«O Sócrates organizou um Carnaval de três dias em Florença» - TVI

«O Sócrates organizou um Carnaval de três dias em Florença»

Sócrates

Rui Miguel Tovar entrevista José Trajano, jornalista brasileiro cúmplice das glórias da «canarinha» dos anos 70 e 80. Venha daí saber mais do «Doutor», do Zico e de Cerezo

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Rui Miguel Tovar está no Maisfutebol com a rubrica LOAD " " ENTER. Para ler todas as semanas e saborear conversas por vezes improváveis com as principais figuras do futebol. Já sabe, basta escrever LOAD " " ENTER para entrar neste mundo maravilhoso de Rui Miguel Tovar.

Ponto prévio: baixámos ligeiramente a idade do nosso entrevistado de uma semana para a outra. Dos 86 anos de Manuel Sérgio para os 73 de José Trajano. Quem? José Trajano, carioca de nascimento, cidadão do mundo por natureza. O nosso encontro é sui generis, ali na Avenida Guerra Junqueiro, perto do Técnico. O obreiro do encontro chama Carlos Moura-Carvalho. Junta-nos por carolice. Tão-só carolice. Conhece Trajano de ginjeira e entende que encaixamos bem. Surge o convite por email para um get together ao fim da tarde na charmosa Mercearia Criativa.

Primeiiiiiiiiiros. Eu, claro. Moro a 400 metros. De Trajano nem ai nem ui, muito menos oi. Às tantas, lá aparece com o ar mais porreiro do universo, cheio de pinta. Senta-se à cabeceira da mesa e fala da confusão com o Uber: ‘escrevi Rua da Junqueira em vez de Guerra Junqueiro, daí a confusão’. A conversa decorre. E discorre. Há vinho. E ostras. Tudo à grande e à luso-brasileira. A conversa pipoca até dizer chega. É alto astral, o Trajano. Gente fina, jornalista desde 1963 e um dos criadores do canal televisivo ESPN Brasil em 1995. Génio e figura, dois-em-um improvável na Guerra Junqueiro.

Passam-se uns dias e a vontade de o entrevistar é mais que óbvia. Vai daí, ligo-lhe por whatsapp. É um regabofe de 29 minutos e tal.

José Trajano?

Pois não?

Daqui Rui Miguel Tovar, daquele dia em Lisboa na Mercearia Criativa com o Carlos.

Claro. Tudo bom, Rui?

Tudo, e por aí?

Tudo legal. Chuta.

Quero falar um pouco com o José sobre a sua vida, pode ser?

‘Vamo’ lá.

Já conhecia Portugal?

A minha primeira vez aí foi em 1968. Fui de navio, o Transatlântico Júlio César, se não estou em erro. Atracou em Lisboa e fomos o resto do caminho de ônibus.

Qual caminho?

Até Itália.

Puxa vida, bela viagem.

Ééééé, foi uma excursão de um mês e meio. Voltámos para o Brasil desde Itália.

Embarcou nessa viagem a que propósito?

Olha, estava apaixonado por uma moça que ia fazer essa viagem. Então fui atrás dela.

E?

Não deu em nada. É o tema principal do meu primeiro livro, “Procurando Mônica” [2014]. Na altura, já trabalhava no Jornal do Brasil e consegui tirar uma licença.

E que tal o grupo da excursão?

Muita juventude, muita bagunça, só queríamos farra. A tal ponto que fui preso.

Oi?

Quando chegámos a Itália, fomos a um local chamado Cortina d’Ampezzo, uma estância de esqui. Sabe como é, passa-se o dia a esquiar e depois jantamos, bebemos e dançamos até ao dia seguinte. Aí, numa noite, houve uma briga dentro da boite do hotel. Eu, na verdade, nem briguei. Só entrei para separar, mas acabei por ser preso.

Preso?

É um negócio meio complicado. Da briga resultaram 11 presos. Ficámos retidos em Belluno, uma cidade perto dessa estância.

Por quanto tempo?

Uma semana.

A sério?

Não é mentira, não. Fui preso porque tirei a minha camisola, que era uma Lacoste de sonho.

Que coisa.

Tudo se resolveu e voltámos para o Brasil.

E Lisboa?

O primeiro contacto impressionou-me muito, se bem que era um Portugal mais complicado, salazarista.

E depois disso?

Já fui tantas vezes que nem me lembro quantos. Nos últimos quatro anos, fui seguido.

Vai haver penta este ano?

Ahahaha. Vaaaaai, claro. Em Setembro, quem sabe?

Do que se lembra de 1968 até hoje?

De tanta coisa. Do Tejo, dos restaurantes, dos bares. De Sintra, do Alentejo, do Algarve, do Porto. Ainda falta muito para conhecer.

Alguma vez se cruzou em entrevista ou lazer com um craque português?

Tinha uma foto, acho que perdi, com o Vicente. Na altura, era tido como o melhor marcador do Pelé. Tinha uma foto com ele num hotel em Copacabana.

O José é carioca?

Carioca, sim. Mas já morei um pouco por todo o lado. No Paraná, em Londrina. Em São Paulo. Aliás, sou cidadão honorário paulistano, título entregue na câmara dos vereadores. Fora do Brasil, morei em Florença e Roma.

Florença, bem bom.

Morei com o Sócrates.

O Sócrates, Sócrates?

O Sócrates, o Doutor. Morei nove meses com ele.

Nove meses é uma gravidez.

Ahahahah, tem razão. Foi uma gravidez, então.

Que sonho. Ou...?

Foram nove meses muito intensos, muito divertidos e também tristes.

Então porquê?

Porque o Sócrates não gostava de estar longe do Brasil, na época um país muito conturbado com as “Diretas Já”. Não estava satisfeito por estar em Itália, por jogar na Fiorentina. Depois, Florença é uma cidade muito culta, muito elitista. É mais fácil para o brasileiro viver em Roma ou Nápoles. Resumindo, o Sócrates não estava bem.

Vi-o a jogar?

Tantas e tantas vezes. Em Bérgamo, com a Atalanta. Em Milão. Em Roma. Acabei virando tiffosi viola.

Imagino o stress com ele nas ruas de Florença?

Sabe uma coisa: em determinado momento, ele já não saía muito. Quando se é muito conhecido, não se pode andar tranquilo na rua, com pedidos para fotografia e tudo o mais. Então o Sócrates começou a criar o ambiente ideal para passar o tempo em casa: organizava jogos de póquer, organizava grandes almoços, organizava jantares com amigos brasileiros e/ou italianos. Uma vez, ele até organizou um Carnaval de três dias.

Nããããããão.

Sim, sim. Apareceram lá o Zico, que jogava na Udinese. O Júnior, que era do Torino. E o Cerezo, da Sampdoria. Todos eles, acompanhados pelas respectivas mulheres e filhos, se hospedaram num hotel perto da casa do Sócrates e foram lá os três dias. Havia de tudo. Tinha comida, tinha música, tinha diversão, tinha barril de chope.

E os jogadores da Fiorentina?

Também foram, claro. No primeiro dia, todos eles apareceram de terno e gravata. O Sócrates foi buscar uma tesoura e cortava-lhes a gravata, sem mais nem menos. ‘Quem vem para o Carnaval de terno e gravata?’, questionava-se ele.

Ahahahahaha.

O Antognoni, sabe?

O mítico número 10?

Esse mesmo. O Antognoni se ajoelhou a pedir por tudo que o Sócrates não cortasse a gravata ao meio porque tinha sido um presente da mãe e tal.

Uyyyyy.

Não houve jeito, o Sócrates cortou a gravata na mesma. Fez isso também com o Galli, goleiro da Itália no Mundial-86. Com o Passarella, capitão da Argentina campeã mundial em 1986. Com o Pulici, um centroavante. Com todos.

E o José lá no meio?

Estava desempregado, fazendo freelancer para a revista Placar e alguns vídeos para a Bandeirantes. Tinha-me separado e pedi demissão como editor da Folha de São Paulo para refrescar a cabeça.

É jornalista desde quando, mesmo?

Desde os tempos em que não concluí os estudos.

Já somos dois.

Grande dupla. Entrei no Jornal do Brasil aos 16 anos. Era o mais novo, hoje sou dos mais velhos. Durante anos e anos, fui só da imprensa escrita, fosse jornais ou revistas. Só depois virei um sujeito da televisão. Fui editor na TV Globo e director de esportes na Bandeirantes. Depois comecei a fazer comentário do campeonato alemão, uma inovação à época, e apresentei o programa “Cartão Verde” na TV Cultura. Era uma mesa redonda, como também se fazia na Gazeta.

Vida cheia.

Em 1969, estava atrás da baliza no golo mil do Pelé. Um ano depois, vi o  Brasil virar tricampeão só com vitórias. Há tanta mas tanta coisa. A minha faculdade foi conviver com gente mais velha que me tratava como um irmão mais novo.

Imagino. Deve ter bebido da experiência deles.

E não só, ahahahahah. Bebi também muito com eles. Aprendi a beber nos bares. Naquela época, fumava-se dentro da redacção e ficávamos madrugada dentro nos bares. Era outro tipo de jornalismo, mais romântico. Hoje você entra num jornal e as pessoas já não conversam entre eles, ficam a olhar para o monitor. É um silêncio absurdo, esquisito. Não sou um cara saudosista o tempo todo, só às vezes.

E a ESPN Brasil?

Isso foi anos anos 90. Eu e um pequeno grupo de companheiros criámos o canal, no peito e na raça. Fiquei como director e comentarista, uns 20 e poucos anos. Depois, deixei de ser director e continuei como comentarista. Há três anos, romperam o meu contrato e saí de vez.

Na boa?

Cada um fala o seu negócio. Na minha opinião, fui sacaneado por motivos políticos, porque estava contra o impecheament da dilma, contra o pessoal da direita, participava de comicios e passeatas. Falava disso abertamente.

Há pouco falou do Zico.

O Zico ia ver treinos e jogos do seu irmão mais velho, o Edu.

Onde?

No América, à frente da minha casa.

O América do Rio?

Isso mesmo. O Zico fez um jogo no time infantil e foi logo para o Flamengo. Agora o Edu, cara, o Edu foi o maior craque do América. Era show de bola. O Antunes era outro irmão deles, também do América. E falta o Nando, que nunca chegou a ser titular na equipa principal, só nos aspirantes. Foi perseguido politicamente em todo o lado, até em Portugal. Se for ao google e juntar Nando e Portugal, vai encontrar qualquer coisa.

Estou a ver, sim.

Ele jogou aí, não sei bem onde.

Fala aqui num artigo do Marco Vaza, no Público, em Belenenses.

Belenenses. Gostava muito do Belenenses, mas era agora ficou Belenenses de um jeito e Belenenses do outro jeito. Ficou esquisito. Gostava do Belenenses pelo estádio.

O Restelo?

O Restelo é o mais bonito do mundo. A vista para o Tejo é qualquer coisa de divinal. E o Nando esteve lá. Outro dia, vi o Nando num jogo de amigos do Lula da Silva e Chico Buarque vs MST (Movimento dos Sem Terra).

E jogou bem?

Jogou, tem uma barriga de chope. Enorme.

E a sua?

Menor que a dele.

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