«Quando acabei o Dakar, disse: ‘Eu faço na vida tudo o que quiser'» - TVI

«Quando acabei o Dakar, disse: ‘Eu faço na vida tudo o que quiser'»

Elisabete Jacinto (foto Facebook)

De miúda tranquila que brincava com bonecas e fazia bordados à mulher que fez história ao ser a primeira a vencer uma prova de todo o terreno ao volante de um camião. Elisabete Jacinto fala-nos do «sonho realizado» e conduz-nos pelos altos e baixos de uma carreira num mundo de homens que começou tarde, mas já foi tão longe

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Mais longe e mais alto é uma rubrica do Maisfutebol que olha para atletas e modalidades além do futebol. Histórias de esforço, superação, de sucessos e dificuldades.

Há 27 anos, Elisabete Jacinto venceu o medo e a insegurança e alinhou no desafio do marido e dos amigos para fazer uma prova do campeonato nacional de todo o terreno de mota. Tinha três anos de experiência ao volante de uma mota e achava que nunca seria capaz de chegar ao fim do percurso.

Agora, com a vitória na categoria de camiões do Africa Eco Race 2019, a piloto portuguesa entrou para a história dos desportos motorizados como a primeira mulher a vencer uma prova de todo o terreno ao volante de um camião.

Ao Maisfutebol, Elisabete Jacinto fala sobre esta conquista, conduz-nos pelos altos e baixos da carreira num desporto dominado por homens, e volta ao momento em que uma revista num quiosque lhe mudou a vida.

«Um dia ia ao cinema com o meu marido e parámos em frente a um quiosque. Ele pegou numa revista e disse: ‘Isto das motas é muito giro, não é?’ E eu disse: ‘Também acho muita graça. Então por que é que não tiramos a carta de mota?’ Ele tinha carta de carro, mas não de mota. Eu nem de carro tinha. Fomos os dois tirar a carta de mota ao mesmo tempo e as coisas começaram assim», recorda Elisabete Jacinto. «Foi um marco importante na minha vida. Mudou tudo».

Tiraram a carta, compraram «uma mota daquelas com o guarda-lamas alto tipo motocrosse» e inscreveram-se no clube de todo o terreno. «Dois anos mais tarde, como um homem não anda de 125 cc, ele conseguiu ter uma mota de maior cilindrada para ele, portanto ficou cada um com a sua mota, porque nenhum dos dois queria ir à pendura», conta a piloto, que não esquece o primeiro passeio.

«Era a Ronda dos Castelos na Figueira da Foz. Eu não tinha experiência nenhuma de andar na terra, ele também não. O passeio tinha 200 quilómetros, eu fiz 80, caí duas ou três vezes, o radiador abriu, e não continuei mais. Ele fez o resto do passeio sozinho. No final, olhámos um para o outro e dissemos: ‘Isto é fantástico, é o hobbie das nossas vidas, só que as motas não prestam. Então vamos juntar dinheiro para comprar motas a sério para todo o terreno’. Passámos um ano em casa sem ir ao cinema, sem jantar fora, sem nada, para juntar dinheiro para uma mota para cada um para fazer todo o terreno».

Elisabete Jacinto no Dakar

A mulher que hoje conduz um camião de dez toneladas, que se entusiasmou com esses primeiros passeios de mota em todo o terreno e depois pelo meio das dunas em África, não foi sempre assim aventureira. «Fui uma miúda muito calma, ficava no meu cantinho a brincar com as bonecas, aprendi a fazer bordados muito cedo, aprendi a tricotar com a minha avó muito cedo, fazia as minhas camisolinhas de malha na adolescência, lia aqueles livros de romances cor de rosa… não tinha nada de Maria Rapaz… E depois um dia percebi que de facto podia fazer coisas diferentes e desenvolver outras capacidades em mim e isso foi uma sensação muito boa».

«Lembro-me de ir com o meu marido e com os meus amigos e de me esforçar imenso para não ficar sozinha perdida no meio do campo. O meu único objetivo era esse, o que hoje parece uma coisa insignificante foi o ponto de partida», lembra.

E foram esses amigos - que agora também a receberam no aeroporto com orgulho - que a desafiaram para a primeira prova do campeonato nacional, tinha na altura 27 anos. «Já não é idade de se começar nenhuma modalidade, é idade de terminar», diz Elisabete. Mas foi mesmo idade de começar.

«Eles organizaram-se todos para fazer a prova, olharam para mim e disseram: ‘Também vens’. E eu disse: ‘Não sou capaz. Como é que vou fazer 300 quilómetros?’ Mas eles diziam que sim e eu dei por mim a pensar: ‘Será que sou capaz?’ E esse foi o meu primeiro grande passo. Andar de camião, fazer Dakar, isso nunca me ocorreu. No fundo foi uma progressão feita lentamente. À medida que ia fazendo mais, percebi que, afinal, eu era muito mais forte e muito mais capaz do que pensava ser e ia tentando mais, ia-me preparando mais, e fui por aí fora, até hoje».

Elisabete Jacinto com o navegador José Marques e o mecânico Marco Cochinho

Depois dos dois segundos lugares consecutivos em 2011 e 2012, a vitória nos camiões na Africa Eco Race, prova em que conquistou um quinto lugar na geral, é «a realização de um sonho» e o culminar desse percurso.

«Sinto-me realizada, sinto que valeu a pena o trabalho que, com um esforço enorme, vim a desenvolver ao longo destes anos todos. Só agora consegui chegar lá, mas consegui», disse a piloto, garantindo que sentia que «tinha possibilidades de conseguir» este primeiro lugar. «Só precisava que o azar não me batesse à porta, e desta vez não bateu. Até tive ali uma situação em que eu considero que a sorte esteve do meu lado».

«As coisas conjugaram-se para eu conseguir ter um bocadinho de sorte numa ocasião ou duas, que me permitiu passar para a frente, ou não ficar para trás. Porque eu ando lá há muito tempo e tenho muita experiência, mas, comparada com as outras equipas, não sou a melhor equipa em termos de material, de camião, nada dessas coisas», conta.

Elisabete Jacinto compara o sentimento de concretização com o que teve ao terminar o Dakar. «Fazer o Dakar de mota para mim foi um sonho impossível. As pessoas diziam: ‘É só para homens de barba rija, nunca vais conseguir’. Mas eu consegui. E chegar ao topo da classificação geral de camião é idêntico», aponta.

O camião surgiu na carreira de Elisabete Jacinto em 2003, há 16 anos, «um bocadinho como uma boia de salvação» depois de ter deixado a mota «com um certo sentimento de frustração». «Achei que não tive o reconhecimento que merecia pelo trabalho que tinha para fazer corridas de mota e ter bons resultados», conta.

E, mesmo nunca tendo andado de camião antes, sentiu que «conseguia de camião ser muito mais competitiva do que tinha sido com a mota». «Eu queria realmente ter bons resultados desportivos, que era o que não tinha conseguido com a mota. Comecei tarde, a mota era pesadíssima e eu não tinha físico para ela…, na mota eu ia aos limites da minha capacidade física, no camião eu tinha uma folga física muito grande e podia usar essa energia no sentido da qualidade de condução. Achei que tinha os ingredientes todos, desde que tivesse um bom camião e uma boa equipa, essa ideia perseguiu-me estes anos todos», explica Elisabete Jacinto, que garante que a dimensão do veículo não a intimidou.

«O que eu fiz de mota foi tão difícil, tão duro, a minha mota era tão grande, tão pesada, e tão difícil de conduzir, que quando acabei o Dakar, disse: ‘Eu faço na vida tudo aquilo que eu quiser’. Se fiz o Dakar, faço o que quiser. Fiquei com um sentimento de invencibilidade que me foi dado por esse esforço que fiz para chegar ao fim. Portanto, um camião onde eu vou sentada, não passo frio, onde posso comer… ao pé da mota é uma maravilha», garante.

Bem, maravilha não será bem o termo. «Estas provas são muito violentas fisicamente, são uma sucessão de pancadaria de início ao fim, mesmo com boas suspensões. É um facto que estou sentada, mas há sempre qualquer coisa ali a bater».

 

Elisabete Jacinto admite que este é ainda um mundo de homens, mas «porque as mulheres não aparecem, não é que não sejam capazes de fazer».

«As pessoas encaram sempre com uma certa estranheza o facto de verem uma mulher ao volante, principalmente de um camião. Lembro-me de que há uns anos, em Marrocos, os polícias faziam o gesto para parar, mas, quando olhavam para dentro e viam que era uma mulher, faziam-me logo o gesto para avançar. Eles próprios não sabiam como haveriam de lidar comigo e com a situação que eu representava», conta Elisabete Jacinto, que diz que entre os competidores também há quem não veja com bons olhos concorrência feminina. «Acham que é só para fazer bonito, só para a fotografia, esperam que a mulher ande lá atrás de todos, mas quando ela passa para a frente: ‘Ó diabo, ela vai à minha frente, não me deixa ultrapassar, mas que conversa é esta?’».

Embora afirme que não é disso que mais se queixa, garante: «Ao longo da minha carreira, se fosse homem, tinha tido tudo muito mais fácil. Nós temos sempre que lidar com montes de barreiras, muitas delas um bocadinho invisíveis. Parece que não existem, mas esbarramos nelas e não progredimos».

Por exemplo? «Ainda há o preconceito de que as mulheres não percebem de mecânica, somos todas enfiadas no mesmo saco, todas tratadas da mesma maneira. Tenho vivido algumas situações em que não me levaram a sério, não me deram credibilidade. E a minha luta nestes anos todos foi exatamente para conseguir ter a credibilidade, ter um projeto sério».

«Eu sempre disse: ‘Quero ser reconhecida como um bom piloto, não quero que digam que dou nas vistas por ser mulher num desporto de homens. Queria mostrar que não sou apenas a melhor das mulheres, mas a melhor», frisou a piloto.

 

Questionada sobre se sente que é um exemplo para muitas mulheres, Elisabete Jacinto afirma que sim. «Sinto e tenho muito gosto nisso. A partir de certa altura comecei a receber muitas mensagens de incentivo de mulheres. Quando foi do Dakar, percebi que as pessoas se entusiasmaram, e principalmente as mulheres vinham dizer que tinham muito orgulho em mim e que gostavam de ter a minha coragem».

«A partir de certa altura comecei a pensar nessas coisas de igualdade de género e no que é ser homem e ser mulher. Comecei a ter a equipa de camião e a ter que trabalhar só com homens, começaram a surgir conflitos e problemas, comecei a perceber que tinha que mudar a minha atitude em muitas coisas», diz a piloto.

«Gostava de facto de ser um exemplo para todas as mulheres no sentido de que podemos fazer na vida aquilo que quisermos. Não porque os outros dizem, mas, ‘se eu tenho gosto nisto, por que não hei-de fazer?’. Até posso não ser capaz por alguma razão, mas não por ser mulher. Nós todas somos muito mais capazes, muito mais fortes e muito mais aptas do que aquilo que nos convencem que somos», frisa.

Olhando para trás, Elisabete Jacinto escolheu alguns momentos-chave da carreira. «Tive muitos momentos péssimos. Aquele momento horrível quando o meu camião ardeu na Argentina, vi arder ali todo o meu sonho de ser um grande piloto. Tudo o que eu tinha construído morria assim e eu achei que não era justo. Foi muito violento para mim. Quando o meu carro de assistência pisou uma mina na fronteira de Marrocos para a Mauritânia… Houve muitos momentos em que me senti a fraquejar e a pensar: ‘O que é que estou aqui a fazer?’», recorda.

Nos tempos das motas

E dos bons? «Quando comecei a andar de camião, no Rali da Tunísia, houve uma encrenca de navegação muito grande, toda a gente se perdeu, e o meu navegador conseguiu resolver o problema mais depressa do que os outros todos e acabámos a etapa em primeiro lugar. Eu não tinha experiência nenhuma, não andava depressa… mas ter acabado em primeiro deu-me uma alegria tão grande, que ainda hoje me lembro que ia pelo acampamento fora a rir-me para toda a gente. Não conseguia falar, só me ria. Sentia-me leve como um passarinho».

Além de piloto e professora de Geografia, Elisabete Jacinto é também autora de livros: manuais escolares e banda desenhada. «Senti necessidade de contar as minhas aventuras porque quando eu era piloto de mota ninguém se interessava por mim. Diziam só: ‘A Elisabete classificou-se apenas no lugar tal…’ Eram facadas que me davam. Eu vivia tantas emoções, sofria tanto, e depois ninguém se interessava, e os livros de banda desenhada surgiram pela necessidade de contar essas histórias, de dizer: ‘Eu vivi tudo isto’».

E agora, que aventuras esperam a piloto? «Ainda não sei. É melhor parar para tomar uma decisão com a cabeça fria, descansada, porque no fundo cheguei onde queria chegar e não me sabe bem andar para trás. Sei quanto é bom ganhar, será que consigo reunir as condições para estar ao mesmo nível?».

«Isto é um projeto tão difícil, principalmente para nós que o fazemos com poucos meios e poucas condições. Baixar os braços e não fazer mais nada na vida não está na minha maneira de ser. Mas tenho que ver se vou ter condições para fazer corridas com as condições mínimas para as fazer bem», afirmou.

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