Malangatana, todo o mundo perde um génio (parte II) - TVI

Malangatana, todo o mundo perde um génio (parte II)

Com aulas tarde fora, e, por vezes, à noite, saía da minha Faculdade, torneava Santa Maria e corria para uns dedos de conversa com o irmã.

4. Volvidos esses meses, encontrei-o em Maputo. A pintar um Fiat-pintar com aqueles murais que o celebrizaram-para os amigos de velhos tempos, Ferreira dos Santos. E era visível o agravamento do estado de saúde. Agravamento esse que, para mim, se tornou alarmante quando com ele jantei, no Polana, e assisti ao seu patente e intravável mal estar. Percebi logo que se impunha um check-up imediato, telefonei para Lisboa a solicitar um, no Hospital da Luz, ao eficiente Director José Roquete, e aprazei-o para a sua ida, cinco dias depois. Estávamos em 14 de Novembro. Infelizmente, os factos ultrapassaram os desejos. A 19, Malangatana chegava a Lisboa, tendo tido problema muito grave no voo. E era internado no Hospital de Santa Maria.

Começava, aí, uma saga que duraria quatro semanas. Com altos e baixos. Exames e confirmações progressivas. E naquele piso 5, em Medicina Interna, cada médica, cada enfermeira, cada auxiliar, cada voluntária era mais uma amiga conquistada por aquele coração de ouro. Havia quem quisesse autógrafo. Quem quisesse mostrar uma pintura sua, para apurar o juízo do Mestre. E ele sorria, docemente, e nunca se cansava de atender os outros.

Num quarto individual, cabíamos Família, amigos, pessoal. Sentados na cama, em cadeiras, ou de pé, ou espreitando da porta ou circulando no corredor à espera de vez. Com aulas tarde fora, e, por vezes, à noite, saía da minha Faculdade, torneava Santa Maria e corria para uns dedos de conversa com o irmão.

Antes e depois da temeridade de o acompanhar na inauguração de exposição em Almada. Com colóquio, percurso ao ar livre-em parte feito com o meu casacão pelos ombros-, num fim de tarde de vento gélido. Tudo bem pesado para quem já intuia o que tinha e, ainda assim, sorria, e abraçava e beijava e gozava aquele momento único. Único mesmo, como o percebemos os poucos que sabíamos o que se passava e como tinham sido generosos os clínicos ao deixarem Malangatana sair, por umas horas, do seu hospital.

E mais outros dedos de conversa depois de ter encontrado um televisor à medida daquele quarto, daquela tomada e do móvel que, rapidamente, surgiu para o suportar. O que eu vi e aprendi, em palavras e silêncios, e em presenças e ausências, encheria um diário sobre a natureza humana. Sendo a primeira página dedicada ao irmão excepcional que, ali, vivia as suas provações.



5. Concluídos os exames e prevista terapêutica para o seu mal-terapêutica a ministrar em Matosinhos, no Hospital Pedro Hispano, onde tinha filha médica zeloza-, foi para casa. Uns dias. Que passaram a correr, que o estado de saúde não deixava de se mostrar grave. E voltou a Santa Maria. Agora em quarto partilhado. Onde voltei numa noite em que chegado a minha casa, recebi telefonema a dizer que devia partir, no dia seguinte, para o Porto, e insistia, febril, em falar comigo. Era tarde. Estava sem carro. Apanhei um táxi e fui, a voar, de Cascais a Lisboa.

Foi a despedida pessoal-ainda falaria, por telefone, para o Porto, a desejar Boas Festas-, passava a meia-noite. Numa cama, em frente, um doente, perturbado, berrava que o sequestravam sem piedade. Noutras, pacientes com aspecto de situação complicada, pareciam dormitar. A auxiliar-inexcedível-acendeu uma luz ténue. E Malangatana, que se

agitava num sono que se diria atravessado por monstros como os que, tantas vezes, desenhou ou pintou, demorou a acordar. Estava cheio de febre, achei eu ao apertar a sua mão. E, depois, falámos. Dele. Do que sentia. Da sua ida. Do que eu tinha para lhe dizer. Apertei-lhe a mão direita. E voltou a adormecer ou, pelo menos, a passar pelo quase-sono

de antes. E não largava a minha mão. E eu sentia que devia ficar ali mais um pouco. Que, em rigor, devia ficar ali, ponto final parágrafo. Tinha acabado de lhe prometer que o visitaria, no Porto, no início de Janeiro, passadas as Festas. Já ele estaria a fazer o seu tratamento. Mas, no fundo, sabia, que não haveria tratamento nenhum. E que era mesmo a nossa despedida.
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