«A minha perna esquerda vale ouro, a direita é só para subir degraus» - TVI

«A minha perna esquerda vale ouro, a direita é só para subir degraus»

Jordan Santos na final do Mundial de Futebol de Praia de 2019 (foto FIFA)

Jordan Santos conta como passou de desiludido com o futebol de onze a melhor jogador do mundo de futebol de praia e faz o balanço de um ano em que ganhou tudo: «Não há mais nada que eu pudesse pedir.»

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(artigo originalmente criado às 23h56 de 13/01/2020)

Mais longe e mais alto é uma rubrica do Maisfutebol que olha para atletas e modalidades além do futebol. Histórias de esforço, superação, de sucessos e dificuldades.

2019 é um ano que Jordan Santos não vai esquecer. Foi «o ano de sonho» em que foi eleito melhor jogador do Mundo de futebol de Praia, em que, com a camisola da Seleção Nacional conquistou o Mundial, a Liga Europeia, os Jogos Europeus, o Mundialito e o Torneio Internacional da China. E em que, pelo Sp. Braga, se sagrou Tricampeão Europeu, Campeão Nacional, venceu a Taça de Portugal e participou na conquista histórica do Mundialito… E foi figura de destaque em todas estas competições.

«O que é que eu posso pedir mais? Não há mais nada que eu pudesse pedir.»

Aos 28 anos, o ala, que desde a nascença tem nome de craque, porque a mãe foi buscar inspiração a Michael Jordan para o batizar, chegou assim ao topo da modalidade. Em entrevista ao Maisfutebol, Jordan conta como foi o percurso desde os primeiros pontapés na bola até este momento de ouro e fala sobre os objetivos que ainda tem para o futuro.

A entrevista foi feita enquanto o jogador ia caminhando pelas ruas da Nazaré, a terra que não o viu nascer, mas que o viu crescer enquanto homem e enquanto atleta. Durante a conversa de cerca de uma hora, foram várias as interrupções porque havia sempre alguém a querer dizer olá, dar beijinhos, mandar cumprimentos à família. Não havia melhor forma de testemunhar o carinho que as gentes da terra sentem por Jordan e que se nota que é recíproco sempre que este fala da «sua» Nazaré.

Nascido no Canadá, foi com apenas três meses que veio para Portugal e para a Nazaré. «Não me recordo de nada do Canadá. Tenho lá família, já lá voltei, mas a minha terra é aqui», frisa o jogador. E foi ali, nas areias da praia, famosa pelas ondas gigantes que Jordan nunca experimentou surfar - «Não me atrevo. Gosto de ir ver, mas aquilo é assustador só de ver, um barulho imenso… imagino a adrenalina deles…» -, foi ali, dizíamos, que o ala deu os primeiros toques na bola.

«Fui criado pela minha avó, praticamente, e a casa dela é em frente à praia, então eu passava o verão inteiro a jogar à bola na praia. Os meus amigos até começavam a chatear para irmos fazer outras coisas, mas eu queria era estar a jogar e tinha algum jeito», conta.

Desde cedo, Jordan percebeu que o seu futuro seria com a bola nos pés… só não sabia em que piso. Aos seis anos, começou a jogar futebol de onze nos Nazarenos, clube onde despertou o interesse do Boavista, mas «as coisas não correram bem.»

«Eu tinha 12/13 anos, fui sozinho para o centro de estágios do Boavista. Custou-me bastante. Tinha muitas saudades da família, isso afetou-me muito e acabei por vir embora porque não aguentei mais», recorda Jordan.

Com Léo Martins na final do Mundial (foto FIFA)

Foi então jogar para o Sport Lisboa e Marinha, da Marinha Grande, mais próximo de casa e «ainda tinha alguma esperança em vir a ser jogador de futebol de onze», mas, com o passar dos anos, «começou a ser mais difícil acreditar.»

«Antigamente, se aos 16/17 anos não tivéssemos dado o salto, acabávamos por desanimar porque pensávamos que já não iríamos conseguir. E foi o que me aconteceu a mim. Fiquei um bocado desiludido com o futebol de onze e foi quando me apareceu o futebol de praia como mais do que um hobby», explica.

«Eu tinha 17 anos e fui para a equipa do Sotão, e as coisas correram todas muito rápido. Logo nesse ano, em 2009, fomos campeões nacionais e o selecionador Nacional da altura, o mister José Miguel, convocou-me para um estágio da Seleção… tudo começou aí», recorda o jogador.

E o futebol de praia passou então a ser o seu projeto de vida, embora à época fosse um projeto arriscado. «Ainda não era uma modalidade tão profissional como agora, resumia-se muito a algumas semanas no verão, por isso foi com algum receio que eu olhei para o futuro como jogador, mas nessa altura já havia quem vivesse da modalidade, como o Madjer, o Alan, por exemplo. E eu sempre acreditei: ‘Se eles conseguem, eu também vou conseguir’. Sabendo que, para o conseguir, teria de ser fora de série, como eles eram na altura», conta Jordan.

Filho de pais separados, Jordan vivia com a mãe, com a avó materna e com os irmãos. A família, não sendo «rica», como o jogador lembra, deu-lhe a força para arriscar seguir o sonho. «A minha mãe sempre me apoiou, a minha avó e os meus irmãos também. E consegui, graças a eles e ao meu trabalho, porque, quando queremos uma coisa e nos dedicamos a 100 por cento, conseguimos alcançá-la», explica.

E, claramente, não se arrependem desse apoio. «Têm muito orgulho no que eu consegui. O meu irmão, que também é jogador do futebol de praia, [representou o Sotão e o Sporting] diz que eu sou o ídolo da família.»

As chuteiras passaram a atrapalhar e começou a preferir os pés na areia… mesmo que gelada

Durante algum tempo Jordan ainda foi conciliando o futebol de praia com o futebol de onze, mas confessa que, depois de jogar na praia, «quando ia para a pré-época, ao início as chuteiras já atrapalhavam um bocado.»

Mas jogar na praia não é mais difícil? «É mais difícil em determinados aspetos. Correr na areia não é como jogar em piso duro, obriga a treinar mais para nos adaptar-nos a esse tipo de esforço.»

«No futebol de praia a parte física é muito importante, daí os jogadores terem de estar durante o ano todo preparados. Eu treino todo o ano, piso na areia durante todo o ano, para quando chegar o momento das competições não sentir tanto», conta.

Campeão europeu pelo Sp. Braga (foto Sp. Braga)

Areia, mesmo no Inverno? «Sim. A partir do dia 21 de janeiro vou juntar-me à equipa em Braga porque vamos ter o Mundial de Clubes, mas, até lá, vou fazendo os treinos no ginásio e na praia da Nazaré… na areia, com os pés gelados, como devem imaginar. Mas pronto, como nós estamos habituados, já nem sentimos nada. Já vamos preparados para o frio, para essas coisas todas…», garante.

Olhando para trás, acha que se tivesse tido a oportunidade certa poderia ter no futebol de onze uma carreira tão bem-sucedida como no futebol de praia? Jordan nem hesita na resposta. «Não sou bruxo, mas muito dificilmente iria ser o melhor do mundo», diz a rir. [As gargalhadas de Jordan são uma constante no registo da entrevista e, diz quem o conhece bem, que são uma constante no dia a dia.]

«Vendo o que consegui alcançar, tomei a opção correta. Eu tinha qualidade para jogar futebol de onze. Não sei onde iria chegar, mas nunca iria atingir aquilo que atingi no futebol de praia. Era praticamente impossível.»

«Estava mais nervoso nesse dia do que na final do Mundial»

Portanto, a praia era realmente «a praia» de Jordan, passe a redundância, e rapidamente isso se tornou evidente para todos, incluíndo para ele. «Ao longo dos anos, fui sentindo que poderia vir a ambicionar ser o melhor do mundo. Já estava na seleção, jogava com e contra os melhores do mundo e sentia que, com trabalho, muito querer e dedicação, poderia vir a ser também. E assim foi. Trabalhei muito e consegui alcançar.»

Em novembro passado, Jordan foi eleito o Melhor Jogador do Mundo na Gala Beach Soccer Stars, numa votação em que participaram capitães e selecionadores de todas as seleções envolvidas nas competições da Beach Soccer. Foi apenas o segundo português a receber este galardão, depois de Madjer o ter vencido em 2015 e 2016.

Jordan sonhava em chegar a este troféu, mas acreditava mesmo que o iria conseguir? «A partir do momento em que entrei para os três finalistas, comecei a achar que era possível. Pelo que joguei, pelo que conquistei… se bem que os restantes nomeados também fizeram grandes épocas e também ficaria bem entregue se fosse para eles…. Mas eu pensava: ‘Na seleção ganhámos tudo, no Braga, ganhámos tudo, eu fui o melhor jogador em praticamente todas as competições’…»

«Mas enquanto não abriram o envelope e disseram o meu nome… estava nervoso, admito. Estava com receio. Quando disseram que eu era o melhor, nem consegui pensar. Levantei-me da cadeira, mas acho que nem me sentia a andar», conta Jordan, com mais uma gargalhada.

«Estava mais nervoso nessa altura do que na final do Mundial. Finais já tive várias, mas ali era a primeira vez», acrescenta, fazendo questão de frisar: «Embora o titulo de Campeão do Mundo tenha sido mais importante para mim do que ser eleito o melhor jogador do mundo. Não trocava uma coisa pela outra.»

O título mais especial

E menos de um mês depois, o título de campeão do Mundo pela Seleção Nacional, com Jordan a marcar três dos golos da final. Foi o titulo mais especial? «Foi. Em 2015 já tínhamos sido campeões e, foi cá, o que também foi especial, mas este título acabou por ser a cereja no topo do bolo deste ano.»

«Não só individualmente, mas também coletivamente. Foi uma época fantástica para Portugal, acabou por ser o melhor ano de sempre. Não vai ser fácil repetir, mas com muito trabalho, muita dedicação, vamos sonhar com isso porque há muito valor em Portugal», frisa o ala.

Sentiam que iam ser campeões? «Nós sabemos que Portugal é favorito em qualquer competição em que entre, como o Brasil, por exemplo, mas hoje em dia também há outras seleções que se podem intrometer», explica Jordan.

«A partir do momento em que o Brasil foi eliminado, as coisas começaram a cozinhar-se mais para o nosso lado. Mas também outras seleções poderiam aproveitar, como a Itália, que acabou por ir à final e se calhar ninguém esperava. Isso é sinal de que o futebol de praia está a evoluir.»

 

O ala diz que a evolução da modalidade em Portugal também «tem sido notória». «A Federação Portuguesa de futebol tem feito um bom trabalho, tem alargado as competições. Antigamente o campeonato nacional era uma ou duas semanas no verão, as equipas juntavam-se em Matosinhos e pronto», lembra.

«Hoje em dia há mais equipas, mais praticantes, mais competições, com a Taça de Portugal também, e isso é bom. O futebol de praia merece que os jogadores vejam que pode ser uma modalidade que podem praticar no futuro e viver disso. Mas é preciso equipas de nome como o Benfica e o FC Porto investirem, para os jogadores se sentirem aliciados», aponta.

«A comunicação social também já dá mais destaque, o público também vai acompanhando mais, já há quem viaje de costa a costa para ver os jogos, o estádio enche nos jogos da seleção. Dantes era mais: ‘Já que estamos aqui na praia, vamos ali ver o futebol de praia.’ O futebol de praia está a ganhar o respeito do público e isso é bom porque é sinal de que estamos a trabalhar bem.»

Com a Seleção, no Mundial de 2015 [foto FPF]

E sente-se um ídolo para as novas gerações? «Tenho reparado que, se parar num café ou em qualquer sítio, e estiverem miúdos, vêm pedir um abraço, pedem para eu jogar à bola com eles na praia. Isso é o melhor de tudo», diz Jordan, com emoção a voz.

«Eu lembro-me de quando era pequenino, também tinha ídolos, e eles verem aqui o melhor do mundo perto deles… Ao Cristiano Ronaldo eles não podem tocar, não é? Mas eles aqui têm o melhor do mundo e podem falar, dar um abraço. E o que eu quero que eles percebam é que um dia também podem ser assim porque eu também era como eles», frisa, revelando a mensagem que passa aos jovens que o procuram.

«Digo-lhes que sejam amigos dos amigos, que estudem, que não queiram ser melhores do que ninguém à força, não passem por cima de ninguém, que continuem a trabalhar. Estar ligado ao desporto é bom porque os afasta da noite, do tabaco, do álcool… e tudo isso é muito importante.»

Os companheiros de equipa do Sp. Braga também revelam admiração pelo ala, como se nota pela alcunha carinhosa que lhe dão. «Chamam-me canhota de ouro ou canhotinha de ouro… mas é mais canhotinha porque eu tenho as pernas magrinhas», revela com mais uma gargalhada.

«Eles dizem que a minha perna esquerda vale ouro... Se valesse, eu vendia-a já», brinca. E a direita? «É só para subir degraus. De vez em quando acerta aqui um remate ou outro, mas é mais cega», assegura.

Nem tudo foi ouro pelo caminho

Jordan fala com o Maisfutebol no ponto alto da carreira, num momento em que está em Portugal, na sua Nazaré, rodeado pela família.

«Tenho um filho e duas filhas, até nisso sou campeão. O mais velho, que vai fazer sete anos, já acaba por ser um bocadinho vaidoso do pai para os amigos da escola. ‘O meu pai fez isto, o meu pai ganhou aquilo… ‘ Mas em casa não é assim, eu nem conhecia essa faceta dele», conta Jordan.

E vai seguir-lhe as pisadas? «Ele gosta de futebol e até tem alguma qualidade. É óbvio que eu gostava que ele ficasse ligado ao futebol, mas eu quero é que ele seja feliz», assegura.

Então e as filhas, vão continuar o legado do pai na areia? «Hummm… acho que não. Uma é bebé, só tem um ano. A outra tem três anos e não gosta de futebol. Só quer chegar a casa com maquilhagem e essas coisas.»

O orgulho ao falar dos filhos é evidente e a felicidade também. Mas o futebol de praia muitas vezes o levou para longe deles.

Jordan foi pai muito novo e viu-se obrigado a ir jogar para fora de Portugal, para conseguir aliar o sonho do futebol de praia e conseguir sustentar a família. Itália, Rússia, Dubai, China, Turquia [além de ter representado em Portugal o Belenenses, o Sporting e o Sp. Braga]… As temporadas fora de casa são longas e fazem perder momentos importantes da vida da família, como o nascimento das duas filhas.

«Tenho muita pena. Do meu filho eu estive presente no parto, mas das minhas duas filhas não consegui ir. Quando nasceu a do meio, eu estava em Itália, estava a jogar pelo Catânia e quando cheguei de um jogo, abri uma mensagem da minha mulher e tinha lá a foto da minha filha acabada de nascer. Fiquei tão feliz. Tive muita pena de não estar lá, mas também senti que era por causa deles. Que o pai está longe a trabalhar, mas é por causa deles», conta Jordan, destacando o apoio da mulher.

«A Melissa tem-me apoiado muito. Eu passo muito tempo fora de casa e ela está sozinha com três crianças, não é nada fácil. Eu tenho ficado agora com os três enquanto ela trabalha e sei o quanto é difícil. Imagino um ano inteiro. Ela também é uma grande campeã.»

«Sei que posso alcançar mais»

E para terminar a entrevista, voltámos aquela frase inicial de Jordan, àquele «o que é que eu posso pedir mais?», e não resistimos a uma provocação: Então e agora, vai reformar-se? Jordan reage com mais uma gargalhada. «Oh, já estão a querer enterrar-me.»

«Não! Ainda só tenho 28 anos. Longe disso! O objetivo é continuar no topo, lutar pelos títulos coletivos. Sei que, se continuar neste caminho, posso alcançar mais. Tenho a noção de que tenho capacidades para continuar no topo, mas só com trabalho e agora a responsabilidade é maior.», diz, e garante: «Nada mudou em mim. Continuo a ser o mesmo, trabalhador, porque só assim se consegue manter o nível.»

No Mundialito de Futebol de Praia de 2019 (foto FPF)

 

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