«Noruega? Cresci em Massamá, tinha de falar crioulo para jogar à bola» - TVI

«Noruega? Cresci em Massamá, tinha de falar crioulo para jogar à bola»

Pedro Espinha Noruega

Pedro Espinha trocou Lisboa por uma ilhota de três mil habitantes. Hoje vive em Oslo e é o responsável pelos guarda-redes do FC Lyn, um clube histórico que tenta voltar aos tempos de glória

Relacionados

Estórias Made In é uma rubrica do Maisfutebol que aborda o percurso de jogadores e treinadores portugueses no estrangeiro. Há um português a jogar em cada canto do mundo. Este é o espaço em que relatamos as suas vivências.

A vida de Pedro Espinha mudou em janeiro de 2014. Era auxiliar de coordenação da Geração Benfica quando Hugo Vicente, treinador que também saiu das escolhas de formação do clube encarnado, o convidou para integrar a equipa técnica dos graúdos do modesto Bergsoy da III Divisão da Noruega.

«Aceitei de imediato. Mal entrei no aeroporto da Portela comecei a mudar o chip. Assumi o sonho de levar o futebol a sério e de ser treinador de guarda-redes», começa por dizer ao Maisfutebol.

[Antes de mais, um parêntesis: a ligação à baliza e o nome até podem fazer recordar o antigo internacional português, mas não há relação este Pedro Espinha e o seu homónimo que se destacou ao serviço de FC Porto, V. Guimarães e Belenenses.]

O que se seguiu foi um choque. O bulício de Lisboa deu lugar à vida pacata em Fosnavag, na costa oeste do país, recorda o treinador de guarda-redes.

«Cheguei a uma ilhota com paisagens lindas e apenas três mil habitantes. Via sempre as mesmas caras, dia após dia. Sentia alguma solidão, sofria com a ausência da família… Não fosse o Hugo Vicente e a sua família, que estava lá com ele, e eu teria a vida ainda mais difícil. O meu quotidiano era trabalho-casa. Se as dificuldades de adaptação me fizeram pensar em desistir? Nada disso. Eu cresci em Massamá, na Linha de Sintra. Tive de aprender a falar crioulo para jogar à bola com os meus amigos…», conta a sorrir Pedro Espinha, que logo à chegada ficou surpreendido com as boas condições de trabalho do seu novo clube:

«A academia está à volta de uma club house, uma espécie de sede com os serviços administrativos do clube: excelentes balneários, um sintético novo, bancadas modernas... Condições incríveis para um clube da III Divisão. A nível organizacional dão-nos dez a zero. Há algum dinheiro para o futebol, mas o investimento é feito de forma racional.»

FC Lyn: um histórico a reerguer-se 

À aventura no Bergsoy seguiu-se uma oportunidade do Stabaek e a mudança para Baerum, uma zona rica perto de Oslo. A experiência nos escalões de formação durou oito meses, até em setembro de 2016 aceitar a proposta para rumar ao Lyn Toppfotball (nova designação do FC Lyn).

«De Oslo para Fosnavag foi uma diferença abismal. Oslo é uma cidade cosmopolita, com gente de muitas paragens. Uma vez ia com a camisola da seleção portuguesa na rua e dois avós com um neto exclamaram: “Olha, também é português!”»

No Lyn, Pedro Espinha é, além de treinador de guarda-redes da equipa principal, coordenador de guarda-redes em todos os escalões de formação. Além destas funções, colabora com a Federação Norueguesa na formação de jovens talentos nesta posição específica.

Em Oslo, o português encontrou um emblema centenário (fundado em 1896) da capital Oslo duas vezes campeão norueguês, que depois de uma queda abrupta tenta regressar à ribalta.

O Lyn foi em 2008 despromovido à sexta divisão norueguesa na sequência de uma bancarrota financeira.

O clube teve de deixar o Ullevaal Stadion, recinto da seleção norueguesa, foi a leilão e desde então tem recuperado aos poucos. Aliás, no penúltimo fim de semana de outubro, a equipa principal falhou por apenas um ponto a subida à II Divisão da Noruega.

«O Lyn Toppfotball tem muitos adeptos, uma grande história e está rodeado de gente que percebe de futebol. Acabará por voltar ao lugar que merece», salienta Pedro Espinha, sobre aquele que foi, por exemplo, o primeiro clube do nigeriano Obi Mikel (2005) na Europa e o último de Matias Almeyda (2007) antes de regressar à Argentina para terminar a carreira.

Pedro Espinha com Frode Grodås, treinador de guarda-redes da seleção da Noruega

«O treinador principal, Thomas Odegaard, foi guarda-redes do clube nos tempos áureos e conta-nos por vezes as suas memórias do Lyn-Valerenga, o dérbi de Oslo, com 25 mil pessoas a assistir no Ullevaal cheio. Ainda recentemente o clube quis mudar os jogos para o centro de estágio, mas a comuna de Oslo pediu-nos para continuarmos a jogar no estádio Bislett, porque é dos poucos clubes que consegue dar atividade a um recinto de 15 mil lugares. Somos um clube muito popular, com muita tradição: prova disso mesmo é que os miúdos continuam a preferir vir para cá treinar. Não é por acaso coordeno neste momento 65 guarda-redes nos escalões de formação.»

Um mundo de diferenças na Noruega

Apesar das dificuldades iniciais, Pedro Espinha salienta que com o tempo se adaptou bem à Noruega e hoje reconhece algumas das vantagens de viver num dos países mais ricos do mundo, que encabeça o ranking do Índice de Desenvolvimento Humano.

«O que mais me impressiona na Noruega é o facto de ser uma sociedade aberta. Em Portugal tinha de tirar os alargadores das orelhas para dar aulas aos miúdos na escola do Benfica, porque parecia mal. Aqui não. Uso alargadores, tenho tatuagens e ninguém me julga por isso. É algo comum ter uma imagem diferente. Aliás, vermos polícias tatuados e de anéis nos dedos. Há outras diferenças também: comemos o bacalhau sobretudo fresco e sabe a pescada. Outra das coisas que me divertem por aqui é ver estudantes e também alguns turistas a fazerem “sku” nos passeios no inverno, quando estão cobertos de gelo…»

No futebol, a Noruega já não é a seleção que venceu o Brasil por 2-1 no Mundial de 1998 e que chegou a estar no top-3 do ranking da FIFA.

No entanto, apesar de esta geração já não ser a de John Carew, Solskjaer, Tore Andre Flo ou John Arne Riise, há no futebol norueguês uma regeneração que dentro de algum tempo dará frutos.

Pedro Espinha, com a propriedade de quem vive por dentro esta nova fase, antevê isso mesmo: «Agora não é só o jogador alto e forte que se privilegia aqui. A globalização, a internet e os treinadores estrangeiros que passam por cá ajudam a mudar um pouco o estilo de jogo. Vive-se futebol aqui. Mesmo numa pequena povoação com 100 habitantes há um clube de futebol nem que seja só de miúdos, mas há. O futebol norueguês não está estagnado. Está numa evolução que irá ter resultados. Acredito que a Noruega fará um percurso semelhante ao da Islândia.»

Continue a ler esta notícia

Relacionados