«Os racistas atiraram-te fruta? Então traz-me duas peras e uma banana» - TVI

«Os racistas atiraram-te fruta? Então traz-me duas peras e uma banana»

Viv Anderson (AP)

Rui Miguel Tovar entrevista Viv Anderson, o primeiro negro a jogar pela seleção de Inglaterra

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Rui Miguel Tovar está no Maisfutebol com a rubrica LOAD " " ENTER. Para ler todas as semanas e saborear conversas por vezes improváveis com as principais figuras do futebol. Já sabe, basta escrever LOAD " " ENTER para entrar neste mundo maravilhoso de Rui Miguel Tovar.

First things first.

Nascido em Folkestone a 28 Abril 1888, Walter Tull é filho de um carpinteiro dos Barbados e de uma empregada inglesa. Aos nove anos de idade, os seus pais morrem e é recambiado para um orfanato, na companhia do irmão Edward, em Bethnal Green. Se Edward é adoptado por uma família escocesa e mais tarde torna-se dentista, Walter mantém-se órfão até idade adulta. Por isso mesmo, é jogador e capitão da equipa de futebol em Bethnal Green. Em 1908, com 20 anos de idade, ganha um lugar no Clapton FC. Menos de três meses depois, já é titular, ganha três troféus (a Taça Amadora da Federação Inglesa, a Taça Amadora de Londres e a Taça de Londres) e é o jogador da semana para o jornal Football Star, em Março 1909. Assina pelo Tottenham, onde se consagra como primeiro negro a marcar um golo na liga inglesa.

O problema é ao sétimo jogo, em Bristol, onde os adeptos da casa insultam-no gravemente. Escuro é o impropério mais «simpático» e os jornalistas condenam este acto. Um deles chama o ataque de cobarde: «a linguagem é mais baixa que Billingsgate», numa alusão ao mercado do peixe em Bristol. Um outro escreve com alma e coração: «Deixem-me dizer-vos, ó hooligans de Bristol City, que Tull é tão limpo de cabeça e de método como qualquer homem branco que vos sirva de modelo no futebol profissional ou amador. Em habilidade, Tull é o melhor avançado da liga.»

O Tottenham afasta Tull, com medo de futuras confusões nos jogos fora, iguais às de Bristol, e Walter não se preocupa em jogar apenas nas reservas. Afinal, o orfanato dera-lhe uma bagagem para aguentar estes episódios sem sentido. Em Outubro 1911, o Northampton Town contrata Tull e este marca uma época de sucesso (nove golos em 111 partidas), ao lado de Herbert Chapman, o treinador de equipa, mais tarde conhecido como o mestre da táctica pelos cinco títulos de campeão inglês no Arsenal dos anos 20.

Em 1914, o Rangers contacta Tull no sentido de lhe comprar o passe. O avançado número 9 do Northampton aceita a proposta para viver em Glasgow, na mesma cidade que o irmão Edward. Tal nunca chega a acontecer porque rebenta a 1.ª Guerra Mundial e Walter Tull inscreve-se como soldado. O seu pedido é aceite e é o primeiro oficial negro no exército britânico numa altura em que as leis são explícitas e racistas («nenhum negro ou pessoa de cor»). Depressa sobe na hierarquia militar. Chega a segundo tenente, admirado por todos, e entra em seis grandes batalhas como líder do batalhão vencedor. Luta em França, na Escócia e em Itália. É nomeado oficial e volta a França, onde morre em pleno campo de batalha a 25 Março pelas metralhadoras alemãs, em Pas De Calais, com um tiro no pescoço e outro no olho direito.

Em Glasgow, três dias depois, o seu irmão Edward recebe uma carta do comandante de Walter: «O batalhão e a companhia perderam um oficial generoso e divertido; eu perdi um amigo.» Ao contrário dos adeptos do Bristol City, o exército inglês não distingue os homens pela cor. Por essa razão, e muitas mais, o Comité Olímpico de Inglaterra faz um filme sobre a história de Walter Tull em 2012, por ocasião dos Jogos Olímpicos de Londres. A cidade onde Tull experimenta a dolorosa indiferença. A dele em relação ao medo do Tottenham e ao racismo dos outros.

Saltamos para a América do Sul. Na Guerra do Paraguai (1865-1870), Argentina e Brasil mais o Uruguai formam a Tríplice Aliança para combater contra o Paraguai de Solano López. Nesses cinco anos, os soldados argentinos e os escravos brasileiros lutam lado a lado, com uma nuance incomodativa: mandatados pelo império, os escravos brasileiros são sistematicamente ofendidos pelos soldados argentinos.

Da guerra para o futebol, o desentendimento entre argentinos e brasileiros é um passo. Estamos a 12 Outubro 1920, e o jornal argentino La Crónica escreve sobre o particular entre os dois países com uma ilustração provocativa Monos em Buenos Aires (Macacos em Buenos Aires). O texto é assinado por Antonio Palacio Zino, enviado especial do mesmo jornal à Copa América 1919, no Brasil, e o responsável por ter pegado fogo a um rastilho que nunca mais se apaga.

Diz ele o seguinte: «E cá estão os macaquinhos em terras argentinas [...] No Carnaval, as mulheres abrem-se e os maridos vão para a festa, como lhes dá vontade. É por isso que, cada vez que nasce uma criança, o casal tenta descobrir com qual vizinho se parece [...] A uma hora e meia da [então] bela capital brasileira [Rio de Janeiro], gente inocente é degolada, assaltos sem medo e é latente a escravidão em suas nuances mais selvagens.»

Horas antes do jogo, o jornalista argentino tem o desplante de visitar o hotel onde está hospedado o Brasil. É agredido pelo capitão Sisson e outros querem seguir-lhe os passos (e sopapos). Em vão. Na hora de entrar em campo, só seis jogadores aceitam participar no jogo. Todos os outros recusam como protesto, o que é naturalmente aceite pelos companheiros. A esses seis, juntam-se quatro argentinos (Balgorri, Rosado, Solari e Castro). Como é lógico, nenhum dos 3 mil espectadores convivem bem com essa situação e há mesmo ameaça de invasão de campo.

O jogo é interrompido pelo árbitro por distúrbios nas bancadas. Os adeptos argentinos simplesmente não querem quatro compatriotas a jogar pelos «outros». Então, a Argentina compromete-se a alinhar só com sete jogadores, tantos quanto o Brasil, com o guarda-redes suplente Kuntz a defesa-central. Sem mais incidentes, a Argentina ganha 3-1 naquele que terá sido o último encontro dito amistoso. Desde esse dia diz-se «particulares».

Passam-se quase 100 anos, aterrámos em 2014. Um século de vida. Evolução? Qual quê. Donald Sterling, dono desde 1991 da equipa de basquetebol Los Angeles Clippers, é apanhado numa gravação divulgada pelo site TMZ a insugir-se ao telefone contra a namorada mexicana Stiviano pela publicação de uma foto com Magic Johnson na sua conta do Instagram.

-- Incomoda-me que querias transmitir a tua ligação aos negros. Precisas de fazer isso?

-- Tu estás associado a muitos negros, vê lá a tua equipa [o cinco base mais o treinador Doc Rivers]

-- Tu não és como eu e eu não sou como tu. É suposto seres uma rapariga branca delicada ou latina delicada.

-- Sou mestiça e tu amas-me. Sou negra e mexicana, quer gostes quer não.

-- Podes dormir com eles, podes fazer o que quiseres. A única coisa que te peço é que não os promovas nem os leves aos meus jogos.

A notícia rebenta por todos os lados e até chega ao presidente. Esse mesmo, Barack Obama em directo da Malásia. «Quando um ignorante fala para demonstrar a sua ignorância, não podemos fazer nada, só deixá-lo falar.»

Viv Anderson (o terceiro a contar da esquerda na fila do meio) na foto oficial de Inglaterra para o Mundial de 1986

No outro lado do Atlântico, outro autogolo do racismo durante o Villarreal-Barcelona. Aos 77 minutos, antes da marcação de um canto, uma banana vai parar aos pés de Daniel Alves. O lateral brasileiro descasca a banana e dá uma trinca. Só depois é que se abalança para o canto. O acto é amplamente apoiado por todos. Lineker, Neymar, Dilma, Hulk, Roberto Carlos, Adebayor, Mertens, Paulinho, Agüero, Marta, Fernandinho, Oscar, David Luiz, Willian e Guardiola. E o Daniel Alves?

«Estou há 11 anos em Espanha e há 11 anos que é igual. Tenho de me rir destes atrasados. Não vamos conseguir mudar isto, temos de levar como uma piada e rir-nos destes atrasados.» Stop para respirar e toma lá disto. «O meu pai sempre me disse que as bananas são boas para evitar cãibras.»

Em Portugal, o primeiro grande caso dá-se com Espírito Santo. Chamam-lhe a «pérola negra.» Oriundo de Angola, chega a Portugal em 1936, com a missão (complicada) de substituir o goleador Vítor Silva. Felino e ágil, Espírito Santo encaixa no esquema do Benfica e depressa se percebe a sua vocação para o desporto em geral. Em 1940, por exemplo, durante um treino do Benfica, a bola vai parar à pista de atletismo.

Despreocupado, salta um obstáculo no meio do caminho e recupera a bola perante a estupefacção geral. Acabara de pular 1,70 metros em altura, algo que ninguém conseguira fazer até essa tarde. É mesmo um atleta de eleição, recordista do salto em altura (1,88 m, marca batida apenas em 1960, vinte anos depois), campeão nacional de comprimento e triplo salto. Tudo isto aliado a um comportamento exemplar – razão pela qual é condecorado pelo  Comité Olímpico Internacional, em 1999, com o prémio fair play.

No plano futebolístico, Espírito Santo ficará para sempre conhecido como o jogador benfiquista com mais golos num jogo oficial: nove nos 13-1 ao Casa Pia, a 5 de Dezembro de 1937. Até o grande Peyroteo, fura-redes do Sporting e seu amigo em Angola, o elogia nas suas memórias: “Espírito Santo joga futebol muito melhor do que eu.” Isto é Espírito Santo, o primeiro negro a jogar pela selecção portuguesa. É já nessa condição de internacional AA que é personagem principal de um episódio infeliz na Madeira, onde o Benfica fora actuar a título particular. A comitiva viaja de barco e hospeda-se num hotel na véspera do jogo com o Marítimo. Qual não é o espanto quando todos os jogadores recebem a chave do quarto menos Espírito Santo. Para ele, a chave do anexo. Os benfiquistas protestam ruidosamente e, conta a história, abdicam dos quartos para passar a noite com Espírito Santo no anexo.

Espírito Santo, repetimo-nos, o primeiro negro na selecção portuguesa, em 1937. Em Inglaterra, o primeiro de sempre é Viv Anderson, em 1978. Ou seja, 41 anos depois. Falámos com ele, por telefone, perto da hora de jantar.

Good morning Viv, tudo bem?

Good morning? Onde?

Sorry, tens razão. Tenho o hábito de dizer good morning durante o dia todo. Telefono de Portugal.

Good, good. Portugal, lembro-me de vocês no Mundial-86. O Bobby Robson [seleccionador] estava danado. Vocês foram à baliza uma vez e golo [de Carlos Manuel]. Nós jogámos melhor, mais posse de bola, uns remates à baliza e... zero. Unbelievable.

Mas vocês passaram à segunda fase e nós voltámos para casa.

Sim, é verdade. Ficámos mais uma semana ou isso. Depois apareceu-nos o Maradona à frente e home, sweet home. Foi duro mas paciência [após Eastham em 1962 e 1966, Viv Anderson é o segundo jogador inglês de campo a ir a duas fases finais de Mundial sem ter jogado um minuto sequer, em 1982 e 1986]

Nessa altura, já era internacional inglês.

Sim, estreei-me em Novembro de 1978 com a Checoslováquia, em Wembley.

Foi o primeiro negro internacional inglês. Faz parte da história da selecção.

Ainda tenho o telegrama da Rainha a pedir-me para ir ter com ela ao balneário [mais tarde, Viv Anderson é condecorado com a Ordem do MBE: Member of British Empire]. Compreendo que se diga isso e senti-me honrado pelo privilégio, mas já acabou. Isso já foi há mais de 40 anos.

Como eram então as coisas?

Diferentes. Não havia muitos negros na 1.ª divisão inglesa e os que havia eram todos avançados, como Laurie Cunningham e Cyrille Regis. Dizia-se que os negros não conseguiam jogar no frio. Depois apareci eu e adorei tudo aquilo. Era um homem negro que gostava de jogar de manga curta e o meu trabalho era acertar no extremo esquerdo. Basicamente era isso. Tudo o que fizesse a mais era uma espécie de bónus.

E antes do futebol?

Cresci em Nottingham e nunca fui insultado. A primeira vez que ouvi insultos à cor da minha pele foi num campo de futebol.

Onde?

Em Newcastle, no meu segundo jogo pelo Nottingham, para a Taça da Liga inglesa, em 1974. Black this, black that. Foi uma experiência aterradora. A determinado momento, caí num choquei com o avançado John Tudor e os adeptos, cerca de 50 mil, aplaudiram como se se tratasse de uma vitória. Virei-me para o meu treinador, Dave Mackay, e pedi-lhe para sair. Só tinha 18 anos e queria esquecer aquilo.

E foi fácil?

Nãããããã. No ano seguinte, mais do mesmo. Estou a aquecer na linha lateral e os adeptos insultam-me. Atiram-me coisas. Regresso ao túnel de acesso, onde me deparo com o treinador, Brian Clough. Ele diz-me ‘pensava que te tinha dito para aqueceres’. Já fiz isso, respondi eu, mas eles atiraram-me bananas, maçãs e peras. Clough muda de cara, olha para mim muito sério e diz-me só isto: ‘Ai sim? Os racistas atiraram-te frutas? Então mexe-me esse cu e traz-me duas peras e uma banana!’

A sério?

Yeah! Unbelievable! Era a maneira dele reagir com alguma piada a um assunto sério. A partir daí, os insultos entravam-me por um ouvido e saíam pelo outro.

Tudo por culpa de Brian Clough?

Yeah, nesse aspecto ele era um mestre. Como treinador, o melhor. Tinha coisas absolutamente sensacionais. Uma vez, na véspera da final da Taça da Liga-1979 com o Wolverhampton, ele mandou-nos todos para a cama à hora indicada. Minutos depois, chamou-nos novamente para o hall do hotel. Queria companhia para contar piadas e beber champanhe. Perdemos 1-0. Mas ganhámos a final da Taça dos Campeões desse ano, ao Malmö, em Munique. Sabes o que se passou aí?

No idea.

O Shilts [Peter Shilton, guarda-redes inglês do Nottingham Forest] improvisou um treino entre duas estradas. Estávamos sem treinar há dois dias e ele começou a agarrar em pedras e sinais de trânsito. Fez uma baliza, foi buscar umas bolas e disse-nos: ‘Agora testem-me. Rematem sem parar.’ O Shilts, melhor guarda-redes do mundo, a fazer aquilo na via pública.

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