Hillsborough mudou o futebol, mas 30 anos depois ainda é uma causa - TVI

Hillsborough mudou o futebol, mas 30 anos depois ainda é uma causa

Tragédia de Hillsborough faz 27 anos: as fotos da cerimónia

A tragédia que a 15 de abril de 1989 vitimou 96 pessoas na meia-final da Taça de Inglaterra entre o Liverpool e o Nottingham Forest desencadeou mudanças estruturais profundas no futebol inglês, que se estenderiam ao futebol europeu. Mas a Inglaterra levou muito mais tempo a lidar com as causas e as responsabilidades da tragédia, num longo e tortuoso processo que ainda não chegou ao fim

A eliminatória de Liga dos Campeões entre FC Porto e Liverpool acontece num momento emotivo para os «reds», quando passam 30 anos sobre a tragédia de Hillsborough. Uma efeméride que o clube e a cidade vão assinalar este ano de forma deliberadamente discreta. Porque Hillsborough ainda não encontrou o seu desfecho. A tragédia que naquele 15 de abril de 1989 vitimou 96 pessoas na meia-final da Taça de Inglaterra entre o Liverpool e o Nottingham Forest desencadeou mudanças estruturais profundas e imediatas no futebol inglês, que se estenderiam a todo o futebol europeu. Mas a Inglaterra levou muito mais tempo a lidar com as causas e as responsabilidades da tragédia, num longo e tortuoso processo que ainda não chegou ao fim.

O Liverpool vai assinalar a data antes do jogo de domingo com o Chelsea, mas não irá fazer nenhuma cerimónia em Anfield na segunda-feira. Apenas abrirá o Kop, para que os adeptos possam sentar-se na bancada num momento de reflexão. A cidade vai parar às 15h06 de 15 de abril, um minuto de silêncio à hora exata a que o jogo foi interrompido, quando a tragédia se consumava. Mas foi cancelada uma cerimónia que estava prevista para o centro de Liverpool. Porque o momento é delicado. O julgamento de David Duckenfield, o chefe da polícia responsável pela operação de segurança no dia fatídico, terminou na semana passada sem que o júri tivesse conseguido chegar a um veredicto. No meio da incerteza sobre o que acontecerá a seguir, a cidade e as famílias das vítimas optam pela discrição. «O risco de o evento influenciar inadvertidamente decisões futuras relativas a procedimentos legais é um risco que a cidade não quer correr. Apesar de esta ser uma efeméride tão importante, percebemos como é sensível o atual ambiente em torno do assunto», explicou Joe Anderson, o «mayor» de Liverpool, a cidade que superou rivalidades e se uniu em torno da memória da tragédia.

Dos novos estádios ao futebol moderno e ainda o hooliganismo: o que mudou

O caminho para encontrar a verdade e os responsáveis sobre o que se passou naquele 15 de abril de 1989 foi inquinado desde o início. Apesar de a primeira investigação à tragédia ter apontado desde logo falhas na operação policial. Essa foi a conclusão da versão preliminar do relatório Taylor, logo em 1990. O mesmo documento que, na sua versão final, alertou igualmente para os riscos estruturais dos estádios ingleses, deixou uma série de recomendações sobre o que devia mudar e desencadeou uma profunda alteração de paradigma do futebol inglês e europeu.

Não foi apenas Hillsborough a causa. Outra das grandes tragédias em estádios europeus tinha acontecido apenas quatro anos antes: Heysel e as 39 mortes na final da Taça dos Campeões Europeus entre a Juventus e o Liverpool tinham sido o primeiro grande sinal de alerta sobre o risco das vedações nos estádios, mas deixado também uma enorme sombre sobre o futebol inglês e o seu problema de «hooliganismo». A proximidade das duas tragédias condicionou desde o início os olhares sobre Hillsborough. Tinha voltado a acontecer com adeptos do Liverpool, o que facilitou a narrativa das autoridades de que tinham sido os espectadores os responsáveis pelo que aconteceu. Era mentira, como veio a provar-se. Mas para lá disso a proximidade das duas tragédias reforçou a necessidade de mudanças.

Antes de mais, nos estádios. O relatório Taylor apontava vários caminhos para melhorar a segurança nos recintos britânicos, desde logo a abolição das vedações que limitavam o acesso ao relvado ou a limitação das bancadas com lugares em pé, mas também a necessidade de planos de segurança e coordenação das autoridades, ou a generalização de torniquetes.

O Governo inglês decretou que os clubes dos dois principais escalões adaptassem os seus estádios e tivessem apenas lugares sentados, canalizando verbas públicas para cobrir parte das despesas. Todos o fizeram, alguns construindo novos estádios, outros remodelando os que já existiam. Old Trafford, por exemplo, fez desde logo a adaptação para lugares exclusivamente sentados, o que resultou numa redução da capacidade do estádio do Manchester United para valores mínimos de 44 mil lugares. Mas realizou nos anos seguintes várias outras obras de modernização e ampliação do estádio. O Liverpool também teve de fazer adaptações, incluindo transformer o mítico Kop numa bancada de lugares sentados, igualmente com capacidade reduzida em relação ao original.

A capacidade financeira dos clubes fez a diferença nesse processo. Aliada a todo um novo conceito de estádios. Maior conforto, polivalência, mas também bilhetes mais caros e por arrastamento o aumento do fosso entre quem tinha e quem não tinha dinheiro. E uma nova forma de viver o futebol. Essa foi uma das consequências das mudanças que resultaram de Hillsborough, como lamentou Kenny Dalglish, que era o treinador do Liverpool naquele dia, em declarações reproduzidas pelo Guardian em 2009: «Um dos legados de Hillsborough foi tornar o jogo menos acessível às classes trabalhadoras. Os preços são demasiado altos, em especial para uma família que queira ir ao futebol. Todos os clubes precisam do lado comercial, mas tem de haver lugar para os adeptos normais. Com estádios mais pequenos, sem espectadores em pé e um público mais rico, os estádios tornaram-se mais silenciosos.»

Os novos estádios tornaram-se mais seguros, com os lugares sentados, controlo de entradas e sistemas generalizados de vídeo-vigilância. Inglaterra também criou legislação concreta para controlar a compra de bilhetes e identificar quem estava no estádio e para punir a violência de adeptos com medidas como as ordens temporárias, ou definitivas, de afastamento dos estádios. Essas medidas, aliadas à nova lógica de acesso ao futebol, que atraiu adeptos com mais posses à custa da base tradicional de apoio dos clubes ingleses, fizeram boa parte do caminho no controlo do «hooliganismo» em solo inglês.

Depois de Heysel, os clubes ingleses foram proibidos de participar nas competições europeias durante cinco anos e esse exílio também os impulsionou a procurar novas formas de crescer, desportiva e comercialmente, e recuperar o tempo perdido. A Premier League era uma ideia que já vinha germinando e quando viu a luz, em 1992, trazia a receita para o sucesso. Uma competição premium para os clubes de topo, alimentada pelos milhões da televisão privada e paga, um negócio ancorado numa lógica comercial.

Com Hillsborough como pedra de toque, Inglaterra definia as bases para o futuro do futebol. Com efeito de arrastamento para todo o futebol europeu, dos estádios ao modelo de organização. Futebol português incluído, como pode reler neste artigo.

Uma longa batalha feita de erros, mentiras e resistência

E por trás estava Hillsborough. Um dia de horror no estádio do Sheffield Wednesday, uma sucessão de erros e falhas de seguranças que conduziu 96 pessoas à morte. Naquele dia, os problemas começaram na entrada dos adeptos do Liverpool, com poucos pontos de acesso para escoar as pessoas para o interior do estádio. Com a multidão a acumular-se cá fora e a 15 minutos da hora prevista para começar o jogo, David Duckenfield, o responsável pela operação policial, deu ordem para que fosse aberta uma outra porta, por onde se estima que tenham entrado duas mil pessoas. Seguiram pelo túnel que ficava logo em frente e que conduzia às zonas 3 e 4 da bancada Leppings Lane. Mas essas zonas, vedadas com grades à frente e de lado, já estavam cheias. Os adeptos não foram avisados, o túnel não foi fechado nem as pessoas dirigidas para outras zonas da bancada, mais desanuviadas. À medida que chegava mais gente aumentava a pressão sobre quem estava à fente, junto à vedação. E a tragédia aconteceu.

Passaram 30 anos e a luta dos sobreviventes, das famílias e de todos os que procuram justiça por Hillsborough ainda continua, num processo contra os preconceitos e o sistema que envergonha politicos e autoridades inglesas.

Apesar de todos os sinais em contrário, a começar pelo relatório Taylor, que falava desde logo em falhas da polícia, durante muito tempo vingou a narrativa oficial das autoridades, que para esconder as suas falhas fizeram passar a ideia de que na origem de tudo tinha estado o comportamento de adeptos desordeiros. Uma ideia alimentada pela imprensa, com o tablóide «Sun» à cabeça. Fácil de vingar no contexto da altura, com o hooliganismo bem vivo.

Do relatório Taylor não resultou qualquer acusação às forças policiais. E em 1991 um júri considerou as mortes acidentais. As famílias contestaram sempre essa ideia e procuraram levar os responsáveis à justiça. Uma batalha que só ganharam 23 anos depois. Em 2009 o Governo britânico decidiu reabrir o processo, nomeando uma comissão, o Painel Independente de Hillsborough, que teve acesso a milhares de documentos e trabalhou durante três anos numa nova investigação. Esse painel divulgou as suas conclusões em setembro de 2012, assumindo finalmente que a responsabilidade não tinha sido dos adeptos do Liverpool, mas tinha havido falta de controlo da polícia, além de um encobrimento generalizado, com muita da informação original manipulada pelas autoridades. Concluiu ainda que, se tivesse havido melhor resposta de emergência, 41 das 96 vítimas podiam ter sido socorridas e provavelmente salvas. 

As conclusões eram devastadoras e levaram o Governo britânico a pedir formalmente desculpa. Seguiram-se as consequências legais. Em dezembro de 2012 o Supremo Tribunal inglês anulou a sentença que determinava as mortes como acidentes, abrindo caminho a novos processos judiciais.

Em abril de 2016, depois de um processo que durou dois anos, nova decisão em tribunal mudou toda a abordagem original. O júri concluiu que os 96 de Hillsborough foram vítimas de «unlawfull killing». Foram mortos, as suas mortes não foram acidentais. Concluiu também que as ações de David Duckenfield representam «negligência grosseira». O antigo responsável policial admitiu nomeadamente nas investigações que mentiu na altura sobre a decisão de abrir o portão, dizendo que foi forçado pelos adeptos.

O tributo do Liverpool aos rostos da luta pela justiça no dia dessa decisão:

 

Foi essa decisão que levou à acusação a Duckenfield e mais cinco envolvidos na organização daquela meia-final. Até agora houve uma condenação. Graham Mackrell, que era secretário do Sheffield Wednesday à altura dos acontecimentos, foi condenado por violar o seu dever de segurança e conhecerá a sentença a 13 de maio.

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