Guerreiro: o cowboy de Pegões fez-se rei da montanha no Giro - TVI

Guerreiro: o cowboy de Pegões fez-se rei da montanha no Giro

Ruben Guerreiro, que se 'criou' a comer presunto com Eddy Merckx e conquistou a primeira camisola para Portugal numa grande volta, em entrevista ao Maisfutebol

Mais longe e mais alto é uma rubrica do Maisfutebol que olha para atletas e modalidades além do futebol. Histórias de esforço, superação, de sucessos e dificuldades.

Ruben Guerreiro não era desconhecido antes de brilhar no topo das montanhas da Volta a Itália, onde se consagrou como o melhor trepador.

Aos 26 anos, o ‘cowboy de Pegões’, já tinha no currículo um top-20 na Volta a Espanha, além do título de campeão nacional no primeiro ano de elite.

O facto de ter saído de Portugal com apenas 20 anos fez com que o nome não fosse tão conhecido por aqueles que vibram com o ciclismo, sobretudo, quando a Volta a Portugal vai para a estrada.

Mas tornou a conquista da camisola azul do Giro numa surpresa que o deixou de ser a cada etapa de uma das provas mais duras do ciclismo internacional.

Depois de ter inscrito na história o nome, Ruben Guerreiro sentou-se à conversa com o Maisfutebol e aceitou olhar para lá do título de rei da montanha em Itália.

O ciclista a quem os amigos tratam por cowboy por ter sido sempre tão irrequieto e enérgico, andou três semanas a agitar o Giro e garante que a alcunha já pegou no pelotão internacional.

E é bom que mais ninguém esqueça este nome. Porque ele garante que gosta de ser protagonista e mostra ser alguém que ainda há por conquistar do que no já ficou para trás.

Nesta conversa, Guerreiro recordou como foi conviver com Eddy Merkx, um dos maiores nomes da história do ciclismo mundial, com quem comia presunto... e bebia conhecimento numa ''verdadeira universidade da vitória'.

Mas também falou das dificuldades que passou com várias lesões em momentos-chave, que resultaram na explosão de sentimentos que foi a celebração ‘à Ronaldo’ no momento em que venceu a 9.ª etapa da Volta a Itália. Uma vitória que lhe mostrou que tudo tinha valido a pena.

E do futuro. Ruben afirma ser um ‘colecionador’ de camisolas e até confidenciou quais são as duas que lhe enchem as medidas e estão no ponto de mira.

A etapa, porém, começa muito antes. Em Pegões Velhos, com um miúdo de oito ou nove anos que se lançou no BTT.

Maisfutebol: Como começa a sua ligação ao ciclismo?

Rúben Guerreiro: Comecei bastante novo, no BTT, aos oito ou nove anos. Também jogava futebol, mas a partir dos 14, deixei o futebol e passei a dedicar-me mais ao BTT. Depois, aos 16, ingressei na primeira equipa de ciclismo de estrada, comecei a ter bons resultados e foi uma montanha sempre a escalar.

MF: Havia alguma tradição familiar no ciclismo ou BTT?

RG: Sim, o meu pai fazia provas amadoras e um tio do meu pai trabalhava na Alemanha e treinava com ciclistas profissionais. Depois quando regressou a Portugal, ofereceu uma bicicleta ao meu pai, que me começou a influenciar um pouco, o que foi fundamental.

MF: Emigrou muito cedo para se dedicar ao ciclismo, também fruto de bons resultados. Como surgiu essa decisão?

RG: Sim, saí de Portugal em 2014, com 20 anos. Nesse ano tinha tido bons resultados: ganhei a Volta a Portugal do Futuro e na Volta a França do Futuro conseguia sempre acompanhar os melhores na montanha. Classifiquei-me entre os 15 primeiros, quando ainda era muito novo. Depois, através do João Correia [empresário de ciclistas], cheguei a uma equipa norte-americana [Axeon Cycling Team], que é a melhor equipa sub-23 do mundo. E a partir daí, foi competir muito. Fiz voltas à Califórnia, comecei a competir pela seleção de sub-23, continuei a ter bons resultados e isso catapultou-me para equipas de World Tour.

MF: Como foi a experiência nos EUA?

RG: Obrigou-me a passar vários meses lá. O meu inglês era fraco, mas tive de me adaptar. Conheci novas realidades e como fiz muitas competições e era ciclista profissional, isso ajudou-me a evoluir bastante. É uma experiência que vou guardar para sempre como muito positiva.

MF: Como ciclista, qual foi o significado de trabalhar com alguém que com apelido Merckx [Axel Merckx, filho de Eddy, um dos melhores ciclistas da história]?

RG: Foi como andar na universidade da vitória. Chegámos a ir à casa do Eddy Merckx depois de uma Liège-Bastogne-Liège de sub-23 e estivemos com ele a comer presunto, a falar de ciclismo e a ouvir histórias tanto do pai como do filho. Por isso é que eu digo que aquilo era a verdadeira universidade da vitória. Em nós, mais novos, aquilo que nos ficava era a mentalidade vencedora.

MF: Saíam de lá ainda com mais vontade de vencer?

RG: Claro. Com vontade de ficar na história da equipa e conseguir acabar a carreira como um ciclista vencedor. Porque era isso que aprendíamos do Axel e do Eddy.

MF: Houve alguma coisa mais que tenha ficados desses contactos com o Eddy Merckx?

RG: O melhor foi mesmo passar essas tardes em casa deles a ouvir aquelas histórias. É algo que fica marcado nas nossas vidas como algo motivador. Ouvi-lo contar aquelas histórias de corridas em que a mente tinha de ser mais forte do que o físico. Porque às vezes o físico está no limite, mas a força mental faz a diferença para se conseguir vencer. Esse foi o principal ensinamento que tirei dele e do qual me vou recordar sempre.

MF: Mas para a alimentação esses convívios não deviam ser muito bons. Além do presunto, estando na Bélgica, de certeza que também havia batatas fritas…

RG: Por acaso, nesses dias não houve (risos). Havia uma pata de presunto e foi engraçado. Aquilo é mais da nossa tradição do que da deles. Deixou-me um pouco surpreendido, mas como ele gosta muito do nosso país e tem uma grande ligação a Espanha, tem o hábito de servir os amigos com uma boa pata de presunto e um bom vinho.

MF: Voltando ao ciclismo. Nunca correu em Portugal como sénior. Foi importante mostrar-se a todos em 2017, sagrando-se campeão nacional de elites?

RG: Sim. Foi uma vitória que não esperava conseguir no meu primeiro ano de elite. É algo muito difícil, ainda para mais porque estava a correr sozinho. Estava numa boa forma e foi sem dúvida muito bom. Envergar as cores nacionais era algo que queria muito. Até porque gosto muito de usar camisolas diferentes e aquela branquinha com as cores nacionais é sempre muito apetecível. Andar durante um ano lá fora com as cores nacionais foi um enorme orgulho e á algo que quero voltar a conquistar no futuro.

MF: Não ter corrido como sénior em Portugal é bom ou mau sinal?

RG: Para a carreira internacional, é bom. Mas claro que gostava de correr em Portugal. Só que para atingirmos um certo nível internacional e correr nas grandes voltas e nas grandes clássicas, é preciso estar nas equipas de World Tour, e as equipas nacionais são continentais e não é possível. Nesse sentido, para a carreira, sem dúvida que é bom estar numa equipa que me permita fazer as grandes provas internacionais.

MF: Mas existe algum tipo de dissabor por não ser possível fazê-lo cá? Por ser impossível segurar os maiores talentos em Portugal?

RG: Eu acho que o nosso ciclismo está em evolução. É muito bom a nível interno e a federação tem feito um trabalho de exportação muito bom. Claro que isso nos tira a oportunidade de correr a Volta a Portugal, por exemplo, mas acho que um dia será possível. E a Volta a Portugal não deixa de ter a importância nacional que tem por nós [ciclistas que estão em equipas World Tour] não a corrermos. Mas acho que no futuro, eu e o João [Almeida] poderemos fazer a Volta e apagar essa mágoa.

MF: Mas não pensa voltar tão cedo…

RG: Penso… Espero continuar em equipas World Tour o máximo de tempo possível. Mas também quero fazer a Volta a Portugal e acho que é possível fazê-lo com uma equipa internacional, apesar de o calendário da Volta ser complicado de encaixar entre o Tour e a Vuelta. Mas ficaria muito contente e orgulhoso se o pudesse fazer.

MF: Não pensa acabar a carreira sem fazer uma Volta a Portugal, então?

RG: Não, não, não. Isso não pode acontecer. Vou fazer tudo para um dia fazer pelo menos uma Volta.

MF: No ano passado fez top-20 na Vuelta e foi considerado a revelação da prova. Isso fez com que passasse a ser visto no pelotão internacional com mais respeito?

RG: Sim. Eu tenho tido alguns azares na minha carreira depois de ter deixado de ser sub-23. Mas tentei sempre encontrar o meu caminho e subir degrau a degrau. Fui conseguindo alguns bons resultados, mas as vitórias estavam a escapar-me. Tal como nessa Vuelta: corri todos os dias para ganhar e estive bastante perto. Fiz segundos e quartos lugares em etapas e esse 17.º não era um objetivo, porque não ia para lutar pela geral, mas foi sinal de regularidade. Nessa corrida tive sempre muito boas sensações e reencontrei-me como ciclista. Isso catapultou-me para ter mais motivação e este ano, finalmente, consegui a tão desejada vitória.

MF: Após a vitória na 9.ª etapa do Giro disse: «Só eu e poucas pessoas sabemos o que sofri para ver o trabalho recompensado». Que sofrimento todo foi esse?

RG: É muito simples: tive muitas lesões, quase sempre em momentos importantes. E não é fácil ultrapassar essas barreiras. Porque como jovem, via os meus colegas a conseguirem seguir com as suas carreiras, tentava focar-me em mim, mas aparecia-me sempre uma barreira no caminho. Eu tive sempre de recomeçar e não foi uma, nem duas, nem três vezes que tive de recomeçar do zero. Foram muitas vezes. Foi mesmo muito complicado, mas acho que assim até sabe melhor. Deu-me muita força e ensinou-me muito, que me permite levar uma boa base para a minha carreira.

MF: Que tipo de lesões teve?

RG: Tive várias tendinites, rotura dos ligamentos cruzados… até apendicite e problemas com os dentes. Sempre durante a época, coisas que me obrigavam a parar. Tenho um longo historial de lesões neste início de carreira, mas sempre consegui ultrapassar da melhor maneira. Acho que agora encontrei o equilíbrio que procurava e espero continuar a ter sucesso como neste ano.

MF: Assim percebe-se melhor a explosão de emoções no festejo ao ganhar a etapa do Giro?

RG: Talvez. Porque desde júnior que eu sempre ganhava pelo menos uma corrida por ano. Em 2018 e 2019 foram os únicos em que não consegui. Só fiz segundos, o que não tem nada a ver com uma vitória. Foi essa explosão que aconteceu porque era um sentimento que já estava guardar há demasiado tempo. Por isso foi uma enorme emoção.

MF: Quem estava naquele festejo do ‘eu estou aqui’? O Cristiano Ronaldo, o Rúben Guerreiro, ou tudo junto?

RG: (risos) Fui eu! Foi uma coisa que fiz por instinto que nem eu controlei. Durante uma corrida, além de levarmos o corpo a um limite gigante, isso também acontece com o lado emocional. O que nos faz passar por sentimentos que não controlamos. E foi isso que me aconteceu.

MF: Aquela foi uma etapa muito, muito dura, com montanha, chuva e temperaturas muito baixas…

RG: Extamente. Foi uma guerra para conseguir entrar naquele grupo que fugiu aos 80km e para ganhar tempo ao pelotão foi preciso muito trabalho e muitas tentativas. Depois o frio, montanhas enormes, chuva. Foi sem dúvida um dia para recordar.

MF: Quando sentiu que aquela vitória não escava mesmo, quando ficou sozinho com o Castroviejo?

RG: Não. Porque apesar de eu ter melhor ponta final do que ele – que é mais um ciclista de contrarrelógio, apesar de passar bem a montanha – a matemática por vezes dá errado. Eu estava confiante, mas sem pensar muito na ponta final. Só acreditei mesmo que ia ganhar quando eu ataquei e o Castroviejo ficou sentado na bicicleta, nos últimos 100 ou 150 metros. Aí percebi que ia chegar primeiro e nem olhei para trás.

MF: Qual foi a primeira coisa em que pensou quando cortou a meta de braços erguidos?

RG: É difícil pensar em alguma coisa. Tentei perceber onde estava e o que tinha acontecido. Até perguntei ao massagista que me estava a acompanhar se aquilo era mesmo verdade. Porque nem acreditava. Depois, como o dia estava tão mau, as ideias congelaram completamente. Só mais tarde, depois da conferência, quando estava a caminho do hotel é que me lembrei dos momentos em que precisei de pensar que um dia tudo iria valer a pena. Aquele foi esse dia.

MF: Uma das coisas que disse no final dessa etapa aos jornalistas portugueses foi 'guardem espaço para continuar a falar dos portugueses no Giro'. Sabia que ainda iria haver muito para escrever?

RG: Sim, sem dúvida. O João estava encaminhado para fazer um grande Giro e eu queria fazer o meu também. Queria lutar por mais uma etapa, mas depois consegui a camisola azul e é difícil somar as duas coisas. Eu nem fazia ideia de que Portugal nunca tinha ganhado uma camisola numa grande volta. Depois a equipa deu-me apoio para tentar esse feito e passou a ser muito importante para mim e para a equipa.

MF: Diz que o objetivo da equipa era lutar por etapas. Teve de haver negociação para ir antes atrás da camisola azul?

RG: Sim, isso foi conversado porque eles queriam mais etapas. Mas como eu já tinha vencido uma, a prioridade era a montanha. Se conseguisse mais uma etapa, melhor ainda. Mas o ciclismo está tão competitivo que é difícil juntar as duas coisas. Não estive assim tão longe de conseguir uma etapa, houve uma ou duas oportunidades em que, talvez por más decisões minhas, não deu. Mas tudo faz parte da aprendizagem.

MF: O facto de a Education First ter utilizado no Giro uma camisola tão feia… (diferente, aliás) também ajudou a esforçar-se mais por andar de azul?

RG: (gargalhada) O nosso jersey foi muito falado, mas eu adoro ter camisolas diferentes de todos os outros, por isso, ainda foi outra motivação para ir atrás daquela camisola. Não é a minha cor favorita, mas passei a gostar daquele azul (risos).

MF: Depois de ter vestido a camisola de rei da montanha, ainda a perdeu uns dias para o Giovani Visconti. Como viveu esses dias?

RG: Faz tudo parte do processo. No ciclismo nada está escrito num papel, temos de contornar sempre as adversidades.

MF: Fez saber ainda melhor a conquista final…

RG: Sim. Tive de dizer para mim mesmo que as coisas mais difíceis são as que sabem melhor. Porque ele recuperou a camisola, cheguei a ter 31 pontos de desvantagem e vi as coisas muito difíceis, mas como foi uma luta tão grande com ele, desde o quilómetro zero, irei recordar para sempre aquela luta tão difícil.

MF: Na etapa mais dura da Volta a Itália, depois de ter estado em fuga, ainda tentou puxar pelo João Almeida quando o apanhou em quebra no Stelvio. Foi algo pensado, ou do momento?

RG: Desde o primeiro dia que falámos e ajudávamo-nos um ao outro com aquela palavrinha de amigo, porque já eramos amigos antes do Giro. É sempre bom ter ali um amigo e como as coisas estavam a correr bem a ambos, ainda nos ajudávamos mais. Ele queria que eu ganhasse a camisola azul, eu queria que ele ganhasse o Giro. Mesmo estando em equipas diferentes, era possível dar uma ajudinha aqui ou ali.

MF: Foi isso que fez então no Selvio…

RG: Sim. Quando vi que já não tinha pernas para a etapa, já não me interessava fazer terceiro, quarto ou décimo na etapa e por isso levantei um bocadinho o pé. E já tinha falado com o diretor da minha equipa sobre a possibilidade de ajudar o João em alguma situação e ele disse-me que sim. Desde que não prejudicasse a equipa nem a mim, estava tudo bem. Por isso, tentei ajudá-lo naquele momento, porque às vezes uma pequena ajuda pode fazer diferença. Ainda tentei rebocá-lo um pouco, mas as minhas forças também já não eram muitas. Dei-lhe umas palavrinhas para o motivar e fi-lo de todo o coração. Se pudesse, teria feito mais.

MF: Já percebeu que o nome Ruben Guerreiro vai ficar para sempre na história do ciclismo e do desporto português?

RG: Sim, começo a perceber isso (risos). Mas como ciclista ambicioso, não me vou contentar com isso. Eu não consigo contentar-me com o que tenho. Este é um desporto muito competitivo. Eu sei que nunca vou conquistar tudo aquilo que ambiciono, mas passo a passo, vou tentar lutar por mais vitórias e por escrever mais páginas na história.

MF: Não pensa muito no peso do feito daquilo que fez, então?

RG: Não. O segredo deste desporto é não pensar muito nas coisas. Elas acontecem quando têm de acontecer. Vou fazer sempre o trabalhinho de casa e pouco a pouco, tentar levantar mais vezes os braços e festejar à Ronaldo. Esse é o meu objetivo para os próximos dez anos.

MF: O que é que um ciclista pode aspirar ganhar depois de conquistar uma camisola azul no Giro?

RG: Gostava muito de continuar a colecionar camisolas. Adoro ter várias diferentes e gostava de um dia envergar a camisola às bolinhas de líder da montanha [no Tour]. E também a de campeão do mundo. Esses são os meus maiores objetivos.

MF: Não se imagina a lutar pela geral de uma grande volta?

RG: Acho que pode ser. Mas o título de ‘caça-etapas’ enquadra-se melhor nas minhas características. E se me derem a escolher entre ser oitavo ou nono de uma geral, ou ganhar uma etapa e lutar por uma camisola da montanha, assino por baixo a segunda opção. Gosto de ser protagonista e espero ter esse papel nas próximas grandes voltas.

MF: Já é protagonista em Pegões. A terra já não é conhecida só pelo vinho…

RG: (risos) Sim, esperamos que possa ser também a capital das bicicletas. Que mais pessoas andem de bicicleta porque espaço não falta. A bicicleta faz bem a tudo e a todos.

MF: Sente que é de uma casta especial?

RG: (mais risos) Talvez. Nasci no meio delas. Mas há que trabalhar muito e eu vou continuar a fazer tudo por isto.

 

 

 

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