O que se chama aos «maus da fita» quando chegam ao topo do mundo? - TVI

O que se chama aos «maus da fita» quando chegam ao topo do mundo?

Ricardo Fonseca e Duarte Santos - árbitros andebol

Duarte Santos e Ricardo Fonseca são os árbitros portugueses que dirigiram o jogo do 3.º e 4.º lugar do Mundial de andebol, em janeiro. Mas têm muito mais histórias para contar

Mais longe e mais alto é uma rubrica do Maisfutebol que olha para atletas e modalidades além do futebol. Histórias de esforço, superação, de sucessos e dificuldades.

«Quando era miúdo, o meu sonho era chegar aos Jogos Olímpicos. E na minha inocência de criança, achava que quanto mais desportos praticasse, mais perto estaria do sonho. Primeiro, fui para o voleibol, no ano seguinte, deixei e fui para o basquetebol, depois para o futebol, até que cheguei ao andebol.»

Dificilmente se encontra uma criança que tenha o sonho de ser árbitro. É quase contranatura numa sociedade onde o senhor do apito só é tema de conversa quando erra.

Cresce-se a acreditar que os árbitros são sempre «os maus». Quando entram em campo, o instinto manda chamar-lhes nomes e assobiá-los.

- Quem são? Como se chamam?

- Isso não interessa, assobia, que é assim que se faz.

É normal, portanto, que enquanto miúdo, Ricardo Fonseca, o autor da frase que deixámos a repousar no inicio deste texto, nunca tenha contemplado a possibilidade de agarrar num apito, meter na cabeça as regras de um dos desportos que praticou e perseguir então o seu sonho de chegar aos Jogos Olímpicos.

Mas foi mesmo por ele ter pegado no apito que o Maisfutebol foi procurá-lo. A ele e à sua dupla, Duarte Santos. Tudo para saber, afinal, como é a vida de alguém que opta pelo lado mais criticado do desporto.

Comecemos então pelas apresentações: Ricardo Fonseca e Duarte Santos dois árbitros madeirenses, ambos de 37 anos. Eles são os protagonistas deste Mais longe e mais alto.

Porquê? Porque são árbitros e chegaram, em janeiro, ao topo do Mundo do andebol.

Na verdade, se quisermos ser absolutamente rigorosos, temos de dizer que não foi exatamente o cume que eles atingiram. Mas isso é porque a ambição da dupla de árbitros os faz sonhar subir ainda mais.

Para já, aquilo que Ricardo e Duarte conseguiram foi, no segundo Mundial masculino em que participaram, ser a dupla que mais partidas dirigiu, num total de oito: um dos jogos de abertura – a fase final disputou-se na Alemanha e na Dinamarca e teve um jogo de abertura em cada país -, num percurso que terminou com o jogo de atribuição do 3.º e 4.º lugar.

Um «segundo casamento» que começou «em jeito de brincadeira»

Ainda antes de haver um apito a uni-los, a relação de Ricardo e Duarte começou quando tinham cerca de 15 anos e começaram a jogar na mesma equipa. Mais ou menos pela mesma altura, passaram a partilhar também a turma na escola e a ter o mesmo grupo de amigos.

Por isso, quando um amigo lhes falou num curso de árbitro que ia haver, decidiram ir. Porque queriam seguir a via da arbitragem? Nem por sombras.

«Fomos quase em jeito de brincadeira, sem grande interesse na arbitragem. Era uma possibilidade de termos mais um dia ligado ao andebol e conhecer melhor a modalidade que adorávamos», confidencia Duarte Santos.

«Gostávamos tanto da modalidade que assim, quando não estávamos a jogar, estávamos a arbitrar. O que queríamos era estar inseridos no mundo do andebol o máximo de tempo possível», completa Ricardo Fonseca.

Duarte Santos e Ricardo Fonseca, árbitros estagiários, no início da aventura

Seguindo o trajeto normal, depois de se iniciarem como árbitros estagiários, a dupla foi «ganhando o gosto» e não demoraram muito tempo a deixar de jogar para passar para «o outro lado».

«Jogámos até aos 18 anos, quando nos propuseram passarmos a ser árbitros nacionais.»

Isto aconteceu em 1999 e, três anos depois, o passo seguinte surgiu de forma muito natural. «Em 2003 fomos indicados pela Federação Portuguesa de Andebol para um projeto de jovens árbitros europeus e a partir daí as coisas aconteceram de forma natural, até nos tornarmos árbitros da Federação Europeia de Andebol (EHF).»

Ricardo Santos debita o currículo de fases finais de Europeus e Mundiais em que a dupla participou de forma impressionante, e com detalhes de memória difíceis de acompanhar.

«Em 2009, fomos ao nosso primeiro Campeonato da Europa, de juvenis femininos e tivemos logo a honra de dirigir a final. Nunca mais me esqueço: Dinamarca-Rússia, 26-25», relata, desfazendo-se numa gargalhada.

«Por que é que sei isto? Porque já depois de fazermos o curso da IHF [Federação Internacional de Andebol] em 2010 e de irmos ao Campeonato do Mundo de Juniores masculinos na Argentina no ano seguinte, em 2012 fomos também ao Campeonato do Mundo de Juniores femininos em Montenegro e voltámos a dirigir a final… Dinamarca-Rússia, 27-26», conta, desmanchando-se em nova gargalhada.

«Ganhou sempre a Dinamarca», resume o árbitro, guardando mais detalhes sobre a relação com este país nórdico para mais tarde.

No currículo internacional de Ricardo e Duarte, além de vários jogos das competições europeias, contam-se ainda um Campeonato do Mundo de seniores femininos (2013), um de juniores masculinos (2014), no qual apitaram uma das meias-finais e a estreia em Campeonatos do Mundo de seniores masculinos, em 2015, no Qatar.

Sem falhar uma, no ano seguinte, foram ao Europeu masculino, onde voltaram em 2018, antes de iniciarem o ano de 2019 com a participação no Mundial, onde igualaram a melhor prestação de sempre de uma dupla portuguesa, ao chegarem ao jogo de atribuição da medalha de bronze – José Macau e António Goulão fizeram-no em 2007, no Mundial organizado em Portugal.

«Nós passamos tanto tempo juntos, que isto é quase um segundo casamento», resume, bem-humorado, Duarte Santos.

Enquanto árbitros, já viajaram por todo o mundo e prometem não ficar por aqui

«Não somos profissionais, mas fazemos a nossa vida em função do andebol»

No meio de tão vasto currículo – ao qual, obviamente, têm de se acrescentar os jogos que a dupla dirige nos campeonatos nacionais – pode parecer difícil, mas ainda têm de se encaixar os empregos de Ricardo Fonseca, profissional de seguros, e Duarte Santos, comercial de uma conhecida marca de cafés.

E é isso que os dois árbitros fazem diariamente: encaixar as suas profissões, aquelas de onde retiram o ordenado que lhes permite pagar as contas ao final do mês, no tempo que o andebol lhes exige.

Nenhum dos dois consegue dar ao Maisfutebol uma estimativa do tempo que dedicam à arbitragem, por isso lançamos também o desafio ao leitor a tentar fazer as contas.

Imaginemo-los, então como um casal, e descontamos as horas das viagens, que isso é quase lazer. Têm tempo para um programinha a dois? Uns vídeos, de vez em quando...

«Passamos muitas horas a ver vídeos de jogos. Além daqueles que dirigimos, para perceber onde errámos e corrigir em seguida, fazemos uma análise detalhada às equipas que vamos arbitrar no fim de semana. E quando eu digo que é detalhada, quer dizer que analisamos a forma como ambas as equipas atacam e defendem. Porque isso permite-nos antecipar o erro», introduz Ricardo Fonseca.

«Além do tempo de análise de vídeo, que inclui jogos nacionais, de Liga dos Campeões e de seleções, fazemos preparação física entre quatro e cinco vezes por semana, dependendo se temos jogos ao fim de semana, ou não», completa Duarte Santos.

Resumindo: «Não somos profissionais, mas fazemos a nossa vida em função do andebol. Não temos a remuneração de profissional, mas todo o trabalho que fazemos é de profissional», explica Ricardo, uma ideia reforçada por Duarte: «A verdade é que temos de abdicar de vários dias de trabalho para dedicar ao andebol, porque tudo aquilo que fazemos é como se fossemos profissionais».

E se o estatuto de atletas de alta competição que têm desde 2013 ajuda a justificar perante as entidades empregadoras o tempo de ausência, já é mais complicado quando, para poderem estar ao nível dos melhores, têm de fazer investimentos avultados, como os quase 2.000 mil euros que lhes custaram os comunicadores que têm de utilizar nos jogos e que são um investimento exclusivamente deles.

«Temos de gostar mesmo muito disto», resume Duarte. «Quem corre por gosto não cansa», concluem ambos.

O jogo mais difícil da vida de Duarte… que não foi quando foi agredido

Apesar de toda a dedicação e amor à causa, poucos são aqueles que alguma vez pararam para pensar nisso no momento de criticar os árbitros.

E por muito que isso se tenha tornado banal, e que um árbitro aprenda rapidamente a lidar com essa realidade, não significa que não lhes custe.

«O árbitro ser o mau da fita já faz parte. Os árbitros são sempre o parente pobre em qualquer modalidade e os seus erros parecem sempre ter muito maior relevância do que os dos restantes agentes desportivos», lamenta Ricardo Fonseca. «Precisamos de ter muita força mental para lidar com isso. Até porque se um jogador falha, pode ser substituído, mas quando um árbitro erra, não tem essa possibilidade. Ele tem de continuar em campo, passar por cima do erro e fazer de tudo para evitar novos erros», reforça.

A solução é, na opinião de ambos, seguir em frente. E aproveitar as críticas, se possível. «As críticas que nos fazem, muitas vezes são boas, nem que seja para irmos analisar o porquê de termos errado», desvaloriza Duarte.

Ele, que já viveu um daqueles episódios que nunca deviam acontecer, quando foi agredido por um jogador, no final de um jogo. Sobre isso, não perde muito tempo a falar. «Felizmente, só aconteceu uma vez, seguiu os trâmites legais e eu quero acreditar que foi um caso isolado», sublinha. E segue em frente.

Até porque os bons momentos no andebol são muito mais do que os maus. E aqui, voltamos à Dinamarca, onde a dupla portuguesa voltou a ser feliz, nas três semanas que durou o Mundial.

E se atrás já percebemos que os árbitros portugueses foram mais do que uma vez amuleto para a Dinamarca, uma das maiores potências da modalidade, a verdade é que ainda não contámos tudo sobre esta relação.

E ela vai muito além do facto de o primeiro jogo da Dinamarca no Mundial em que viria a sagrar-se pela primeira vez campeã, ter sido dirigido por Ricardo Fonseca e Duarte Santos. Remonta a 2015, a dica é-nos dada por Ricardo, mas deixamos que seja Duarte a contá-la, porque foi para ele que foi mesmo especial.

«O Ricardo contou isso?», pergunta-nos a sorrir quando lhe lançamos a rede para nos contar a história do jogo mais difícil que teve de arbitrar.

«A culpa foi do meu filho, que decidiu nascer uma semana antes do previsto», justifica, antes de contar toda a história.

«Estávamos na Dinamarca para dirigir um jogo da EHF Cup quando me ligaram a dizer que a minha esposa tinha ido para o hospital porque o saco das águas tinha rebentado. Faltavam poucas horas para o jogo, eu ainda tentei a todo o custo arranjar um voo de regresso, mas era impossível.»

A solução? Fazer o jogo e tentar regressar depois a Portugal. «Eu estava no jogo quando a minha esposa estava em trabalho de parto. Claro que a minha cabeça não estava no jogo, porque estava preocupado se tudo estaria bem com eles, mas tive de tentar manter a concentração ao máximo, abstrair-me disso e focar-me no jogo», explica, rematando: «foi uma luta.»

No meio do stress, um gesto que não esquece do Holstebro, equipa da casa. «Eles anunciaram no altifalante do pavilhão o que se estava a passar e, no final, ofereceram-me um equipamento de bebé para dar ao meu filho», confidencia.

A dupla esteve em grande no Mundial que decorreu na Alemanha e Dinamarca, em janeiro

«Nunca vou esquecer as palavras quando nos anunciaram a nomeação»

Tendo em conta o historial da dupla madeirense com a Dinamarca, tudo parecia reunido para um mundial de sucesso. E foi mesmo isso que aconteceu, tanto para a seleção escandinava que ergueu o troféu em casa, como para os árbitros portugueses que fizeram um percurso notável até ao jogo das medalhas

«A verdade é que o Mundial nos correu muito bem. Fizemos muitos jogos, um dos quais o de abertura e outro o do 3.º e 4-º lugar, que teve 15 mil pessoas na bancada e foi um jogo até mais emocionante do que a final, decidido com um golo no último segundo», orgulha-se Duarte Santos, revelando que tudo saiu melhor até do que tinham imaginado.

«Receber a nomeação para aquele jogo foi espetacular. Um mês antes, se nos tivessem dito que íamos chegar ali, talvez não acreditássemos, até porque éramos uma das duplas mais novas da competição, mas o torneio correu-nos muito bem, e aquilo foi o reconhecimento do nosso trabalho», garante Duarte.

Já Ricardo, guarda com particular satisfação as palavras de quando lhe foi anunciado que iriam ter aquele jogo para dirigir. «Foi como recebêssemos uma medalha, mas nunca me vou esquecer das palavras com que nos anunciaram a decisão: ‘não pensem que isto é um prémio pelo que quer que seja, vocês vão arbitrar este jogo porque fizeram por merecer com o vosso trabalho’.»

Melhor do que isso? Talvez só aquilo que aconteceu em 2016 e que, quando revisitámos o currículo da dupla, propositadamente, deixámos passar.

Devolvemos a palavra a Ricardo Fonseca para ele voltar ao tal sonho de miúdo que o fez andar a saltar de modalidade em modalidade.

«A verdade é que cumpri o meu sonho de criança: em 2016 fomos aos Jogos Olímpicos e foi incrível. E, para ser sincero, nunca pensei que fosse como árbitro que ia cumprir o meu sonho. Mas agora queremos é ir outra vez a Tóquio», remata.

 

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