Kolisi fintou a fome para alimentar a esperança de uma nação unida - TVI

Kolisi fintou a fome para alimentar a esperança de uma nação unida

O incrível exemplo do primeiro capitão negro da seleção de rugby da África do Sul

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Mais longe e mais alto é uma rubrica do Maisfutebol que olha para atletas e modalidades além do futebol. Histórias de esforço, superação, de sucessos e dificuldades.

«É fácil falar sobre ultrapassar momentos difíceis e lutar para ter oportunidades. Mas é difícil quando há dias em que não tens comida; ou que não podes ir à escola; ou ainda nem sapatos tens. Quando  pensamos sobre isso, percebemos que houve uma altura em o Siya não tinha nada para comer. E sim, ele é o capitão que levou a África do Sul à conquista deste Mundial. É isso que ele representa.»

Na verdade, Siya Kolisi representa muito mais do que aquilo que Rassie Erasmus, treinador da seleção sul-africana de rugby, afirmou após os Springboks terem conquistado o título mundial de rugby, no passado fim de semana.

Kolisi representa a esperança de união de um país em tumulto há décadas.

Por isso, é mais do que apenas emblemático que Kolisi, o primeiro capitão negro do maior símbolo desportivo do Apartheid - o racismo legalizado que vigorou na África do Sul durante quase 50 anos (1948-1994) - tenha erguido aquele que foi apenas o terceiro título mundial de uma das modalidades mais fortes no país de Nelson Mandela.

E desengane-se quem pensar que é apenas a cor de pele a justificar a força do exemplo de Siya Kolisi. Afinal, a história de vida do capitão dos Springboks podia muito bem ser a de qualquer sul-africano negro nascido num meio pobre de um país que ainda se debate com a erradicação da segregação racial.

Muito mais do que um sonho

Minutos depois de conquistar o mundo, uma jornalista perguntou a Kolisi se, em criança, alguma vez sonhara com um momento assim.

«Quando era criança, a única coisa em que pensava era como conseguiria fazer a próxima refeição. Nunca sonhei com um dia como este».

Desarmante a resposta que lhe surgiu de impulso.

Recuemos, então, às origens do jogador nascido em 1991, quando o Apartheid vivia os últimos anos.

Siya Kolisi nasceu no seio de uma família pobre, na cidade de Zwide, nos subúrbios de Port Elisabeth, quando a mãe tinha apenas 15 anos e o pai frequentava o último ano de escola.

Devido às dificuldades dos progenitores, foi uma avó que assumiu a educação daquela criança que, mesmo assim, não se livrou de uma infância dura.

Já em junho de 2018, quando se preparava para se tornar no primeiro capitão negro dos Springboks, em entrevista ao The Guardian, o jogador abordara as dificuldades que passou na juventude.

«Foram tempos duros. Era criança e muitas vezes não havia comida. Eu tinha de ir para a cama esfomeado», declarou, sublinhando não se envergonhar das origens e saber que estava longe de ser caso único no país.

«Não tenho vergonha do sítio de onde venho e tenho noção que a minha história se encontra em muitos pontos com a de muitos sul-africanos. E essa é a minha motivação», assumia então.

Kolisi sabia bem daquilo que falava. E se lhe pedissem exemplos, nem precisava de sair do seio familiar para explicar que dificuldades são essas.

Isto, porque em 2012, com apenas 21 anos, Kolisi travou uma dura batalha judicial para conseguir adotar os dois irmãos mais novos, que mal conhecia e que haviam ficado ao cuidado de uma senhora após a morte da mãe, quando Kolisi tinha apenas 15 anos.

A oval que lhe meteu a vida a rolar

Quando tinha 12 anos, Siya Kolisi foi descoberto num torneio da terra natal. O rugby preparava-se então para lhe mudar a vida, dando-lhe a oportunidade de ir estudar para um prestigiado colégio em Port Elizabeth.

Foi para correr atrás da oval que Kolisi deixou para trás a pobreza, mas também aqueles que lhe eram próximos. E essa mudança obrigou-o a ultrapassar inúmeras barreiras, desde logo pela dificuldade de se expressar em inglês. Isto, porque ele apenas dominava a língua Xhosa – um dos 11 idiomas oficiais da África do Sul.

Ao mesmo tempo que estudava com miúdos da sua idade e representava a equipa da escola, Kolisi jogava nos séniores seniores do African Bombers, conjunto amador de Zwide, defrontando adversários adultos.

E se isso lhe traria vantagens com um desenvolvimento precoce na maturidade em jogo, trouxe-lhe também alguns dissabores.

«Lesionei-me num tornozelo a jogar pelos African Bombers e mal conseguia andar. Tive de dizer que me tinha aleijado a jogar futebol na rua e estive lesionado durante três meses», recordou na mesma entrevista ao Guardian.

É fácil, portanto, perceber que o rugby era a vida de Kolisi. E quando este tinha 16 anos, assistiu a um momento memorável: o segundo título mundial dos Springboks.

Ainda assim, aquele miúdo - que teve de ir para um pequeno bar perto de casa assistir à final por não ter televisão em casa – estaria longe de imaginar que seria ele a erguer o próximo troféu Webb Ellis.

«Momento muito maior» do que o do Invictus

O rugby. Sempre o rugby.

Poucas nações terão o curso da sua história tão influenciada por um desporto como a África do Sul.

Um dos principais passos para o início da reconciliação racial no país foi dado em 1995, um ano após o fim do Apartheid, quando os Springboks venceram pela primeira vez o Mundial. Ainda para mais, porque essa conquista aconteceu em Joanesburgo, numa caminhada em que Nelson Mandela conseguiu unir negros e brancos no apoio à seleção de rugby.

Aquando desse episódio marcante – imortalizado em 2009 por Clint Eastwood, no filme Invictus – havia apenas um jogador negro.

Mas a prova de que as coisas demoraram a mudar, é que 12 anos depois, em 2007, no segundo título sul-africano, eram apenas dois os jogadores negros.

Bem diferente, do que aconteceu agora, em 2019, quando o selecionador Rassie Erasmus conseguiu a seleção racialemente mais equilibrada de sempre.

Contudo, é o facto de ser uma equipa capitaneada por Kolisi que levou John Smit, capitão aquando do título de 2007, a considerar que o jogador nascido em Zwide podia protagonizar algo maior ainda do que aquilo que África do Sul vivera em 1995.

«Foi icónico quando François [Pienaar] levantou a Taça do Mundo com Madiba [nome carinhoso pelo qual o povo sul-africano trata Mandela], e foi incrível eu poder fazer isso sozinho com Thabo [presidente de África do Sul em 2007]. Mas se o Siya erguer esse troféu no sábado, será um momento muito maior que 1995. Muito maior. Isso mudaria o rumo do nosso país», defendeu Smit à BBC, na véspera da final disputada no Japão.

Kolisi com o presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa

Kolisi não parece temer a responsabilidade. Mas sabe que nada poderá fazer sozinho. E foi isso mesmo que declarou depois de erguer o tão ambicionado troféu. Num discurso elogiado um pouco em todo o mundo pela simplicidade da mensagem, Siya Kolisi sublinhou precisamente a inevitabilidade de um passo que tem de ser dado em conjunto por todo um país.

Fê-lo ainda no relvado, instantes depois de terminar o jogo, num calmo que nem parecia vir da boca de alguém que acabara de concretizar o sonho de um país com mais de 56 milhões de habitantes.

«Estou agradecido por todos os desafios que enfrentámos, com o povo sul-africano a apoiar-nos. Temos tantos problemas no nosso país, mas conseguimos formar uma equipa como esta… Sabemos que tivemos origens distintas, que somos de raças diferentes, mas viemos com apenas um objetivo. Espero que tenhamos conseguido mostrar a toda a África do Sul que, juntos, podemos puxar por tudo aquilo que ambicionamos», declarou.

E na opinião do jogador que envergou a mítica camisola 6 dos Springboks – a mesma do capitão do título de 1995, que Mandela fez questão de vestir também e que se tornou símbolo da união – o país vive um momento como nunca viveu. Só tem de o saber aproveitar.

«Para ser honesto, nunca vi a África do Sul como neste momento. Claro que sabemos aquilo que o título de 95 fez pelo país, mas agora, com tudo aquilo que alcançamos… Como o nosso treinador nos disse, não jogamos apenas por nós, mas por todas as pessoas no nosso país», terminou, com voz embargada.

Mais tarde, na conferência de imprensa, quando questionado diretamente sobre o seu exemplo de superação, Kolisi desvalorizou porque garante ser apenas um entre tantos outros.

«Na África do Sul, muitos de nós só precisamos de uma oportunidade. Há tantas histórias por contar… Espero que tenhamos conseguido dar ao povo um pouco de esperança, para que se una como país, tornando-o melhor», finalizou.

E se ainda poderia haver dúvidas sobre a importância do feito alcançado pelos Springboks, uma outra voz juntou-se à de tantos outros: Desmond Tutu.

Aos 88 anos, já são poucas as intervenções públicas do homem que lutou ao lado de Mandela pelo fim do Apartheid – e que recebeu o Nobel da Paz em 1984. Mas decidiu fazê-lo após a conquista do título mundial de rugby para sublinhar a importância do que tinha sido alcançado sob a liderança de Kolisi.

«Somos um país especial, com um povo extraordinário. Hoje, o nosso pai, Nelson Mandela, está a sorrir nos céus. O que vocês alcançaram foi mais do que vencer o campeonato mundial de rugby: vocês devolveram a crença a uma nação que duvida de si mesma.»

Artigo original: 4-11-2019; 23h50

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