Vilaça «enfrentou» tubarões e crocodilos para chegar ao topo do mundo - TVI

Vilaça «enfrentou» tubarões e crocodilos para chegar ao topo do mundo

Vasco Vilaça tem 20 anos, é vice-campeão do mundo e tem vivido em 2020 um ano de muito sucesso

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Mais longe e mais alto é uma rubrica do Maisfutebol que olha para atletas e modalidades além do futebol. Histórias de esforço, superação, de sucessos e dificuldades.

As mazelas ainda não sararam. E é por isso que o apanhamos a entrar num hospital para avaliar o «estrago» que traz no corpo.

As escoriações nas costas, ombro, braços, mãos e joelhos não o preocupam muito. Só a anca é que o deixa mais apreensivo pela dificuldade em caminhar.

Mas calma. Não tem nada a ver com os «tubarões e crocodilos» do título. Não se aflija.

Essa «luta» foi apenas contra as fantasias próprias da cabeça de uma criança de seis anos e foi vencida já há muito. Já lá iremos.

O que faz doer o corpo a Vasco Vilaça, atual vice-campeão do mundo de triatlo, é uma queda feia que teve no segmento de ciclismo da prova de estafetas mistas que valeu ao Benfica sagrar-se vice-campeão europeu no domingo.

É que depois de ter partido a cerca de um minuto do líder da prova no último percurso, o atleta de 20 anos arriscou tudo para ainda conseguir dar o título europeu às águias. E essa dedicação ficou-lhe bem marcada no corpo.

«Queria muito ajudar o Benfica a ser campeão europeu e dei tudo de mim para conseguir», começa por dizer, resumindo a prova que fez em Alhandra.

«Na natação coloquei um ritmo muito alto, que normalmente daria para aguentar uns cinco minutos. Depois, no ciclismo, andei sempre no risco: cortei as curvas ao máximo, andei quase sempre de cabeça baixa para ganhar aerodinâmica e perto do final, com o cansaço e a raiva por não conseguir apanhar o líder, arrisquei muito na descida antes da meta e não consegui fazer a última curva», revela, com as memórias (e as feridas) ainda em carne viva.

«Saí muito magoado, com o corpo todo queimado, pedrinhas nas feridas… Olha, acabei por estragar o corpo todo», resume, garantindo que isso não o fez abrandar mais do que dois ou três segundos.

«Foi o tempo de perceber que não tinha nada partido, agarrar na bicicleta – que ficou ainda pior do que eu – e carregá-la a correr com os sapatos de encaixe até à transição para a corrida para pelo menos segurar o vice-campeonato europeu para o Benfica», acrescenta.

E essa meta foi alcançada. Na primeira participação efetiva na prova – já tinha integrado a equipa, mas como «suplente» - Vasco cumpriu o objetivo de «não desapontar» a restante equipa, constituída por João Silva, Melanie Santos e Vera Vilaça, a irmã de Vasco.

Além do contributo desportivo, de alguém que é «apenas» vice-campeão do mundo, a entrega e sacrifício mostrados pelo atleta, de 20 anos, valeram-lhe muitos elogios.

Do medo da água… à coragem de ir morar sozinho aos 15 anos pelo triatlo

Começámos a contar a história de Vasco pela última parte, mas é preciso recuar até 2006 para encontrar o início da dedicação a uma modalidade para a qual foi «empurrado» por não saber nadar. Já então, como no domingo passado, ao lado da irmã Vera, um ano mais velha do que ele.

«Eu e ela já corríamos e andávamos de bicicleta, impulsionados pelos nossos pais. E como eles queriam que aprendêssemos a nadar, o triatlo foi a forma que encontraram para tornar o processo mais interessante», recorda.

Na altura, começava a ser conhecido por todos o nome de uma das melhores atletas portuguesas de todos os tempos: Vanessa Fernandes.

«Ela era e é um ídolo e os resultados que foi tendo deram-me mais vontade de continuar no triatlo. Lembro-me de ser muito pequeno e ficar colado à televisão a ver a prova em que ela conseguiu a medalha de prata nos Jogos Olímpicos», confidencia.

Aquando dessa conquista olímpica de Vanessa Fernandes, já o pequeno Vasco Vilaça tinha vencido a primeira batalha que precisou de ultrapassar para ter sucesso na modalidade.

E é aqui que entram tubarões e crocodilos.

«Quando comecei, as primeiras provas que fiz foram de duatlo… porque tinha medo da água», confidencia.

Mas como assim, medo da água?

«A culpa é das fantasias que uma criança cria na cabeça. As provas eram feitas em águas um pouco sujas, nas quais não se via o fundo. Por isso, a primeira vez que tentei fazer uma prova de triatlo, não me atirei à água porque parecia que via lá tubarões e crocodilos», revela, sorridente.

Ora, vencida a «luta» com esses seres das águas, Vasco Vilaça arrancou para uma carreira recheada de títulos, apesar da sua curta idade.

Com alguma naturalidade, começou a conquistar campeonatos nacionais nas diferentes categorias, algo que lhe deu um «instinto competitivo» que ainda hoje mantém bem vivo.

Em 2014, não esquece, representou Portugal pela primeira vez numa prova internacional. E o ambiente que viveu, mesmo não tendo vencido, mostrou-lhe que era aquela a vida que queria seguir.

Nessa altura, já Vasco se mudara de Portugal para a Suécia, país para o qual os pais emigraram quando ele tinha apenas 13 anos, devido à crise económica que se viveu no final da primeira década deste século.

Mas seria já depois de ter arriscado mudar-se sozinho, aos 15 anos, para uma escola que lhe permitia dedicar-se de forma mais «profissional» ao triatlo, que conseguiu o primeiro título internacional de relevo.

«Em 2016 fui campeão europeu de Youth, mas esse é um título que não é muito prestigiado. Mas no ano seguinte, no primeiro ano de júnior, fui campeão europeu nesse escalão, o que me fez perceber que o nível que eu tinha era muito alto».

«Esse título deu-me uma motivação enorme para continuar a dedicar-me a sério ao triatlo e a lutar contra todas as barreiras que me aparecessem pela frente», assegura ainda.

Vice-campeão do mundo e o ouro ali… a dois segundos

Apesar da distância, os resultados nacionais e internacionais de Vasco Vilaça chamaram a atenção do Benfica, que o integrou no seu projeto olímpico, permitindo-lhe, além de tudo mais, conhecer a «culpada» por ter apostado no triatlo.

«É uma honra enorme seguir os passos da Vanessa Fernandes. Para mim é mesmo muito especial poder trocar ideias e aprender com ela. Imagina, tê-la a dar-me os parabéns depois de uma prova…», destaca.

Contactar e aprender diretamente com alguém que idolatra é, contudo, apenas um dos pontos positivos de ter passado a vestir de águia ao peito em 2017.

«O Benfica foi fundamental para me ajudar a tornar triatleta profissional. Foi no clube que me ensinaram o que é preciso para ser um dos melhores do mundo», elogia, continuando.

«Juntar-me a esta equipa com os melhores triatletas nacionais e dos melhores do mundo foi uma oportunidade gigante para evoluir e perceber o que é preciso ter a mentalidade de um vencedor», acrescenta.

Mentalidade de vencedor foi também aquilo de que Vasco Vilaça precisou ter para chegar ao topo do mundo com apenas 20 anos, num 2020 que virou o mundo do avesso.

Mas que o triatleta soube aproveitar da melhor forma.

«Este foi um ano muito diferente, como é óbvio. Mas no meio de tanta coisa má, permitiu-me alcançar um resultado que não esperava alcançar tão novo», assume.

O resultado de que fala Vasco Vilaça é a medalha de prata no campeonato do mundo, conquistada no início de setembro.

Este ano, precisamente devido à pandemia, o campeão do mundo foi decidido apenas numa prova e não no final de oito provas pontuáveis para o título, como acontecia desde 2009.

E em Hamburgo, na prova que interessava, Vasco Vilaça só foi ultrapassado pelo francês Vincent Luis, que renovou um título que lhe pertencia desde o ano anterior. Mas que só foi dois segundos (!!) mais rápido do que Vasco Vilaça.

 «Juntamente com os Jogos Olímpicos, estamos a falar da prova com mais impacto do mundo», exclama Vasco, que alcançou o melhor resultado de sempre de um homem português no triatlo, apenas ultrapassado pelo título mundial que Vanessa Fernandes conquistou em 2007.

O segredo, garante, esteve no treino. E no foco que conseguiu ter… graças à pandemia.

«Ter tantos meses a fio dedicados a treinar, sem as habituais provas, deu-me uma capacidade física enorme. Pela primeira vez, foquei-me a 100 por cento no triatlo. Como o mundo parou, eu pude dedicar-me apenas a treinar», explica.

E aqui teve um papel fundamental a companheira de treino: Vera Vilaça. Os dois irmãos passaram o confinamento em Portugal, num espaço fora da cidade que lhes permitiu focarem-se totalmente no treino, com os resultados que estão à vista.

Isto, apesar de ter chegado ao mundial um pouco «às escuras».

«Como não houve competições, eu não sabia como estava, em comparação com os outros, mas a verdade é que bati muitos atletas medalhados em Mundiais e Jogos Olímpicos», orgulha-se.

Por isso mesmo, Vasco percebeu qual é o caminho que terá de seguir daqui em diante.

E essa dedicação até lhe valeu também o título no Campeonato do Mediterrâneo, no passado sábado.

Exatamente: na véspera de se ter esfarrapado todo para tentar dar o título europeu de estafetas ao Benfica.

Agora, resta-lhe recuperar. Porque ele garante que as «medalhas» que a última prova lhe deixou marcadas no corpo, também são uma lição importante.

«Aprendi com a queda. Percebi que às vezes é preciso arriscar, mas demasiado risco também pode colocar tudo a perder. Aquela queda podia ter feito com que perdesse o segundo lugar. Felizmente não aconteceu, mas serve de aprendizagem», garante.

Um campeão está sempre a aprender, não é verdade?

 

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