«O andebol foi diminuindo no meu coração e a medicina aumentando» - TVI

«O andebol foi diminuindo no meu coração e a medicina aumentando»

Belmiro Alves passou pelo ABC na época 2017/2018 (Foto: ABC)

Belmiro Alves jogou no FC Porto, ABC e Águas Santas, mas agora o andebolista deu lugar ao médico que esteve já na linha da frente na luta contra a covid-19

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Mais longe e mais alto é uma rubrica do Maisfutebol que olha para atletas e modalidades além do futebol. Histórias de esforço, superação, de sucessos e dificuldades.

Durante 17 anos, Belmiro Alves foi jogador de andebol, no últimos dois foi também médico. Agora, aos 26 anos, o jovem que cresceu (literalmente) nos pavilhões, fechou a porta ao desporto, como jogador, pelo menos, e entregou-se totalmente à medicina, tendo estado a trabalhar como voluntário no hospital de campanha montado no Pavilhão Rosa Mota, no Porto, por causa da covid-19.

«A pandemia nada teve a ver com a decisão de terminar a carreira no fim da época, que já estava tomada há muitos meses», contou Belmiro Alves ao Maisfutebol. Mas acabou por interferir no adeus. «Como a época acabou mais cedo não tive a despedida dentro de campo, e fica assim um amargo na hora da despedida. Por outro lado, até torna as coisas mais fáceis, tira aquele sofrimento do último jogo, aquele sofrimento da despedida», admitiu, garantindo que já está mentalizado com o título de ex-atleta.

«Neste momento, na minha cabeça já só sinto o andebol com nostalgia, já não o sinto como presente.»

O desporto entrou na vida de Belmiro Alves bem antes de ter começado a praticar andebol, com oito ou nove anos. «Venho de uma família ligada ao voleibol. O meu pai jogou andebol e voleibol na segunda divisão, há muitos anos, e era diretor do voleibol do Leixões. Contratou uma série de jogadores, entre eles, a minha mãe, que é russa e veio para cá jogar. O meu irmão [Jorge Alves] também jogava voleibol a alto nível e teve também um percurso bonito no voleibol de praia», contou o até agora atleta do Águas Santas, recordando o impacto do desporto na sua infância.

«Como a minha mãe era jogadora e depois também treinadora, eu cresci nos pavilhões. Ia com a minha mãe quando ela ia dar treino e depois à noite quando ela ia treinar. Passava o meu dia no pavilhão».

Quando quis começar a praticar desporto, Belmiro procurou algo diferente do voleibol. «Já estava farto daquilo na minha vida», explicou, a rir. «Tentei inicialmente o futebol, fui às escolinhas do FC Porto na Constituição, mas não tinha muito jeito, e depois experimentei o andebol, gostei e segui.»

Ainda chegou a experimentar outro desporto - «Competi e cheguei a ser campeão nacional duas vezes nos juvenis de pesca desportiva de alto mar» -, mas o bichinho do andebol já estava enraizado e bem firmado no coração de Belmiro Alves.

Belmiro Alves, ainda bebé, com a mãe

«Até aos 16 anos era completamente obcecado por andebol, só queria o andebol na minha vida. Pensava tirar um curso e seguir o exemplo do meu irmão [que também é médico], mas nunca tinha perspetivado ser médico», contou. Até que, aos 16 anos, uma lesão o obrigou a uma operação ao joelho.

«Aí pensei: ‘Vou recuperar desta, mas se tiver outra, como vai ser o andebol?’ O desporto pode acabar de um dia para o outro só com uma lesão. E eu na altura, apesar de ser ainda adolescente, percebi que tinha de ter algo mais para me salvaguardar. E foi então que decidi que ia lutar para ser médico», recordou.

E porquê medicina? «Sempre tive mais aptidão para ciências e era muito curioso relativamente à saúde. Em criança até queria ser veterinário porque gostava muito de animais», contou, acrescentando: «Obviamente que o meu irmão teve uma influência muito grande.»

O momento-chave foi então aos 16 anos e, partir daí, focou-se em conseguir o objetivo. «Estava no 10.º ano, ainda fui a tempo de lutar por tirar boas notas e, com muito esforço, consegui. Depois com o passar dos anos, com a minha evolução desportiva, aos poucos o andebol foi começando a diminuir no meu coração e a medicina a aumentar, o que culminou agora com o acabar de carreira precoce», explicou.

Nos juniores do FC Porto

Belmiro Alves exemplificou o esforço que foi preciso para conciliar o andebol e a medicina. «Comecei a jogar no FC Porto e estive até aos 20 anos. Fiz lá a minha formação toda, com treinos diariamente conciliados com a escola. Mais tarde, quando entrei na faculdade, foi quando integrei o plantel sénior e na altura treinávamos duas vezes por dia. A minha rotina era: às 08 horas tinha aulas, saía das aulas às 10 e ia a correr para o pavilhão e geralmente tínhamos treinos das 11 às 13 horas. Depois ia outra vez para a faculdade para ter aulas ao início da tarde e ao fim da tarde tinha outra vez treino. Foi esta vida durante dois anos.»

«Uma pessoa quando tem muito tempo, às vezes tem mais dificuldade para o rentabilizar. Eu consegui organizar-me nesta rotina que era uma azáfama, completamente caótica, porque tinha o tempo todo contado. E tinha muita disciplina e compromisso porque se faltasse, não estava só a faltar a mim próprio, mas também aos outros, porque somos uma equipa», explicou, adiantando que «inicialmente até tinha planeado fazer o curso com mais calma, com mais tempo, mas as coisas começaram a correr bem» e percebeu que «iria conseguir conciliar as duas coisas».

Mesmo depois de ter concluído o curso, durante o internato de formação geral, foi preciso conciliar muito bem tudo. «Estive um ano a trabalhar no Hospital de São João, com urgências durante a noite, com jogos no dia a seguir, e muitas outras situações que também já foram complicadas», explicou.

«Ficou muita coisa pelo caminho. Isso é uma coisa que eu ainda sinto. Sempre fiz parte das seleções jovens e desde os 13/14 anos, por ano, só tinha uma semana de férias. Acabava a época no clube e tínhamos logo estágios da seleção, competições no estrangeiro, europeus. São tudo coisas que valorizam uma pessoa e adorei tudo. Mas nunca consegui ter férias com a família mais longe, viajar com os amigos, aprender uma língua, fazer um curso de fotografia, o que quer que seja. Não podia porque o desporto me limitava o tempo», disse Belmiro Alves, apontando: «O desporto deu-me muito, mas perdi muita coisa. A decisão de terminar agora foi porque senti que já estava a perder mais no desporto do que estava a ganhar.»

A primeira internacionalização

O médico deixou também algumas críticas à federação, dizendo que «não ajuda os atletas que trabalham, principalmente na forma como organiza as competições».

«Quando estudava, a altura em que tinha mais jogos à segunda-feira e à quarta-feira era em fevereiro, que é a altura em que as universidades estão em exames. Outro exemplo é o de termos muitas vezes jogos à quarta-feira e termos que meter dias de férias porque as coisas não estão estruturadas para apoiar quem trabalha. E, tirando os três grandes, e se calhar o Madeira SAD, em todos os outros clubes as pessoas têm de sobreviver de alguma coisa e trabalhar», apontou.

As lesões também tiveram um papel nesta decisão. «Infelizmente sempre tive propensão para ter lesões. Quando era criança lembro-me de no FC Porto ter dois treinos por dia e depois ainda ter jogo à noite. O corpo aguentava e eu sentia-me feliz em campo, mas, com o passar dos anos, uma lesão aqui, outra acolá, a nossa motivação acabar por cair um pouco. Fui resiliente muitas vezes, mas sentia que já não tinha aquele prazer a jogar porque já não conseguia fazer as mesmas coisas, treinar da mesma forma. Gosto do andebol quando estou ao meu nível mais alto.»

Nos festejos do hexacampeonato do FC Porto

Olhando para trás, Belmiro Alves sente que talvez pudesse ter chegado a um nível mais alto no andebol. «Quando era miúdo era rotulado como jovem promessa do andebol nacional que depois acabou por não se concretizar tão bem como muitos esperavam. A altura em que integrei o plantel sénior foi quando entrei na faculdade. Sinto que não falhei em nenhuma das coisas, mas foram tempos difíceis. E aos poucos comecei a sentir que estagnei andebolisticamente, também por causa das lesões.»

«Apesar de tudo eu estava na equipa que foi hexacampeã, na altura com o professor Ljubomir Obradovic. Eu era tão novo, ia tendo poucos minutos. Sinto que os usei bem, mas aquele ainda não era o meu lugar, precisava de crescer e fui para o Águas Santas. Mas as coisas não correram bem e aos poucos senti que o meu futuro no andebol não ia de encontro às expectativas e a medicina começou a puxar para o outro lado. Fiquei muito feliz com a minha carreira porque sinto que poucas pessoas conseguiram conciliar as duas coisas como eu fiz. Podia ter estado um nível acima no andebol, mas não me arrependo de nada», garantiu.

Recusando apontar os títulos ou a presença nas provas internacionais como o momento mais alto, Belmiro Alves prefere olhar para as pessoas que conheceu no desporto ou com quem viveu momentos importantes.

«Uma das coisas de que muito me orgulho, e me faz sentir muito feliz, é ver colegas que também eram promessas conseguirem afirmar-se. Neste momento são os meus ídolos. O Diogo Branquinho, o Carlos Martins, o Miguel Martins, o Rui Silva, o Luís Frade, o Alexandre Cavalcanti… não vou dizer mais porque depois se me esquecer de algum, ainda me ligam a queixar-se», apontou, a rir.

Belmiro Alves com Diogo Branquinho e Carlos Martins no campeonato do mundo universitário

Em novembro o médico vai fazer o exame de acesso à especialidade, razão pela qual não estava a trabalhar desde o final do ano passado, para se preparar. Mas voluntariou-se para trabalhar no hospital de campanha montado no Pavilhão Rosa Mota, no Porto, onde esteve desde o início até ser dada a alta aos últimos doentes na passada sexta-feira.

«Foi uma experiência enriquecedora, bonita», contou. «Todos os que lá estavam eram voluntários e o ambiente e o espírito de interajuda eram extraordinários. Reinava o espírito de missão, estávamos sempre a pensar em prol dos doentes. Todos os doentes que estavam ali estavam mais felizes do que se estivessem no hospital e quando eu ia para lá não sentia que ia trabalhar.»

«Num hospital há pessoas que gostam de lá estar e outras que estão como que obrigadas e isso torna o ambiente logo mais negativo, cinzento», explicou, destacando também a vantagem de ter trabalhado com médicos de diferentes especialidades.

Os doentes que Belmiro Alves e os colegas atendiam no hospital de campanha «estavam, na sua maioria estáveis, mas tinham doenças de base, eram pessoas mais idosas, e que não tinham condições de ir para casa ou para os lares».

«Todos os dias apareciam situações que tínhamos de gerir e alguns tiveram de ser transferidos novamente para o hospital onde tinham outros meios», contou.

Eram, todos, doentes com covid-19 e por isso havia uma responsabilidade acrescida no uso do fato e das medidas de segurança. «Sabíamos que, ao mínimo erro, podíamos contagiar-nos a nós e à nossa família.»

Belmiro Alves no hospital de campanha do Porto

Este e outros hospitais de campanha foram criados como suporte aos hospitais centrais, para tentar evitar que ficassem sobrecarregados devido à pandemia.

«No início, pelos relatos que os meus colegas me davam na urgência, vi que estava a tornar-se um pouco caótico. Mas, felizmente, fomos dos últimos países da União Europeia a ser afetados, vimos o exemplo de outros países, e tomámos medidas mais cedo», contou Belmiro Alves, recordando:

«Houve uma altura em que houve uma grande afluência às urgências de pessoas com sintomatologia respiratória, muitas já a precisarem de ser entubadas e, quando achávamos que o SNS não iria suportar estes doentes todos com uma doença mais grave, porque, apesar de tudo, a covid na maioria das pessoas não causa uma doença grave, gradualmente as coisas foram acalmando e a urgência voltou ao normal nas últimas semanas. Felizmente correu tudo bem e temos sido um caso de sucesso, até agora.»

Ainda assim, e apesar de dizer que «as medidas da Direção-Geral da Saúde têm estado a ser bem tomadas e nos timmings certos», Belmiro Alves deixa um aviso:

«Da forma leviana como as pessoas estão a abordar o desconfinamento, tenho medo que haja outro pico. É provável que venha a acontecer. É um vírus que ainda pouco conhecemos para podermos falar em relação ao futuro. É muito possível que haja outra vaga da infeção e acho que é melhor as pessoas estarem preparadas porque isto ainda não acabou. Não pode haver nem o pânico, nem o desrespeito em relação ao vírus.»

Além disso, o médico recordou que «houve muitas pessoas que não foram tratadas a outras doenças devido à covid, porque não se dirigiam às urgências por medo ou porque sentiam que podia haver outros que precisavam mais de ir à urgência. Se calhar houve muito mais mortes indiretas.»

Em jogo no Águas Santas

O trabalho no hospital de campanha está assim, para já, terminado e Belmiro Alves vai voltar a virar-se para os livros para estudar para o exame da especialidade. «Agora quero tentar abraçar uma carreira médica numa especialidade o mais cedo possível, uma carreira que me orgulhe com todo o trabalho que isso envolve.»

Mas o andebol não fica no passado. «Recebi o convite da Associação Atlética de Águas Santas para integrar o departamento médico, de forma a não me desligar totalmente do andebol e ajudar o clube», contou, confessado: «Não sei como vai ser estar nos pavilhões e saber que não vou jogar. Não sei se me vai dar alguma nostalgia.»

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