Auriol Dongmo: a portuguesa de coração que fugia de casa para lançar - TVI

Auriol Dongmo: a portuguesa de coração que fugia de casa para lançar

Campeã europeia do lançamento do peso está de olho nas medalhas em Tóquio. Da infância nos Camarões, onde jogou andebol e basquetebol, até à devoção a Fátima e a vinda para Portugal após contactar o Sporting pelo Facebook

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«Mais longe e mais alto» é uma rubrica do Maisfutebol que olha para atletas e modalidades além do futebol. Histórias de esforço, superação, de sucessos e dificuldades.

Campeã europeia de pista coberta. Recordista nacional. Líder do ranking mundial.

Nas mãos, o peso. No coração, Portugal.

A menina que há 30 anos nasceu no norte dos Camarões, em Ngaoundéré, mudou a sua vida em 2017 ao chegar a este cantinho à beira-mar plantado.

Fê-lo pela sua carreira. Pela enorme e confessa devoção a Fátima (logo visitou o santuário à chegada): não é à toa que tem sempre consigo o terço. Na vida pessoal e nas competições.

Aterrou em Portugal depois do arrojo em propor-se ao Sporting através da rede social Facebook, para ser lançadora do peso dos leões. «Todo o mundo já sabe essa história (risos): eu contactei o Sporting, a ver se precisava de uma lançadora do peso. E caiu certo, precisavam de uma lançadora. O Sporting comprou o bilhete de avião», conta. Vinha então da participação nos Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro, pelos Camarões, onde foi finalista (12.º lugar).

Estivera em Marrocos para preparar a olimpíada no Brasil e teve depois papéis para rumar a França, pela progressão na carreira. Mas o caminho trouxe-a para Portugal. A fé. Vive e trabalha em Leiria, com o treinador Paulo Reis.

«Portugal é um país no qual escolhi viver. Tinha hipótese de ir para outros países, mas escolhi Portugal porque é um país do coração», refere Auriol, que após o ouro na Polónia em março e de já ter batido o recorde nacional (19,65 metros) em janeiro, olha para a hipótese de sair de Tóquio com uma medalha. O ouro, quem sabe.

«Vou dar o meu melhor para fazer uma boa competição. E Deus vai fazer o resto. Para um atleta de alto rendimento, não é normal ir a uma competição sem pensar em ganhar uma medalha. Todos os atletas vão a uma competição para ganhar. O objetivo e ir lá e voltar com uma medalha. Todos os atletas querem o ouro, mas se voltar com uma prata, bronze ou nada, acontece. Mas a primeira coisa é ir lá para conquistar a medalha de ouro», expressa.

Di-lo quem sentiu que foi especial sair com o ouro de Torun, nos Europeus de pista coberta, já após ter sido campeã de África no passado. «Para mim, fazer o campeonato da Europa foi uma grande oportunidade. É verdade que tinha sido campeã de África, mas ser campeã da Europa, para mim, é diferente. É outra sensação, sobretudo a defender outro país, no qual todos estavam: “o que é que a Auriol vai fazer?”, “Vai voltar com uma medalha?”. Eu senti essas perguntas à minha volta, porque eu queria ganhar esta medalha para Portugal, para todos os que estão a apoiar. Foi bom ver a alegria nas caras das pessoas», atesta.

«Fugia de casa para ir lançar»

A história desta portuguesa de bem tem muito para contar antes da chegada ao país da língua de Camões. A língua que já fala com fluência.

Auriol cresceu numa casa com mais três irmãos e uma irmã no norte dos Camarões. Já perdeu um dos irmãos, numa família modesta à qual nunca faltou o essencial. «Eu não tenho uma família rica, mas na nossa casa não se passava fome», diz.

De Ngaoundéré para o mundo, Auriol cedo deu a conhecer o gosto pelo desporto. Jogou andebol e basquetebol, mas as circunstâncias da vida levaram-na para o peso.

«Eu jogava andebol e, num dia de escola, um professor de Educação Física disse que eu tinha muita força e que a escola não tinha ninguém para uma competição do peso. Eu fui lá, fiz bronze e estava lá o técnico nacional de lançamento. Perguntou o meu nome, outras coisas e disse: “vi a competição e acho que podes fazer uma coisa enorme no lançamento do peso”. Eu não ligava, dizia que era um desporto para homens e não gostava, que queria ficar no andebol. Às vezes, lá saía do andebol para ir fazer uma competição, mas depois, com muita gente a falar, eu disse que ia tentar e comecei a treinar a sério, por volta de 2007, para o lançamento do peso. Em 2009, fui campeã dos Camarões pela primeira vez, até 2017».

Auriol detém o recorde nacional do lançamento do peso. Nos Camarões, chegou a praticar andebol e basquetebol

E foi o lançamento que mais pesou quando Auriol decidiu tentar vingar no desporto. Quis pôr os livros de parte, mesmo contra a vontade do pai em ver a filha numa modalidade que a mãe… não conhecia. Auriol chegou até a fugir de casa para competir.

«Quando escolhi o lançamento do peso, a primeira coisa que a minha mãe disse foi: “isto é o quê?”. Não sabia. Eu disse que não queria estudar mais e que queria ser lançadora. O meu pai disse: “nada, nada, nada”. Mas eu aí já estava com o coração no lançamento do peso e fugia de casa para ir lançar, para a competição. Fugia de casa mesmo, sem os meus pais saberem. Mas depois o meu pai disse à minha mãe: “esta criança tem o coração nesta modalidade, temos de deixar e apoiar”. E foi assim», relata Auriol, que com cerca de 17 anos foi para a capital, Yaoundé, em busca de uma carreira que conhece agora dias felizes.

Fátima, Leiria, o filho, Paulo Reis e o Sporting

Uma carreira que, ainda assim, teve sacrifícios, paciência e trabalho desde 2017. Devido às regras internacionais para a mudança de nacionalidade, Auriol só foi autorizada a competir por Portugal em 2020, já após ter adquirido nacionalidade lusa.

Pelo meio, foi mãe, competiu só a nível nacional e viu, já no ano passado, a covid-19 alterar planos. Mas Auriol até admite que a pandemia não foi uma barreira. «Outros atletas vão dizer que foi difícil, mas a mim não afetou a vida profissional, porque em 2020 fiz uma excelente época», atira quem já foi três vezes campeã nacional e quebrou várias vezes o recorde nacional do peso, até aos atuais 19,65.

Talvez a devoção a Fátima tenha ajudado a isto tudo: «É uma força maior. Como costumo dizer, é a fundação da minha vida. Tens de trabalhar no duro e fazer as coisas como devem ser. Agora, com a graça de Deus, a coisa vai acontecer e dar certo».

Agradece ao Sporting, um «clube de leões». Ou não viesse Auriol do país com a alcunha dos «leões indomáveis». Não esquece Paulo Reis, «um excelente treinador, que está sempre a apoiar, na vida pessoal e na carreira». «Está sempre na tua carreira, mas na vida pessoal ele quer que as coisas corram bem, tudo o que está à volta de ti». Olha para Leiria como uma cidade «cordial», onde encontrou a calma e «gente boa a apoiar e a ajudar» para uma carreira que, vá onde for, é com Portugal no coração. Mesmo que custe, por vezes, ver enraizados alguns padrões sociais.

«Como eu disse anteriormente, Portugal é o país que eu escolhi. Ninguém escolhe onde nasce. Mas podes escolher onde vais viver, onde vais ficar. E quando escolhes um país, é pelo coração. Eu podia ter ido para França, porque a primeira vez que tratei o visto e tudo, foi para ir para França. Mas eu gosto de Portugal. Quando vou para representar Portugal, é mesmo com o coração. A aceitação dos outros… é uma coisa que é um bocadinho difícil, não é? Com estas coisas do racismo, da imigração, estas coisas…. Não devia acontecer, porque somos humanos. Mas não posso fazer nada. Não vai trocar a vontade que tenho de competir e representar Portugal. Escolhi competir aqui e vou competir sempre com o coração e dar tudo, porque esta bandeira foi a que eu escolhi e a vou defender».

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