Há um ano pensou desistir, a resiliência valeu-lhe o bronze no Europeu - TVI

Há um ano pensou desistir, a resiliência valeu-lhe o bronze no Europeu

João Crisóstomo brilhou nos Europeus de judo, depois de quase ter desistido de competir na modalidade que pratica desde os 5 anos

«Mais longe e mais alto» é uma rubrica do Maisfutebol que olha para atletas e modalidades além do futebol. Histórias de esforço, superação, de sucessos e dificuldades.

«A pandemia de covid-19 foi má para muita gente também no desporto. Mas foi muito boa para mim em termos de autoconhecimento. Permitiu-me parar para pensar. Há um ano, estava a pensar arrumar o kimono e desistir da competição. Não desistir do judo, mas deixar de competir. Estava frustrado e a competição não me estava a fazer bem.»

Podíamos começar a falar de João Crisóstomo a recordar o princípio de tudo. O miúdo de cinco anos que adorava filmes de artes marciais e que queria ir para o karaté, mas a quem a mãe disse: «não há karaté aqui perto, mas tens judo». «E eu aceitei, sempre fui bem-mandado. E há 22 anos que não quero outra coisa.»

Também podíamos iniciar este texto a falar da forma brilhante (e inesperada) como ganhou a medalha de bronze nos Europeus de Lisboa, há menos de um mês.

Podíamos. Mas não o fazemos. Porque a vida dos atletas de alta competição não é feita apenas do brilho das conquistas ou da forma como se apaixonam por uma modalidade.

E é muito importante que todos percebam isso.

A história de grande parte dos atletas fora do futebol é feita, acima de tudo, de sacrifício pessoal. O que faz com que, apesar de brilharem a nível internacional, se interroguem mais vezes do que seria expectável se toda a dedicação ainda vale a pena. Fá-los pensar que já chega de tantos sacrifícios. E essa é mais uma luta que têm de vencer. Quase sempre sem apoio. Sozinhos. Ou apenas com aqueles que lhes são mais próximos.

É por isso que optamos por começar a falar de João Crisóstomo por um momento baixo. Também porque sabemos que se há característica que ele tem, é resiliência.

Resiliência. Essa foi a faceta mais visível para quem o viu combater nos Europeus de judo, vencendo quatro combates no prolongamento. O último dos quais, o que lhe valeu a medalha de bronze na categoria de -66 quilos, teve quase nove minutos de duração.

Mas não foi difícil, garante. Afinal, a luta mais difícil tinha sido travada com ele mesmo. E Crisóstomo tinha-a vencido, bem antes de entrar no tatami.

«Meti as ideias más numa gaveta e desfrutei do Europeu»

Poucas pessoas poderão olhar para a pandemia que confinou o mundo no último ano como uma coisa boa. Mas para João Crisóstomo esse foi um período fundamental para chegar ao melhor resultado da carreira.

«Quando a pandemia surgiu, eu estava longe do apuramento para os Jogos Olímpicos e sentia-me muito frustrado. A competição não me estava a fazer bem e pensei mesmo arrumar o kimono e desistir», revela em conversa com o Maisfutebol, explicando as razões para tanta frustração.

«Os últimos cinco anos foram passados a preparar-me para os Jogos. Foi um período de obstinação total: em perder peso, em competir, esquecer a vida pessoal…», detalha.

Foi por isso que a paragem da competição, imposta pela pandemia, lhe foi tão útil.

«Pude parar para pensar na minha vida. Ponderar se iria continuar a competir, ou se era altura para parar e seguir o caminho pela área do ensino de judo, ou pela investigação, que são áreas de que gosto muito. Esse tempo permitiu-me perceber que sou mais do que apenas aquela pessoa que luta e que se esforça para chegar aos Jogos. Pensei em terminar a minha tese, apostar em dar mais aulas em colégios. No fundo, permitiu-me alargar o leque de opções dentro do judo e deixar de estar tão focado em competir», continua.

Foi, portanto, já com as ideias já arrumadas que Crisóstomo regressou ao Tatami para os primeiros estágios da seleção.

«Depois do primeiro confinamento, voltou a rotina dos estágios e dos treinos e fui para ver no que dava. E percebi que tinha voltado a desfrutar. Entretanto surgiu a oportunidade de ser professor assistente na Universidade Lusófona, que é a minha universidade e o meu clube; ainda me candidatei a ser treinador na Finlândia, e a verdade é que fui para o Europeu com a cabeça no sítio certo. Arrumei as ideias más todas numa gaveta, levei apenas as coisas boas e voltei a ser feliz no tapete», assegura.

«Ficava ali o tempo que fosse preciso, mas não saía sem a medalha»

Para alguém que nasceu e cresceu em Santa Iria Azóia, dificilmente haveria motivação maior do disputar um Europeu ao lado de casa.

E também por isso, os Europeus de Lisboa foram tão especiais. A medalha só veio dar um sabor ainda mais especial. E em momento algum Crisóstomo pensou que ela não ia ser dele, depois de ter chegado ao combate decisivo. Apesar de o judoca não se considerar um «bom competidor».

«Sempre tive um problema de confiança. De não acreditar no meu valor. Eu sei que sou muito bom atleta, mas acho que não era bom competidor. Mas no dia 16 de abril, não falhei. Fui um grande competidor», orgulha-se.

O percurso no Europeu não deixa margens para dúvidas. Os quatro combates que João Crisóstomo venceu, fê-lo no ‘golden score’. Mas apesar dos quatro prolongamentos, o judoca português garante que conseguiu levar os combates para o sítio que queria.

«Tive sempre os combates controlados e estava mesmo a desfrutar da prova. E quando entrei no tatami para o combate da medalha, tive logo a sensação de que o combate era meu», começa por dizer sobre a luta com o azeri Dzmitry Minkou.

«Não ia sair dali sem a medalha. Estava preparado para estar o tempo que fosse preciso. Nem pensei no cansaço, tinha tempo para ficar cansado depois», atira sorridente.

Agora torna-se mais clara a razão pela qual, já com a medalha ao peito, Crisóstomo garantiu que aquele bronze lhe «sabia a ouro».

«Por todas as dúvidas que tinha e por tudo aquilo que passei, senti que a medalha era o culminar do trabalho e dos sacrifícios que fiz para conseguir ir aos Jogos. E mesmo que não consiga ir, já é ótimo ter conseguido esta medalha, ainda para mais em casa», exulta.

«Sou atleta, treinador e professor. Não tenho férias desde 2016»

É João Crisóstomo que volta a trazer o tema dos Jogos Olímpicos para a conversa. E apesar de sentir que a medalha nos Europeus já fez valer toda a preparação, o judoca garante não a encarar como prémio de consolação para uma possível não qualificação para Tóquio. «Nada disso. Estou na luta», assegura.

Aliás, poucas horas depois da conversa com o nosso jornal, foi para ir lutar por esse objetivo que embarcou para a Rússia, onde disputa mais um Grande Prémio.

E é ele próprio que nos ajuda a compreender as contas de um apuramento que assume não será fácil, mas para o qual ainda tem também o Mundial que se disputa em Budapeste, no mês de junho.

«Lutar pelas medalhas agora na Rússia e ficar do sétimo lugar para cima no Mundial ajudaria muito a conseguir o apuramento», explica.

Mas é também quando se fala dos Jogos Olímpicos que João Crisóstomo lamenta a falta de cultura desportiva que existe em Portugal, onde tanto se exige aos atletas nas grandes competições, sem se pensar em tudo o que eles passam para chegar às fases de decisão. Um problema que vem de cima, acredita o judoca.

«A cultura desportiva em Portugal é péssima. Quem nos governa ainda não percebeu que o desporto pode ser um elo condutor para uma sociedade melhor e mais justa», começa pode dizer, detalhando.

«Vemos poucas modalidades a ter sucesso. A canoagem tem tido, o atletismo também, mas são quase sempre modalidades individuais e não é por acaso que isso acontece», defende.

E dá o próprio exemplo. Aquele que melhor conhece.

«Eu sou atleta, treinador e professor. Tenho de me desdobrar para conseguir sobreviver no judo. Faço isto desde que acordo até ir dormir, todos os dias. Não tenho férias desde 2016, por exemplo», relata.

Apoio a sério foi aquele que recebeu dos pais. E é por isso que se lembra dos sacrifícios que eles fizeram para que se pudesse dedicar ao judo. Sem nunca lhe cobrarem nada em troca.

«Só consegui chegar onde cheguei graças ao apoio familiar que tive. Os meus pais foram inexcedíveis e sempre me disseram para eu fazer aquilo de que gosto. Disseram-me para eu fazer o meu caminho e nunca me pressionaram a seguir outro rumo», elogia, agradecido.

E nesse ponto, João Crisóstomo faz mais uma reflexão importante.

«O judo tem sido a minha vida. A única exigência que os meus pais me fizeram foi que cumprisse com as minhas obrigações na escola também. E quando as minhas notas desciam, eles não me ameaçavam tirar o judo, que é algo que vejo alguns pais a fazer. Pelo contrário, se eu dizia que não ia para ficar a estudar, eles obrigavam-me a ir. Diziam: ‘tens que cumprir as tuas obrigações, tanto na escola como no judo. Organiza-te para cumprires’», realça.

O legado de Crisóstomo… ou dos Crisóstomo

A exigência familiar compreender-se-ia sempre. Mas mais ainda porque, entretanto, João tornara-se exemplo também dentro de casa. Atrás dele, também a irmã Joana, quatro anos mais nova, seguiu a modalidade.

João e Joana Crisóstomo (a Joana mais velha) ainda crianças

E com sucesso, ou não estivéssemos a falar de uma judoca que se sagrou vice-campeã europeia de juniores em 2020, e foi sétima no Europeu de seniores no mesmo ano.

E além de João e de Joana, há ainda outra irmã a dar os primeiros passos no judo. Outra Joana, aliás. «somos três irmãos, um João e duas Joanas, não é difícil», brinca.

«A mais nova, que tem dez anos, até foi a que começou mais cedo no judo, aos três anos. Espero que também venha a gostar tanto como nós e que vá longe», deseja, aceitando que o legado do miúdo que adorava filmes de artes marciais se tornou importante.

«Espero que perdure este legado de pessoas ativas fisicamente, porque acho que isso é muito importante», aponta o atleta que tem o objetivo de, no futuro, ser selecionador nacional, sobretudo para poder trabalhar com jovens da formação.

E a avaliar pela resiliência mostrada João Crisóstomo, não será difícil adivinhar que este será um legado que vai durar, durar e perdurar. Porque é muito difícil derrubá-lo.

 

 

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