«Em Portugal, se perdes um jogo nem podes sair à rua durante uma semana» - TVI

«Em Portugal, se perdes um jogo nem podes sair à rua durante uma semana»

Entrevista a Mica Pinto, jogador do Sparta de Roterdão – parte III

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Chegou ao Sporting em 2007, para jogar nos iniciados, e quase dez anos depois, Mica Pinto saiu de Alvalade sem se ter estreado oficialmente pela equipa principal dos leões.

Em entrevista ao Maisfutebol, o atual lateral-esquerdo do Sparta de Roterdão garante que não tem qualquer mágoa com o clube que o formou como homem e como jogador, recorda os tempos em que a sua casa era a Academia de Alcochete, mas não só.

Mica fala ainda da sua história na Holanda, onde está desde o início de 2018, do cancelamento prematuro da Eredivisie devido à pandemia de covid-19 e das diferenças culturais entre os 'tugas' e os 'laranjinhas'.

PARTE I: A vida de um jogador português na Holanda: «Isto vai deixar mossa»

PARTE II: Mica Pinto: «Não guardo mágoa pelo Sporting, para mim é uma família»

Maisfutebol – No início de 2018 foi para a Holanda, para o Fortuna Sittard. Como é que surgiu essa oportunidade?

Mica Pinto – Fui para o União para voltar a ter tempo de jogo e quando surgiu a oportunidade de ir para a Holanda nem pensei, tive a possibilidade de voltar para perto da minha família, que está no Luxemburgo. Naquele momento o Fortuna já tinha lá dois portugueses, o Lisandro Semedo e o André Vidigal, e falei primeiro com eles para saber como era o clube. O Fortuna tinha assumido o projeto para subir e ia poder estar perto da minha família, por isso nem pensei muito.

MF – E a adaptação, foi tranquila?

MP – Foi muito fácil. Aliás, estavam lá três portugueses, o Miguel Santos, guarda-redes que agora está na Roménia, também estava lá. O treinador também era português, o Cláudio Braga, que esteve no Marítimo. Eram os quatro mosqueteiros no balneário e a adaptação foi muito fácil. Na Holanda os grupos são mais jovens, tanto na primeira como na segunda liga, então é mais fácil chegares e sentires-te logo bem. Quando há as ‘carcaças’ mais velhas é mais complicado entrar no grupo.

MF – Chegou e o Fortuna conseguiu logo a subida. Foi um dos momentos altos da carreira?

MP – Sem dúvida. O clube estava há 16 anos sem subir. Nas três épocas anteriores o Fortuna até esteve quase a descer, e de repente conseguirmos subir foi um feito incrível. Vivemos momentos fantásticos na cidade, foi uma loucura, por isso as decisões que fui tomando ao longo do tempo foram acertadas. Arrisquei ao vir para a segunda liga holandesa, que naquele momento não era conhecida, mas olhando para trás foi uma decisão muito acertada. Ajudou-me muito como jogador e deu-me a oportunidade de jogar na Eredivisie, que me abriu muitas portas.

Mica Pinto a festejar um golo ao serviço do Fortuna Sittard (instagram pessoal)

MF – No mercado de inverno mudou-se para para o Sparta Rotterdam. Porquê a decisão?

MP – A decisão foi muito fácil. Estava em final de contrato e já tinha tido vários contactos de outros clubes para assinar livre logo em janeiro. Quando surgiu o Sparta fui falar com o presidente do Fortuna. Queria sair a bem, queria dar lucro, porque me deram a oportunidade de jogar ao mais alto nível. Fui sincero, expliquei a situação e disse que não ia renovar porque não estávamos a conseguir chegar a acordo. Disse para fazermos o negócio: ganhava o Fortuna e eu podia dar um salto, porque o Sparta é um dos clubes com mais nome na Holanda, é o mais antigo e já foi o clube com mais títulos. Foi claramente um passo em frente para mim. No início houve alguma confusão, as pessoas perguntavam porque é que eu, que era o capitão, ia ser vendido, mas foi simples: não chegámos a acordo para a renovação, sentámo-nos e pensámos no melhor para o clube e para mim.

MF – Na Holanda o futebol é mais ofensivo. Para um lateral como o Mica, a esse nível a adaptação foi mais fácil ou teve de evoluir no aspeto ofensivo?

MP – Aqui o jogo é mais ofensivo, é verdade. Quase nenhuma equipa queima tempo, isso não existe. Mesmo que estejam a ganhar 3-0, a mentalidade continua a ser a mesma. Adaptei-me rapidamente a isso, no Sporting o estilo de jogo também era ofensivo, por isso não tive dificuldades.

MF – Que estilo prefere? O holandês ou o português?

MP – Prefiro o estilo holandês, toda a gente se preocupa em jogar bom futebol e isso faz-te crescer como jogador. Em Portugal o campeonato é muito mais tático. Na minha opinião, os jogadores aqui têm mais qualidade e por isso vê-se jovens a saírem para outros campeonatos. Não há quase paragens, não há perdas de tempo. Mas também sei o quão difícil é jogar em Portugal, é mais difícil jogar em Portugal do que na Holanda pelo aspeto tático. E também percebo a mentalidade defensiva de algumas equipas, é um estilo de jogo e não critico. Aqui é diferente, os holandeses gostam de ir ao estádio e de ver bom futebol. Em Portugal se perdes um jogo nem podes sair à rua durante uma semana, aqui as pessoas olham para as derrotas de maneira diferente.

MF – Em Portugal a mentalidade é mais resultadista.

MP – Sim. Um exemplo: o RKC é um clube da primeira divisão que tem um treinador muito interessante – até já treinou o Roterdão –, pega em jovens e fá-los evoluir; estiveram o ano todo em último lugar e o treinador não foi despedido. É o projeto do clube, querem crescer todos os anos e não despedem o treinador. Claro que tem de haver resultados e os clubes precisam deles, mas aqui pensa-se de maneira diferente, tem a ver com a mentalidade holandesa: focam-se mais em evoluir os jogadores e em ter um projeto bem definido. Por isso é que a Eredivisie é um dos campeonatos mais atrativos para se ver e tem tantos jogadores talentosos.

MF – O ano passado o Ajax fez um brilharete na Champions [alcançou as meias-finais]. O modelo base dos clubes em Portugal tem algumas semelhanças, com muita aposta na formação num passado recente, mas parece cada vez mais difícil os portugueses chegarem longe na Europa. O que o Ajax fez era possível aqui em Portugal ou era preciso uma mudança de mentalidade?

MP – Acho que é possível, mas é difícil por causa da mentalidade portuguesa. Em Portugal vive-se muito dos resultados. Antes de conseguir esse feito da época passada, o Ajax esteve para aí três ou quatro anos sem ganhar títulos. Construiu um projeto, subiu alguns jovens da formação muito bons e depois teve frutos. Quando um clube constrói um projeto desses os resultados não se vão ver em dez dias ou passado um ano. Demora três, quatro, cinco anos. Em Portugal os clubes vivem muito do dia-a-dia e dos resultados – o que não é mau, é compreensível. Sei que um jogador no Sporting tem mais pressão do que um jogador no PSV Eindhoven. Ao mesmo tempo vejo a seleção portuguesa com jogadores incríveis e dos melhores do mundo. Portanto vai haver sempre talento no futebol português, é preciso é o clube ter paciência de estar dois ou três anos sem ganhar títulos, porque depois vai ter frutos. Foi o que aconteceu com o Benfica: começou a apostar na formação e em termos económicos teve muitas vantagens com as vendas que fez.

MF – Algumas das abordagens que recebeu quando estava em final de contrato com o Fortuna foram de Portugal?

MP – Não, desde que saí do Belenenses nunca tive uma abordagem de Portugal. Gostava de voltar a jogar em Portugal, quando estive no Belenenses ficou-me o bichinho de triunfar na I Liga e mostrar o meu valor, por isso é algo que me imagino a fazer numa fase mais avançada da minha carreira.

MF – Em relação ao Mundial sub-20, que recordações tem? Era uma geração forte.

MP – Sim, tínhamos jogadores incríveis: André Gomes, Bruma, Edgar Ié, Bruno Varela, João Mário… jogadores incríveis. O Esgaio também, que agora tem feito coisas incríveis no Sp. Braga. Foi um momento marcante na minha carreira, uma experiência única, mas ao mesmo tempo ficámos desiludidos. Sentíamos que éramos uma das seleções mais fortes, juntamente com a França – que foi campeã do mundo – e ficámos sempre a pensar que podíamos ter feito mais.

Mica Pinto ao serviço da Seleção Nacional (instagram pessoal)

MF – Alguma vez ponderou jogar pelo Luxemburgo?

MP – Sempre me senti luso-luxemburguês, tenho carinho pelos dois países. Fiz metade da minha infância no Luxemburgo e outra metade em Portugal, por isso estou sempre muito ligado aos dois países. Imagino-me a jogar pelo Luxemburgo e se surgisse essa oportunidade não ia recusar. Identifico-me com os dois países e o Luxemburgo tem vindo a crescer muito futebolisticamente nos últimos anos, tem um projeto muito bom, parecido ao da Islândia.

MF – Ainda agora na qualificação para o Europeu jogaram com Portugal e notou-se bem a evolução.

MP – Claro. Acho que nos próximos três, quatro anos o Luxemburgo vai ser uma seleção muito boa e se surgir essa oportunidade não haverá problema em tomar essa decisão.

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