tal. Mas era completamente diferente connosco, dentro e fora do balneário. Sempre amigo, a rir, com um humor completamente fino. Lembro-me de o ouvir contar anedotas sobre angolanos. Estás a imaginar um alentejano a contar anedotas dos alentejanos? É a mesma coisa. O Rui é de Benguela, ahahahah.

Conheceste-o quando?

No primeiro dia de trabalhos nos juniores do Benfica. O Rui vinha de Benguela, como o Franque, agora a trabalhar no Sindicato dos Jogadores, e o Soares, que passou depois no Belenenses, Nacional e Estoril.

E tu?

Vinha daqui, do Espinho. Chegámos no mesmo dia e até ficámos lado a lado. Calhou.

Quem era o treinador?

O Ângelo.

O Ângelo, campeão europeu?

Esse mesmo.

Dizem-me que o feitio dele era tramado como jogador.

E como treinador também. Detestava voar e até gritava connosco dentro do avião. Ahahahah. A gente dizia ‘isto está a tremer muito’ e ele ‘calem-se, calem-se todos’. Se alguém se levantasse em pleno voo, ele gritava-lhe ‘senta-te, senta-te já’.

Isso é em que ano?

Época 1970-71. Ganhámos a Taça da AF Lisboa ao Sporting e perdemos a final do campeonato nacional de juniores para o FC Porto, em Coimbra. O Rui é suplente na primeira e titular na segunda.

E tu?

Joguei as duas finais. Na segunda, saí lesionado durante o prolongamento. Num salto, houve um choque, levei com o cotovelo no olho e não via nada.

E então?

Foi o Rachão para a baliza.

O Rachão, José Rachão?

Ahahah, esse mesmo. Era o capitão de equipa.

Onde é que moravas nessa altura?

Quando cheguei de Espinho, fui para o Lar do Jogador. Depois mudei-me para uma pensão, junto ao Hospital da Estefânia. Aí até me dava mais com os jogadores do Sporting, como Damas, Laranjeira, Yazalde. O ponto de encontro era um bar, tipo pub, que tinha uma pista de automóveis. Rally 1969, acho, era o nome do jogo. Passávamos a tarde a jogar.

...

Depois, há um dia, em que nos encontramos na rua, eu e o Rui. Conversa para aqui, conversa para ali, ele convida-me para morar na casa dele. Salvo seja. A casa era de uma mulher, que tinha quatro quartos. Dois estavam ocupados, por Jordão e Nando. Os outros dois estavam vazios. Ele perguntou-me se queria um deles. Disse-lhe que sim e passei a viver com eles. Depois o quarteto completou-se com o Joaquim Rocha.

Do Sporting, não era?

Isso mesmo. Um brasileiro giríssimo, só sabia rir e divertir-se. Vivia a vida com um sorriso nos lábios, fosse a jogar no Sporting ou a trabalhar num hotel em Lagos. Às vezes, passava férias no Algarve e ia ter com ele para irmos à pesca nas arribas, ali em Aljezur.

E com o Jordão, foste à pesca?

Nããããããão. Melhor ainda.

Ah sim?

Uma lembrança inesquecível: estava ele de férias em Portugal naquele período do Saragoça. Viu-me na Linha e convidou-me para ir a casa dele.

E?

Uma televisão a cores. Uauuuu. E ainda...

E ainda...

Uma máquina onde se metiam cartuchos.

Um vídeo?

Nem maaaaais. Meu Deus, isso foi em 1977 ou coisa que o valha.

Isso já é um tempo em que cada um vivia na sua casa?

Exacto. Naquela casa na Estefânia, vivemos uns dois anos. Tinha sempre piada, porque dávamo-nos bem e jantávamos juntos. Agora tinha muito mais piada nos dias de jogo nas reservas. Porque eu e o Rui jogávamos no Benfica, o Nando e o Joaquim Rocha no Sporting. Acabava o dérbi, fosse em Alvalade ou na Luz, e dividíamos o táxi. Era do caraças. Quando cada um seguiu o seu caminho, o Rui foi para Oeiras e eu para a Venda Nova, onde conheci o Jesus, que tinha subido aos seniores do Sporting.

E vocês subiram aos seniores do Benfica?

Só o Rui e eu é que subimos. O Rachão, por exemplo, foi emprestado.

E que tal?

Eu no banco, o Rui no onze. Ahahahah. Lembro-me perfeitamente de uma noite gloriosa com o Feyenoord, em que o Rui marca dois ou três golos e ainda só tinha 20 anos. Era um fenómeno. Em tudo.

Em tudo, como?

Na roupa.

Na roupa?

Uma vez, já no Sporting, fomos estagiar aos EUA no final da época. Estamos todos no aeroporto e, de repente, chega o Jordão de fato e ténis brancos. E nós todos de boca aberta. De ténis brancos, já viste isto? Muito à frente. Por falar em branco, o Rui apresentou-me a casa dele em Oeiras e já aí era diferente das demais: toda pintada de branco por dentro. Resumindo: ele gostava do que era bom, com qualidade. Nunca mais me esquecerei: um dia, comprei um carro, um Triumph, e mostrei-o ao Rui.

E que tal?

‘Isso parece uma caixa de fósforos’ foi a resposta dele. Desanimou-me por completo, ahahahahah. Ele conseguia ser desconcertante pela frontalidade nas respostas. Às vezes, alguém lhe dizia vamos fazer isto ou aquilo e o ‘não’ do Rui era definitivo. Era aquele ‘não’ em que ninguém o podia demover. Ninguém, a não ser o Manel [Manuel Fernandes].

Se fosse o Manel?

Se fosse o Manel, o Rui ouvia-o e lá mudava de opinião. A última vez que o vi foi num jantar em Matosinhos, com Virgílio, Oliveira, Festas, entre outros. Quando soube que o Rui ia, perguntei ao Manel como era possível e o Manel: ‘Vamos juntos, de comboio’. Ahahahahah.

Jordão: do Benfica ao Sporting, tantas memórias
Jordão: do Benfica ao Sporting, tantas memórias

E dentro do balneário?

O Rui? O mesmo de sempre. Não era daqueles que nos recebia de braços abertos, mas gostava de observar, conhecer e só depois abrir-se. O José Eduardo, que lhe partiu a perna num famoso jogo entre Famalicão e Sporting, chegou ao Sporting e os primeiros tempos foram de comunicação reduzida. Com o tempo, começaram a falar bem e o José Eduardo terá sido uma das últimas pessoas a ver o Rui, já no hospital. O Rui era assim: se entrasses no seu círculo, era amigo para a vida. Era dono de uma personalidade vincada e ficava triste quando ouvia dizer que ele era antipático. Nada mais errado, embora percebesse essa declaração de um alguém qualquer de fora.

E os golos do Jordão?

Sabes, quando me perguntas por ele, lembro-me muito mais do Rui do que do Jordão. As cenas do dia a dia marcam-me mais do que os golos ou as jogadas. Falei-te há pouco dos golos ao Feyenoord. Também me lembro do que ele correu no jogo do título de campeão do Sporting em 1980, com a União de Leiria. Todo ele era alegria e vivacidade. Em campo e em forma, ninguém o parava. Isso viu-se na meia-final com a França, em Marselha. Agora, perguntas-me por ele, e a minha memória vai para o outro lado, o social.

Por exemplo?

Conheces o bar 10-A?

Ali na Rio de Janeiro, em Lisboa?

Exacto.

Já ouvi histórias.

Era o bar do Rui e do Artur Correia, o ruço. Juntavam-se lá muitos jogadores e até dirigentes, antes e depois dos jogos. O Rui, sei bem, não era de beber álcool. Até aí era requintado. Um dia, desafiei-o para um copo de uísque e ele recusou. Meti-me com ele, sabes qual foi a sua resposta?

Nem ideia.

‘Só gosto de um uísque’. Não me lembro agora do nome, sei que era um de 30 anos. E dizia-me ele, muito solene: ‘E bebo-o com uma colher de chá’. Ahahahahah. Isto é o Rui. Outra engraçada: dividíamos o quarto em alguns estágios. Ele nunca saía de lá, ficava a ler, a pensar ou a ver televisão, enquanto eu descia para o átrio ou isso. Mesmo quando havia jogos internacionais na televisão, o Rui recusava-se a ver. Não queria de todo. Mesmo. ‘Ó jordas, ‘bora lá ver o jogo’ e ele nada.

Jogaste com ele no Benfica e no Sporting

[interrompe sem demoras] e na selecção de juniores. Fomos à final do Europeu-1971, na República Checa, então Checoslováquia. Ele foi eleito o melhor avançado e eu o melhor guarda-redes. Eliminámos a RDA na meia-final, com um golo do Rui [2-1], e perdemos a final com a Inglaterra. Aos 15 minutos, já estava 2-0. Eles tinham um avançado chamado Eastoe que era qualquer coisa. Marcou-nos dois ou três golos [3-0].

E o Jordão também te marcou um golo.

Ah pois fooooooi. Estava eu no Salgueiros, não era?

Ya, isso mesmo.

Foi de penálti, acho. Penálti repetido. Ai não, não, esquece. Esse do penálti repetido foi um do Nené na Luz, defendia eu a baliza do Braga. Desse golo do Rui ao Salgueiros já nem me lembro. Sei que era o treinador do Salgueiros.

Guarda-redes-treinador?

Bem bom, escapámos à descida de divisão na última jornada. Ganhámos 1-0 ao Boavista, em 1984. Golo do Penteado.

Foste campeão português pelo Benfica e Sporting com o Jordão?

Correcto e afirmativo. Esqueci-me de dizer há pouco, quando falava do jogo da festa do título do Sporting em 1980. O que demorei a chegar ao estádio.

Então?

Cada um ia por si e eu estacionei o carro ainda longe do estádio. Fui a pé até ao balneário, foi o meu aquecimento.

Ahahahah, a sério?

A sério, mesmo. Tenho saudades desses tempos. Ou melhor, tenho saudades desses ambientes. Do futebol do piquenique, do garrafão de vinho, da descontração entre nós, os jogadores. Quando começo a pensar que os jogadores de Benfica e Sporting dividiam o mesmo café, está tudo dito. Era ali na Estefânia, na Praça do Chile. Era magnífico, o convívio. Claro, havia momentos de tensão. O Dinis e o Malta da Silva eram amigos e nem se podiam ver na véspera do dérbi, até porque o Dinis era extremo-esquerdo do Sporting e o Malta da Silva o lateral-direito do Benfica. É que nem se falavam. Ponto. Nem aperto de mão nem nada. De resto, eram amigos e davam-se bem.

E o Rui, frequentava esses espaços?

Claro, íamos todos. Era convívio saudável. O Rui tinha outra particularidade: quando encontrava um restaurante angolano, dizia-me sempre porque sabia do meu interesse pela comida do país dele, sobretudo o funge. Então lá íamos. O primeiro de todos foi ali perto do Fórum Picoas, nunca mais me esqueço.

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