Jordan by Carlos Barroca: «Ele voava um bocadinho mais do que os outros» - TVI

Jordan by Carlos Barroca: «Ele voava um bocadinho mais do que os outros»

Michael Jordan (AP)

Desafiámos o atual vice-presidente da NBA na Ásia a desfiar memórias sobre o homem que transformou a NBA. Dez pontos, tantos quanto o número de episódios do documentário «The Last Dance»

The Last Dance reforçou o culto à maior estrela do basquetebol que o Mundo já conheceu. O documentário da ESPN com imagens inéditas que ficaram guardadas durante duas décadas foi um sucesso e até nós, Maisfutebol, ficámos rendidos à produção e agora que já acabou sentimos necessidade de conversar com alguém.

Vai disto e lembrámo-nos do homem que entrou anos a fio pelas nossas casas aos fins de semana e que ajudou a enriquecer o léxico basquetebolístico de muitos jovens numa altura em que não passavam jogos em direto em Portugal, mas os melhores momentos chegavam-nos pela voz dele e do professor João Coutinho.

Carlos Barroca já se deixou das narrações e é desde há alguns anos vice-presidente da NBA na Ásia. «Se calhar, hoje estou onde estou porque o Michael Jordan contribuiu de maneira decisiva para que um produto que não era tão internacional quanto isso esteja hoje em todo o Mundo. No início da década de 90, a NBA estava presente em 80 países e hoje está em 215, tem 15 escritórios internacionais e é comentada em 46 línguas. O Michael serviu para alavancar a qualidade de um produto e foi um elemento decisivo para a concretização da visão do David Stern [comissário da NBA entre 1984 e 2014]», justifica quem se lembra de a modalidade ser «vendida» através de ações de publicidade em parques de estacionamento de supermercados.

O Maisfutebol desafiou o professor a eleger dez momentos que o marcaram no maior fenómeno da NBA nas décadas de 80, 90 e why not? dos primeiros meses da terceira década deste século.

1 – A primeira vez que o vi ao vivo foi no balneário em Nova Iorque, num jogo entre os Knicks e os Chicago Bulls por volta de 1989. Foi interessantíssimo vê-lo jogar. O Jordan sempre considerou o Madison Square Garden um sítio especial e nesses sítios ele gostava de proporcionar um espetáculo a quem pagava o bilhete. Ele não entrava em campo se não para ganhar, se não para dar o melhor e, se possível, para proporcionar também o melhor espetáculo possível. Nessa noite ele fez um jogo espetacular e eu, que nem criança num playground a ver os seus ídolos e como tinha uma credencial da extinta Gazeta dos Desportos, fui ao balneário e assisti àquela atração da figura do Michael Jordan. Estariam no balneário 50 ou 60 jornalistas e todos eles estavam à volta dele, encurralado num canto e encostado à parede. Utilizando uma palavra hoje muito usada, estava confinado [risos]. Ele ganhava dinheiro pelo que jogava, mas parte era também para ter paciência para lidar com toda aquela pressão da informação.

2 – Não me lembro da primeira vez em que o vi jogar na televisão. Mas consigo recordar-me que ele ainda era magrinho e tinha um corpo diferente daquele que viria a ter mais tarde na carreira. E lembro-me que ainda jogava muito sozinho e concentrado nos seus números. Mais tarde percebeu que não ia lá dessa maneira e que tinha de aliar o potencial dos outros ao dele para conquistar títulos. Mas esse Michael Jordan já nos enchia: por ser felino, pela elegância defensiva e pelo QI basquetebolístico. Recordo-me que os jogos chegavam a Portugal numas cassetes enormes muito estranhas, condensados em 70 minutos: normalmente eram highlights do primeiro e do segundo períodos e depois toda a segunda parte do jogo.

3 – Há muita gente que não tem noção do sentido de humor do Michael Jordan, que era extremamente competitivo, mas também brincalhão. Tinha várias facetas, que pudemos ver neste documentário do Last Dance: o provocador, o tirano, o emotivo, o trash talker [conversa fiada], etc. Lembro-me de um All Star Game em que ele tem um momento de humor. Ele, como era o Michael Jordan, era o último jogador a ser apresentado. O que foi apresentado imediatamente antes dele foi o Penny Hardaway. Foi em San Antonio em 1996 e eu estava mesmo atrás do banco. O Hardaway, que parecia estar nervoso e extremamente sério, levanta-se e nesse momento o Jordan puxa-lhe os calções para baixo. Lembro-me também de um outro episódio de um lance livre que ele faz com os olhos fechados [n.d.r.: não o fez apenas uma vez] depois de fazer uma aposta com alguém. Ele adorava apostas e estava sempre pronto quando era desafiado.

4 – Marcou-me o sofrimento dele com a morte do pai em 1993. E a grande angústia dele foi o período entre o dia do desaparecimento do pai e o momento em que o corpo dele foi encontrado.

5 – Cestos! Recordo-me de um numa final da NBA que jogaram contra os Lakers. Eu estava a comentar o jogo com o professor João Coutinho, que ainda estava entre nós, e o Michael Jordan sobe para o cesto do lado direito e no último momento decide pairar no ar – porque ele voava um bocadinho mais do que os outros! – e passa do lado direito para o outro e marca com a mão esquerda. Não sei quanto tempo eu e o João Coutinho estivemos aos gritos a celebrar aquela jogada, porque era absolutamente única.

6 – Jogos! Destaco um nos playoffs em 1986 contra os Boston Celtics, ainda antes da era dos títulos. Eles acabam por ser eliminados, mas o Michael Jordan, em pleno Boston Garden, faz 63 pontos, o seu recorde pessoal até então. Esteve absolutamente indomável.

7 – Como jogador virado para o título, realço quatro momentos. O seu cesto que decidiu o título para a Universidade da Carolina do Norte em 1982, os playoffs em que eles eliminam duas vezes os Cleveland Cavaliers da mesma maneira: com um buzzer beater do Michael Jordan a fechar a série e o desgraçado do Craig Ehlo a ser sempre o looser. Nunca conseguiu pará-lo! E inequivocamente o the shot, o lançamento, a acabar a carreira no jogo 6 em 1998 com os Utah Jazz: um lançamento certeiro a consumar a vitória e o sexto título para os Bulls.

8 – Jordan global! O meu filho mais velho, que nasceu em 1984, era o Jordan lá da rua. Dizia-se: ‘Everybody wants to be like Michael Jordan. Toda a gente quer ser como o Michael Jordan’. Eram os bonés, as t-shirts e os ténis para quem tinha dinheiro. Era uma figura ímpar: nessa altura haveria certamente fãs do Magic Johnson e também do Larry Bird, mas aquilo que ele fazia individualmente era mais consumível do que o que faziam outras grandes estrelas.

9 – As retiradas! A segunda, em 1998, foi a que me marcou mais. Na primeira tive um misto de emoções, pelos rumores: o falecimento do pai e a ligação ao mundo das apostas. A ideia que havia era que a história não estava muito bem contada. Achei que era muito cedo para ele se retirar e que, apesar de tudo, não fazia muito sentido. Mesmo a história da ida dele para o basebol… O cenário da saída parecia algo do género de tirar um pouco de pressão e deixar algum tempo. E depois voltou.

10 – The Last Dance. As relações com o Jerry Krause eram horríveis e parecia que queriam fazer a cama ao treinador. Houve uma falta de respeito através de uma decisão estratégica de quem achava que a equipa já não ia a lado nenhum. E a maior resposta que eles deram foi ganhar o título. Como o Michael Jordan diz, mereciam uma oportunidade para ganhar o sétimo título: mesmo que não o ganhassem depois. Aquela equipa não foi desfeita quando ganhou o sexto título: foi desfeita antes e isso foi o mote que lhe permitiu encontrar sempre a força extra para superar as dificuldades e chegar ao título. E quem faz isso não merece que as decisões administrativas se sobreponham à parte desportiva. E eu, que joguei e fui treinador, entendo a dor daquela gente toda.

(artigo originalmente publicado às 23h55 de 21/05/2020)

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